A festa dos Major Lazer é confusa e multicultural
Estas ruas costumam ser calmas - uma paz de espírito dentro do bulício generalizado de Londres. Mas não nesta altura do ano: estamos no último dia de Agosto, altura de Carnival em Notting Hill. É o segundo maior carnaval do mundo, depois do do Rio de Janeiro. O caminho faz-se a custo por entre a multidão - o melhor é juntarmo-nos à marcha lenta dos camiões com imponentes sistemas de som a disparar música. As estações do metro da zona foram fechadas, há polícia por todo o lado. O cheiro da comida, servida em churrascos e tascas improvisadas, cruza-se com o da erva.
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Estas ruas costumam ser calmas - uma paz de espírito dentro do bulício generalizado de Londres. Mas não nesta altura do ano: estamos no último dia de Agosto, altura de Carnival em Notting Hill. É o segundo maior carnaval do mundo, depois do do Rio de Janeiro. O caminho faz-se a custo por entre a multidão - o melhor é juntarmo-nos à marcha lenta dos camiões com imponentes sistemas de som a disparar música. As estações do metro da zona foram fechadas, há polícia por todo o lado. O cheiro da comida, servida em churrascos e tascas improvisadas, cruza-se com o da erva.
Dentro dos camiões seguem rapazes e raparigas, muitos oriundos de centros comunitários ou associações caribenhas, a dançar e a puxar pelo povo. A festa surgiu em 1964 pela comunidade imigrante de Trindade e Tobago, como uma reacção contra os ataques racistas que aconteceram, anos antes, naquela zona. Os "soundsystems" jamaicanos vieram pouco depois e, mais tarde, chegaram outros sons, como o drum'n'bass e o grime.
As comunidades de imigrantes e descendentes estão cá, mas também está a juventude londrina, "hipster", atenta à moda e às tendências. Há música a surgir de todos os lados: samba, dancehall, reggae e géneros criados em Inglaterra como o dubstep e o UK funky. Mistura é a palavra-chave para entender o Carnival: há linhas de baixo vigorosas cruzadas com a percussão do samba, algo arraçado de baile funk a sair de colunas gigantes, um grupo de vocalistas dancehall num exíguo palco numa exígua rua onde ficamos bloqueados durante uns intermináveis dez minutos. Uma alegre e saudável confusão, uma ponte natural entre a tradição e os múltiplos e confusos sinais da contemporaneidade pop.
Com estes ingredientes, é o sítio perfeito para os Major Lazer - a dupla formada por Diplo e Switch - se estrearem no Reino Unido. Afinal, foram eles (ambos estão na equipa de produção de "Arular" e "Kala") que ajudaram a elevar M.I.A. à posição de embaixadora da fusão sem complexos das músicas do mundo com o hip-hop e a pop que anima alguma da música de dança do século XXI.
A mesma comunidade
Os Major Lazer não actuam no meio da rua, mas numa festa privada, debaixo de um viaduto ferroviário, junto à estação de Ladbroke Grove, da qual foram anfitriões. O elenco é de luxo: além dos Major Lazer, há Rusko, senhor do dubstep, J-Wow (Lil John dos Buraka Som Sistema), o cruzamento da música latina com a electrónica de Maluca (nova sensação da Mad Decent, editora de Diplo), Jillionaire, músico inspirado pela soca de Trinidade e Tobago, e Paul Devro, um dos cérebros da Mad Decent, entre outros.
Os Major Lazer, autores de "Guns Don't Kill People, Lazers Do", um dos discos mais excitantes do ano, lançam-se num "set" que cruza êxitos seus como "Keep it going louder", com "Cockney Thug", de Rusko, reggae clássico, "Kalemba (Wegue Wegue)", dos Buraka Som Sistema, e o refrão de "Blinded By The Lights", de The Streets, transformado em matéria dubstep. Thom Yorke era um dos que estava entre o público, segundo vários relatos (incluindo do próprio Diplo).
"O que têm Rusko, Buraka e Major Lazer em comum?", perguntamos a Wesley Pentz, Diplo. Está em Nova Iorque e interrompe durante 20 minutos uma sessão de gravação (é um dos mais requisitados DJ e produtores da actualidade). "Todos nós exportamos a nossa música. No Carnival tentamos pôr estes estilos de música do gueto e ‘bass music' num contexto em que qualquer miúdo possa entrar. Não representamos apenas o gueto angolano e português, nem a comunidade jamaicana: representamos toda a gente. A nossa música é feita a partir da mistura. Todos estes tipos são da nova escola: todos aprendemos sobre música a partir do hip-hop e da MTV, mas temos raízes mais fundas. As dos Buraka vêm do estilo angolano, as minhas do Miami Bass, as do Rusko do dub e do drum'n'bass. Todos temos as nossas raízes, mas somos parte da mesma cena neste momento. Somos parte da mesma comunidade".
O que os Major Lazer exportam - e também por isso é que ficaram tão bem no contexto do Carnival - é o dancehall jamaicano. Nascido no fim dos anos 1970, o dancehall é um filho do reggae, mais dado à estranheza (muitas produções centram-se no baixo e em vocalistas que fazem poucas concessões à melodia) e ao sexo, menos política e religiosamente empenhado. Na década seguinte, deixou-se contaminar pelas produções digitais, afastando-se mais do reggae original. Diplo e Switch são fãs de longa data do género, que hoje tem em Sean Paul, porventura, o seu mais conhecido representante.
Não há purismos
Para fazer "Guns Don't Kill People, Lazers Do", estreia do duo, Diplo e Switch foram a Kingston, Jamaica. Gravaram o disco no estúdio-instituição Tuff Gong (por onde já passaram nomes grandes da música jamaicana, como Bob Marley e os seus Wailers) e rodearam-se de estrelas do dancehall, como Mr. Vegas, mas também artistas menos conhecidos, como a provocante Miss Thing.
"Metade dos convidados já estavam planeados e procurámos por eles. Os outros apareceram no estúdio. Havia algumas pessoas que queríamos e não estavam disponíveis", conta. Os convidados "puderam fazer o que quiseram". "Não impusemos nada. Fizemos com que o processo fosse o mais aberto possível. Não vamos ensinar os tipos do dancehall a fazerem as coisas - é a cultura deles".
O resultado foi um disco que cruza o dancehall digital dos anos 80 com "riffs" de baixo inspirados nos Black Flag; que põe Santigold em confronto com o jamaicano Mr. Lexx, desconhecido no Ocidente, toques de telemóvel e guitarras à Ennio Morricone numa hiperactiva "Hold the Line"; que não tem medo de ser descaradamente pop ("Keep It Goin Louder", presença constante no tope da Billboard para as melhores canções de dança) ou de explorar o reggae clássico. "Tentámos ter o máximo de novos artistas e representar o melhor possível o novo som e a nova cultura, misturando-os com o nosso som e sabor, que é abstracto", explica. Ou seja: o álbum tanto pode agradar aos fãs de Sean Paul e do dancehall mais popular, como a quem segue o percurso de Diplo e Switch, repleto de bizarrias e cruzamentos.
Na Jamaica, encontraram gente como Skerrit Bwoy, excêntrico animador de serviço das actuações dos Major Lazer e figura importante nos telediscos do grupo (tem uma garrida crista amarela e é praticante da dança "daggering", em que se simulam actos sexuais ao ritmo da batida). "Ele representa o lado estranho do dancehall", diz Diplo. Mas, na verdade, nada é normal no dancehall - ou no dancehall que Diplo e Switch quiseram mostrar. "Fizemos este disco porque o género é flexível. Os artistas podem fazer o que querem. É por isso que é poderoso", atesta. Tem razão: um clássico como "Under Me Sleng Teng" (1986), de Wayne Smith, o primeiro tema dancehall com ritmo computorizado, tem muito pouco em comum com as canções dos Major Lazer, mesmo que ambas possam ser etiquetadas de dancehall. Tal como nas ruas em festa de Notting Hill, em que tudo é confusão e o novo e o velho se cruzam, "não há uma cena purista na Jamaica. Tudo é um enorme desastre sonoro", diz, em tons elogiosos. "Qualquer coisa na Jamaica é uma cópia da cultura americana ou inglesa. Foi isso que foi o rocksteady, o dub, a mistura do hip-hop com o estilo jamaicano. Sempre foi assim e tentámos manter o disco dessa forma o mais possível", acrescenta. Basta lembrar que o ritmo de "Under Me Sleng Teng", que acabaria por surgir num sem número de outras canções dancehall, foi, provavelmente, pilhado a "Somethin' Else" do pioneiro rock'n'roll Eddie Cochran.
Com o seu sucesso e apelo transversal, "Guns Don't Kill People, Lazers Do" pode ajudar a colocar os holofotes em cima do dancehall? "Espero que sim, espero que os miúdos comprem os discos do novo dancehall. É um género que não se promove a si mesmo muito bem", diz Diplo. "O dancehall sempre teve uma voz importante na comunidade caribenha, jamaicana, seja em Londres, Nova Iorque, Miami, Atlanta, mesmo em Espanha. Há sempre coisas a acontecer, comunicação, música nova. O que se passa é que o dancehall ficou muito ‘underground' porque não há artistas populares, nem indústria para promover novos artistas. Acho que o nosso disco é importante porque captou muita atenção para os artistas tornarem-se maiores".