Para onde vão os países quando deixam de existir?
No dia 3 de Outubro de 1990, um país no centro da Europa desapareceu. Chamava-se República Democrática Alemã, os portugueses chamavam-lhe RDA, os seus habitantes chamavam-lhe DDR (Deutsche Demokratische Republik). Tinha 40 anos. Muitas pessoas nasceram e viveram nesse país e durante muito tempo era essa a sua realidade (na maior parte dos casos, a única que conheciam). Nesse país havia um muro e do outro lado havia outro país com um nome parecido, República Federal Alemã (RFA). Onze meses depois da queda do Muro, a RDA desaparecia. O que sentem as pessoas que vêem o seu país desaparecer?
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No dia 3 de Outubro de 1990, um país no centro da Europa desapareceu. Chamava-se República Democrática Alemã, os portugueses chamavam-lhe RDA, os seus habitantes chamavam-lhe DDR (Deutsche Demokratische Republik). Tinha 40 anos. Muitas pessoas nasceram e viveram nesse país e durante muito tempo era essa a sua realidade (na maior parte dos casos, a única que conheciam). Nesse país havia um muro e do outro lado havia outro país com um nome parecido, República Federal Alemã (RFA). Onze meses depois da queda do Muro, a RDA desaparecia. O que sentem as pessoas que vêem o seu país desaparecer?
O documentarista Thomas Heise nasceu em Agosto de 1955 em Berlim-Leste, RDA. Durante os anos 80 fez vários filmes que nunca puderam ser vistos no seu país. Filmou muito durante esse tempo e continuou a filmar nos meses que antecederam a queda do Muro. Filmou, por exemplo, a gigantesca manifestação em Alexanderplatz, Berlim-Leste, a 4 de Novembro de 1989. "A câmara foca o público, nunca os oradores, e vê-se como as pessoas estão atentas, interessadas. Havia uma energia que vinha de baixo para cima", explica Heise em Lisboa, onde esteve há poucas semanas para apresentar no festival de documentários DocLisboa o seu filme Material, no qual junta pedaços de material que sobrou dos seus filmes anteriores, planos nunca utilizados, projectos inacabados. Nessas imagens reunidas, quase sem comentários ou contextualizações, encontrou um sentido, encontrou a sua história da Alemanha. "O material continua incompleto. É o que eu apanhei, o que se manteve importante para mim. O meu retrato", explica num texto de apresentação.
"Há ali [nas imagens das manifestações] pessoas que falam pela primeira vez na vida em frente a outras", conta. Quando mais tarde mostrou essas imagens a pessoas que tinham participado naquela manifestação, elas diziam que "não se recordavam que tinha sido assim, que as imagens não correspondiam às recordações delas, e que já não se lembravam de ter sentido tanta liberdade". E no entanto as imagens estavam ali e contavam uma história. Mostravam, segundo Heise, "a realidade do possível" - aquele momento, curto, em que "se consegue ver a utopia".
Que utopia era essa? A de que "o povo iria ser soberano". O que as pessoas pediam era o fim de um regime, o comunismo na RDA, mas não o fim de um país. "O que é curioso é que é a própria queda do Muro que vai acabar com essa manifestação da vontade das pessoas", diz Heise, que nas quase três horas de Material conta uma história da(s) Alemanha(s) desde o final dos anos 80 até 2008 sem nunca mostrar imagens da queda do Muro. Porque, para muitos alemães de Leste, aquilo que outros viveram como uma enorme festa - e que o mundo viu como uma enorme festa - foi o princípio do fim.
"Nós não dizíamos "queremos fazer parte da RFA", o que queríamos era ter uma nova sociedade. E o mais irónico é que a queda do Muro acabou com a utopia de criar uma nova sociedade no espaço da antiga RDA." Quando olha para as imagens que não usou no seu filme mas que são as icónicas da noite de 9 de Novembro, o que Heise vê são "alemães ocidentais a dançar em cima do Muro".
Foi então um equívoco, a reunificação da Alemanha, um dos grandes acontecimentos simbólicos do final do século XX? Os alemães de Leste que invadiram Berlim ocidental passando, aos milhares, pelas aberturas no Muro, e que foram recebidos em festa pelos alemães ocidentais, não se sentiam eufóricos com o que estava a acontecer? Heise insiste na utopia. "Entre Agosto de 1989 e Outubro de 1990 havia [na Alemanha de Leste] uma anarquia estranha em que tudo era possível. Mas se tivessem permitido que isso que se estava a formar aí, e que era novo, continuasse, iria abalar também os fundamentos da RFA."
E houve equívocos, sim, diz o documentarista. Nas grandes manifestações em Leipzig, que anteciparam as de Berlim [a 9 de Outubro de 1989, entre 70 mil e 100 mil pessoas saíram para as ruas], gritava-se "Nós somos o povo", mas também "Nós ficamos". E havia uma terceira palavra de ordem que ficou famosa: "Nós somos um povo." Isso, afirma Heise, foi muitas vezes entendido como "nós, os alemães da RDA e os da RFA, somos um único povo". Mas não era essa a intenção, garante. "As pessoas gritavam isso aos polícias e militares que cercavam a manifestação para lhes lembrar que eles faziam parte do mesmo povo e para tentar evitar um conflito."
Outras históriasHá cada vez mais alemães de Leste a contar uma versão da história semelhante à de Heise. Uma versão não contraditória, mas diferente da que é contada pelas imagens de milhares de alemães de Leste a fugir para o Ocidente nos meses que antecederam a queda do Muro, aproveitando a abertura de fronteiras entre os dois lados da Cortina de Ferro, como aconteceu entre a Hungria e a Áustria em Maio de 89. Ou das filas de Trabant, os carros da RDA, cheios de pessoas que queriam ir ver como era "o outro lado", comprar produtos que nunca tinham visto, provar coisas que nunca tinham comido. Bananas, por exemplo.
Foi preciso passarem 20 anos para que outras histórias, como a de Heise, surgissem. "É sempre assim, é necessário. Todos os acontecimentos históricos precisam da passagem do tempo. Daqui a 20 anos tudo vai ser revisto outra vez. A ideia romântica de que a reunificação foi feita pelas pessoas da rua provavelmente vai ser toda repensada quando tivermos mais factos."
E quanto às bananas, Heise também tem uma história para contar. "Em Janeiro de 1990, as pessoas avançaram sobre a sede da Stasi [a polícia secreta da RDA] em Berlim, e nesse mesmo dia desapareceram os documentos com os nomes de todos os agentes a trabalhar no estrangeiro. Quando as pessoas entraram à procura desses documentos, foram dirigidas, não para onde eles realmente estavam, mas para a cantina, onde estavam as bananas."
Para o documentarista, o que aconteceu foi que o comunismo foi substituído pelo capitalismo e entre um e o outro "a utopia desapareceu, dissolveu-se em produtos". Os primeiros sinais começaram ainda antes da queda do Muro: por exemplo, quando surgiu pela primeira vez um anúncio no final do telejornal da RDA. "De repente, o telejornal acabou uns minutos mais cedo e apareceu publicidade. O primeiro spot era um bâton que surgia no ecrã de baixo para cima. O slogan era: "O novo vermelho." Isto diz tudo", conclui, com uma gargalhada.
Heise nega veementemente que tenha qualquer espécie de nostalgia pela RDA. "Era um país onde eu não podia trabalhar e estou contente por ele ter desaparecido." Lamenta no entanto ter perdido o seu tema. "As ditaduras são mais interessantes, há mais coisas para fazer, são mais exigentes. Pensam na continuidade, no futuro, pensam em termos históricos, enquanto a democracia trabalha sempre no presente."
Mas se Heise não o é, há muitos alemães do antigo Leste que são hoje nostálgicos (pelo menos de algumas partes) desse mundo desaparecido. O fenómeno chama-se Ostalgie, uma mistura das palavras "Ost" (Leste) e nostalgia, e alimenta toda uma indústria. "Dançarinas exóticas como as Magdeburger Models despiram uniformes do exército da Alemanha Oriental. Grupos de cantores como as Easty Girls entoam canções com um ritmo tecno em fundo, entremeado com excertos de discursos de Erich Honecker [antigo líder da RDA] num estilo rap", enumera Peter Molloy em O Mundo Perdido do Comunismo - História do Quotidiano do Outro Lado da Cortina de Ferro (editado em Portugal pela Bertrand).
"A dada altura chegou a estar projectada a construção de um mini-parque temático sobre a Alemanha oriental, o Ossie World. Há um encanto especial à volta do design alemão oriental e do kitsch comunista - os preservativos comunistas, a Vita Cola (réplica da Coca-Cola na Alemanha oriental) e o aroma enlatado dos vapores do Trabant foram todos comercializados pelos fornecedores de Ostalgie", relata Molloy no seu livro, no qual cita a cantora alemã oriental Chris Doerk: "Irrita-me a frequência com que reduzem a RDA à Stasi e a não sei que mais. Por vezes tenho a sensação de que julgam que vivíamos em cabanas de adobe. Certas pessoas falam do país de uma maneira estranha: "Na RDA, as pessoas importantes banqueteavam-se e o povo morria de fome nas ruas." Pergunto a mim própria: "Vivi num país diferente?" Porque onde eu vivi não aconteciam estas coisas."
As ruínas que ficaramÀ nostalgia somam-se as dificuldades económicas que o Leste (não só, mas sobretudo o Leste) tem enfrentado. Um relatório recente do German Institute for Economic Research citado pelo Spiegel Online mostra que durante os anos 90 as economias das duas metades do país começaram lentamente a convergir, mas que no início do novo século esse processo estagnou e desde 2008 começaram novamente a divergir. O alto nível de desemprego e a ausência de perspectivas levaram a que cerca de dois milhões de alemães deixassem o Leste do país desde 1990.
No entanto, um outro relatório, este do DB Research, o think tank do Deutsche Bank, citado também pelo Spiegel, chega a conclusões diferentes, indicando que nos últimos anos a situação melhorou substancialmente em muitos dos estados do Leste, sobretudo graças à instalação de pequenas empresas que já não procuram só mão-de-obra barata, mas também técnicos qualificados.
"Ainda existe um claro fosso entre os resultados económicos do Leste e do Oeste", explicava à Pública, em Agosto, o professor Klaus Schroeder, especialista em RDA da Universidade Livre de Berlim. "Isto não é surpreendente, dado que a performance económica da RDA no final dos anos 80 era apenas 25 ou 30 por cento do nível da Alemanha ocidental. A produtividade por hora de trabalho era ainda mais baixa, 20 por cento. Apesar de uma enorme quantidade de dinheiro ser transferida para o Leste todos os anos, até hoje ainda não houve um boom auto-sustentado no Leste."
O professor reconhece que existiu também um problema de expectativas. "Uma maioria dos alemães de Leste não se identifica com a ordem social da Alemanha reunificada. Aparentemente, as suas expectativas não foram preenchidas. Muitos esperavam que o sistema de benefícios sociais da antiga RDA, que eles vêem como um sucesso, fosse transferido para a Alemanha reunificada. Acreditavam que seria possível manter o enorme número de pessoas das quais o Estado "tomava conta". Os alemães do Leste pensavam que iam receber os mesmos benefícios sociais, mas ajustados ao alto nível financeiro da Alemanha Ocidental."
Mas a questão das expectativas não pode ser resumida a esta leitura. Num texto publicado num número da revista do El País dedicado ao aniversário da queda do Muro, o escritor Thomas Brussig, nascido em 1964 em Berlim-Leste, fala de outra expectativa: a da liberdade. Escreve : "Aprendi algo sobre a liberdade. Por exemplo, que um Estado que garanta as liberdades civis (liberdade de imprensa, liberdade de opinião, etc.) não produz automaticamente pessoas livres. Não és uma pessoa livre só porque vives numa sociedade livre, num país livre. Ser uma pessoa livre é tarefa de cada indivíduo no dia-a-dia. [...] Se tiveres dinheiro, é mais fácil ser livre. A liberdade é um ideal importante e tentador e, ao mesmo tempo, uma promessa pela qual é fácil deixares-te enganar."
Segundo Brussig, há uma pergunta fundamental que todos os alemães de Leste deviam colocar a si próprios: "Quanta RDA, quanto comunismo continuo a ter dentro de mim?"
É isto que acontece quando um país desaparece - ficam ruínas dentro das pessoas. Para alguns, ruínas do que perderam. Para outros, ruínas do que, por um breve momento, acreditaram que seria possível ter - aquele breve momento captado pela câmara de Thomas Eise durante uma manifestação em Alexanderplatz, a 4 de Novembro de 1989.
apc@publico.ptNo dia 3 de Outubro de 1990, um país no centro da Europa desapareceu. Chamava-se República Democrática Alemã, os portugueses chamavam-lhe RDA, os seus habitantes chamavam-lhe DDR (Deutsche Demokratische Republik). Tinha 40 anos. Muitas pessoas nasceram e viveram nesse país e durante muito tempo era essa a sua realidade (na maior parte dos casos, a única que conheciam). Nesse país havia um muro e do outro lado havia outro país com um nome parecido, República Federal Alemã (RFA). Onze meses depois da queda do Muro, a RDA desaparecia. O que sentem as pessoas que vêem o seu país desaparecer?
O documentarista Thomas Heise nasceu em Agosto de 1955 em Berlim-Leste, RDA. Durante os anos 80 fez vários filmes que nunca puderam ser vistos no seu país. Filmou muito durante esse tempo e continuou a filmar nos meses que antecederam a queda do Muro. Filmou, por exemplo, a gigantesca manifestação em Alexanderplatz, Berlim-Leste, a 4 de Novembro de 1989. "A câmara foca o público, nunca os oradores, e vê-se como as pessoas estão atentas, interessadas. Havia uma energia que vinha de baixo para cima", explica Heise em Lisboa, onde esteve há poucas semanas para apresentar no festival de documentários DocLisboa o seu filme Material, no qual junta pedaços de material que sobrou dos seus filmes anteriores, planos nunca utilizados, projectos inacabados. Nessas imagens reunidas, quase sem comentários ou contextualizações, encontrou um sentido, encontrou a sua história da Alemanha. "O material continua incompleto. É o que eu apanhei, o que se manteve importante para mim. O meu retrato", explica num texto de apresentação.
"Há ali [nas imagens das manifestações] pessoas que falam pela primeira vez na vida em frente a outras", conta. Quando mais tarde mostrou essas imagens a pessoas que tinham participado naquela manifestação, elas diziam que "não se recordavam que tinha sido assim, que as imagens não correspondiam às recordações delas, e que já não se lembravam de ter sentido tanta liberdade". E no entanto as imagens estavam ali e contavam uma história. Mostravam, segundo Heise, "a realidade do possível" - aquele momento, curto, em que "se consegue ver a utopia".
Que utopia era essa? A de que "o povo iria ser soberano". O que as pessoas pediam era o fim de um regime, o comunismo na RDA, mas não o fim de um país. "O que é curioso é que é a própria queda do Muro que vai acabar com essa manifestação da vontade das pessoas", diz Heise, que nas quase três horas de Material conta uma história da(s) Alemanha(s) desde o final dos anos 80 até 2008 sem nunca mostrar imagens da queda do Muro. Porque, para muitos alemães de Leste, aquilo que outros viveram como uma enorme festa - e que o mundo viu como uma enorme festa - foi o princípio do fim.
"Nós não dizíamos "queremos fazer parte da RFA", o que queríamos era ter uma nova sociedade. E o mais irónico é que a queda do Muro acabou com a utopia de criar uma nova sociedade no espaço da antiga RDA." Quando olha para as imagens que não usou no seu filme mas que são as icónicas da noite de 9 de Novembro, o que Heise vê são "alemães ocidentais a dançar em cima do Muro".
Foi então um equívoco, a reunificação da Alemanha, um dos grandes acontecimentos simbólicos do final do século XX? Os alemães de Leste que invadiram Berlim ocidental passando, aos milhares, pelas aberturas no Muro, e que foram recebidos em festa pelos alemães ocidentais, não se sentiam eufóricos com o que estava a acontecer? Heise insiste na utopia. "Entre Agosto de 1989 e Outubro de 1990 havia [na Alemanha de Leste] uma anarquia estranha em que tudo era possível. Mas se tivessem permitido que isso que se estava a formar aí, e que era novo, continuasse, iria abalar também os fundamentos da RFA."
E houve equívocos, sim, diz o documentarista. Nas grandes manifestações em Leipzig, que anteciparam as de Berlim [a 9 de Outubro de 1989, entre 70 mil e 100 mil pessoas saíram para as ruas], gritava-se "Nós somos o povo", mas também "Nós ficamos". E havia uma terceira palavra de ordem que ficou famosa: "Nós somos um povo." Isso, afirma Heise, foi muitas vezes entendido como "nós, os alemães da RDA e os da RFA, somos um único povo". Mas não era essa a intenção, garante. "As pessoas gritavam isso aos polícias e militares que cercavam a manifestação para lhes lembrar que eles faziam parte do mesmo povo e para tentar evitar um conflito."
Outras históriasHá cada vez mais alemães de Leste a contar uma versão da história semelhante à de Heise. Uma versão não contraditória, mas diferente da que é contada pelas imagens de milhares de alemães de Leste a fugir para o Ocidente nos meses que antecederam a queda do Muro, aproveitando a abertura de fronteiras entre os dois lados da Cortina de Ferro, como aconteceu entre a Hungria e a Áustria em Maio de 89. Ou das filas de Trabant, os carros da RDA, cheios de pessoas que queriam ir ver como era "o outro lado", comprar produtos que nunca tinham visto, provar coisas que nunca tinham comido. Bananas, por exemplo.
Foi preciso passarem 20 anos para que outras histórias, como a de Heise, surgissem. "É sempre assim, é necessário. Todos os acontecimentos históricos precisam da passagem do tempo. Daqui a 20 anos tudo vai ser revisto outra vez. A ideia romântica de que a reunificação foi feita pelas pessoas da rua provavelmente vai ser toda repensada quando tivermos mais factos."
E quanto às bananas, Heise também tem uma história para contar. "Em Janeiro de 1990, as pessoas avançaram sobre a sede da Stasi [a polícia secreta da RDA] em Berlim, e nesse mesmo dia desapareceram os documentos com os nomes de todos os agentes a trabalhar no estrangeiro. Quando as pessoas entraram à procura desses documentos, foram dirigidas, não para onde eles realmente estavam, mas para a cantina, onde estavam as bananas."
Para o documentarista, o que aconteceu foi que o comunismo foi substituído pelo capitalismo e entre um e o outro "a utopia desapareceu, dissolveu-se em produtos". Os primeiros sinais começaram ainda antes da queda do Muro: por exemplo, quando surgiu pela primeira vez um anúncio no final do telejornal da RDA. "De repente, o telejornal acabou uns minutos mais cedo e apareceu publicidade. O primeiro spot era um bâton que surgia no ecrã de baixo para cima. O slogan era: "O novo vermelho." Isto diz tudo", conclui, com uma gargalhada.
Heise nega veementemente que tenha qualquer espécie de nostalgia pela RDA. "Era um país onde eu não podia trabalhar e estou contente por ele ter desaparecido." Lamenta no entanto ter perdido o seu tema. "As ditaduras são mais interessantes, há mais coisas para fazer, são mais exigentes. Pensam na continuidade, no futuro, pensam em termos históricos, enquanto a democracia trabalha sempre no presente."
Mas se Heise não o é, há muitos alemães do antigo Leste que são hoje nostálgicos (pelo menos de algumas partes) desse mundo desaparecido. O fenómeno chama-se Ostalgie, uma mistura das palavras "Ost" (Leste) e nostalgia, e alimenta toda uma indústria. "Dançarinas exóticas como as Magdeburger Models despiram uniformes do exército da Alemanha Oriental. Grupos de cantores como as Easty Girls entoam canções com um ritmo tecno em fundo, entremeado com excertos de discursos de Erich Honecker [antigo líder da RDA] num estilo rap", enumera Peter Molloy em O Mundo Perdido do Comunismo - História do Quotidiano do Outro Lado da Cortina de Ferro (editado em Portugal pela Bertrand).
"A dada altura chegou a estar projectada a construção de um mini-parque temático sobre a Alemanha oriental, o Ossie World. Há um encanto especial à volta do design alemão oriental e do kitsch comunista - os preservativos comunistas, a Vita Cola (réplica da Coca-Cola na Alemanha oriental) e o aroma enlatado dos vapores do Trabant foram todos comercializados pelos fornecedores de Ostalgie", relata Molloy no seu livro, no qual cita a cantora alemã oriental Chris Doerk: "Irrita-me a frequência com que reduzem a RDA à Stasi e a não sei que mais. Por vezes tenho a sensação de que julgam que vivíamos em cabanas de adobe. Certas pessoas falam do país de uma maneira estranha: "Na RDA, as pessoas importantes banqueteavam-se e o povo morria de fome nas ruas." Pergunto a mim própria: "Vivi num país diferente?" Porque onde eu vivi não aconteciam estas coisas."
As ruínas que ficaramÀ nostalgia somam-se as dificuldades económicas que o Leste (não só, mas sobretudo o Leste) tem enfrentado. Um relatório recente do German Institute for Economic Research citado pelo Spiegel Online mostra que durante os anos 90 as economias das duas metades do país começaram lentamente a convergir, mas que no início do novo século esse processo estagnou e desde 2008 começaram novamente a divergir. O alto nível de desemprego e a ausência de perspectivas levaram a que cerca de dois milhões de alemães deixassem o Leste do país desde 1990.
No entanto, um outro relatório, este do DB Research, o think tank do Deutsche Bank, citado também pelo Spiegel, chega a conclusões diferentes, indicando que nos últimos anos a situação melhorou substancialmente em muitos dos estados do Leste, sobretudo graças à instalação de pequenas empresas que já não procuram só mão-de-obra barata, mas também técnicos qualificados.
"Ainda existe um claro fosso entre os resultados económicos do Leste e do Oeste", explicava à Pública, em Agosto, o professor Klaus Schroeder, especialista em RDA da Universidade Livre de Berlim. "Isto não é surpreendente, dado que a performance económica da RDA no final dos anos 80 era apenas 25 ou 30 por cento do nível da Alemanha ocidental. A produtividade por hora de trabalho era ainda mais baixa, 20 por cento. Apesar de uma enorme quantidade de dinheiro ser transferida para o Leste todos os anos, até hoje ainda não houve um boom auto-sustentado no Leste."
O professor reconhece que existiu também um problema de expectativas. "Uma maioria dos alemães de Leste não se identifica com a ordem social da Alemanha reunificada. Aparentemente, as suas expectativas não foram preenchidas. Muitos esperavam que o sistema de benefícios sociais da antiga RDA, que eles vêem como um sucesso, fosse transferido para a Alemanha reunificada. Acreditavam que seria possível manter o enorme número de pessoas das quais o Estado "tomava conta". Os alemães do Leste pensavam que iam receber os mesmos benefícios sociais, mas ajustados ao alto nível financeiro da Alemanha ocidental."
Mas a questão das expectativas não pode ser resumida a esta leitura. Num texto publicado num número da revista do El País dedicado ao aniversário da queda do Muro, o escritor Thomas Brussig, nascido em 1964 em Berlim-Leste, fala de outra expectativa: a da liberdade. Escreve : "Aprendi algo sobre a liberdade. Por exemplo, que um Estado que garanta as liberdades civis (liberdade de imprensa, liberdade de opinião, etc.) não produz automaticamente pessoas livres. Não és uma pessoa livre só porque vives numa sociedade livre, num país livre. Ser uma pessoa livre é tarefa de cada indivíduo no dia-a-dia. [...] Se tiveres dinheiro, é mais fácil ser livre. A liberdade é um ideal importante e tentador e, ao mesmo tempo, uma promessa pela qual é fácil deixares-te enganar."
Segundo Brussig, há uma pergunta fundamental que todos os alemães de Leste deviam colocar a si próprios: "Quanta RDA, quanto comunismo continuo a ter dentro de mim?"
É isto que acontece quando um país desaparece - ficam ruínas dentro das pessoas. Para alguns, ruínas do que perderam. Para outros, ruínas do que, por um breve momento, acreditaram que seria possível ter - aquele breve momento captado pela câmara de Thomas Eise durante uma manifestação em Alexanderplatz, a 4 de Novembro de 1989.