Astérix: mais 50 anos a bater nos romanos
É o tipo de recepção que, em Portugal, só estamos habituados a ver com políticos, estrelas de cinema ou grandes nomes da canção. Mas nunca com um autor de histórias aos quadradinhos. Em França, porém, as coisas são bastantes diferentes, pois a BD goza de uma popularidade gigantesca e constitui um negócio que movimenta milhões de euros por ano. E, quando se trata de Astérix, a festa está garantida.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
É o tipo de recepção que, em Portugal, só estamos habituados a ver com políticos, estrelas de cinema ou grandes nomes da canção. Mas nunca com um autor de histórias aos quadradinhos. Em França, porém, as coisas são bastantes diferentes, pois a BD goza de uma popularidade gigantesca e constitui um negócio que movimenta milhões de euros por ano. E, quando se trata de Astérix, a festa está garantida.
O personagem criado por René Goscinny e Uderzo em 1959 é muito mais do que um herói popular. É um ícone da BD franco-belga que tem alimentado, com as suas divertidas aventuras, o imaginário de gerações sucessivas de leitores. E constitui também um símbolo por excelência da consciência colectiva francesa, que se revê nas histórias que envolvem a aldeia gaulesa que resiste aos romanos. Surgiu pela primeira vez em 29 de Outubro de 1959 no nº1 da revista Pilotee, desde então, sucederam-se 33 aventuras, filmes de animação, três longas-metragens com actores reais, um parque temático e um sem-número de produtos derivados que alimentam o merchandising da série.
Uderzo, 82 anos, percorre lentamente a exposição comemorativa do 50º aniversário, que abriu ontem, onde está presente um pouco dessa longa e rica história. Detém-se bastante tempo em cada núcleo, comenta os materiais expostos, recorda petites histories associadas. "Divertíamo-nos [Uderzo e Goscinny] a fazer Astérix. Foi feito para entreter os franceses", diz a respeito dos primeiros esboços de Astérix.
Uma foto dos dois autores durante uma sessão de autógrafos inspira-lhe um comentário: "Lembro-me desta fotografia ter sido feita. Foi nos Armazéns Printemps, onde estávamos para dedicar álbuns. Estranhamente, não apareceu ninguém e nós estávamos muito aborrecidos..." Parece surpreendido com a inclusão da velha máquina de escrever Keystone Real em que Goscinny dactilografou os diálogos das primeiras 24 pranchas da primeira aventura da série, Astérix, o Gaulês.
Anne Goscinny, filha do argumentista falecido prematuramente em 1977, chega atrasada e reúne-se a Uderzo. Prosseguem juntos a visita à exposição, evocam memórias, trocam comentários entre si, respondem às perguntas dos jornalistas.
O espaço da exposição não podia ter sido mais bem escolhido: é o grandioso e bem conservado frigidarium - recinto em que os utilizadores das termas romanas entravam, nas únicas de Paris que chegaram até hoje - do Museu de Cluny (Museu Nacional da Idade Média). Apesar da ironia, não surpreende, por isso, que a selecção das pranchas tenha privilegiado as que mostram a arquitectura romana, e sobretudo as piscinas das termas.
Extraídos dos arquivos de Uderzo e da família de Goscinny, os documentos ilustram a génese e desenvolvimento da série ao longo dos anos, assim como os processos de fabricação de uma história, desde os esboços a lápis até à aplicação de cor, passando pela balonagem e passagem a tinta.
O corpo central da exposição é composto por 30 pranchas de Uderzo nunca mostradas em público. E depois há os testemunhos da cumplicidade - que se transformaria numa amizade sólida - entre Goscinny e Uderzo, em particular as viagens feitas (por vezes com as respectivas mulheres) para recolher documentação acerca dos palcos das aventuras.
A celebração dos 50 anos de um herói de BD com a estatura de Astérix não se confina ao interior de um museu. O guerreiro gaulês e os seus amigos já começaram a invadir espaços exteriores de Paris, impondo-se na fachada de monumentos e exibindo-se em instalações colocadas em pontos estratégicos da cidade.
Na sua ambição e espectacularidade, todos estes actos são, sob todos os pontos de vista, estações de uma viagem ao passado, de onde está excluída qualquer referência ao futuro do herói. É muito provável que Uderzo tenha assinado a última aventura no álbum de aniversário - na economia da série, é uma obra atípica, um trabalho de transição destinado a garantir um compasso de espera antes que sejam tomadas decisões de fundo - posto à venda na semana passada.
E, seja como for, já declarou que Astérix lhe sobreviverá - os recentes conflitos com a filha a propósito da venda dos direitos da BD à Hachette não deverão comprometer esta decisão. Por estas razões, é um pouco surpreendente que o aniversário do herói esteja marcado por uma tão acentuada nostalgia, e não pela afirmação de confiança nos próximos 50 anos do gaulês.
Com efeito, todas as atenções estão centradas no que virá a ser a segunda vida de Astérix. A presença do argumentista Christophe Arleston na conferência de imprensa de 8 de Outubro, onde foi revelado o título e capa do 34º álbum da série, suscitou especulações sobre a possibilidade de ele vir a ocupar o lugar deixado vazio por Goscinny.
O crítico e jornalista Didier Pasamonik fazia eco dessa possibilidade no site ActuaBD, revelando que os irmãos Frédéric e Thierry Mébarki tinham sido contratados por Uderzo para "fornecer os desenhos para o merchandising".
A sucessão de UderzoA possibilidade de um autor integral (argumentista e desenhador) suceder a Uderzo não gera muito entusiasmo. O crítico João Miguel Lameiras lembra os maus resultados desta solução após a morte de Goscinny: "Dificilmente a solução que vier a ser encontrada dará piores resultados do que os obtidos com os últimos álbuns de Astérix." O investigador de BD Leonardo de Sá concorda: "Ter dois criadores parece ser a solução mais simples." Neste cenário, a hipótese de ver Arleston (argumento) e Jean-Louis Mourier (desenhador com quem o primeiro tem desenvolvido a série Trolls de Troy) dar vida às aventuras do gaulês era bem vista por Leonardo de Sá: "Eu gostaria de ver o que poderia fazer esta dupla interessante."
Antes de falar em nomes, o investigador português diz que seria desejável estabelecer o perfil do continuador: "Penso que Uderzo irá optar por alguém com um estilo mais próximo do seu. Qualquer assistente podia ser hipótese a considerar. Mas Mourier parece adequar-se a esse perfil, pois é capaz de elaborar os mesmos planos que Uderzo utiliza, além de ter um traço agradável e similar ao do criador de Astérix."
As escolhas do especialista francês Gilles Ratier não são muito diferentes. No que diz respeito ao argumentista, terá de ser alguém atento "à documentação, que tenha genuínas noções de narração em BD e um humor inteligente, coisa rara actualmente no sector". Arleston surge de imediato, mas também, acrescenta Ratier, nomes com o Erroc (série Profs), Yann ou Sergio Salma. Para o desenho, as dúvidas são menores: "Mourier impõe-se, pois é o "verdadeiro" descendente directo do estilo de Uderzo. Mas os desenhadores que ajudam Uderzo há anos [os irmãos Mébarki] também mereciam ter a suas oportunidades..."
O jornalista e crítico francês Laurent Mélikian é da opinião que "a parte gráfica talvez seja a mais difícil" de resolver. "Uderzo é um desenhador de excepção que joga com os estilos e não fez escola, pois é inimitável. O mais seguro é olhar para os artistas do seu estúdio." Pronunciando-se sobre a escolha de um argumentista, Mélikian pensa que "é necessário alguém que saiba casar a aventura cómica e a actualidade". Que outros nomes, além de Arleston, um "bom argumentista que tem dificuldade em sair do seu universo próprio"? Laurent Mélikian cita René Pétillon, que também desenha, "qualidade essencial para imaginar uma história em BD".
Há ainda quem discorde da ideia de dar continuidade a um herói depois da morte dos seus criadores - na linha da decisão de Hergé quanto a Tintin ou da falta de continuidade de Corto Maltese após a morte de Pratt -, certamente a pensar nos exemplos muito irregulares de Blake e Mortimer ou Spirou. É o que defende o investigador e crítico Yves Frémion: "É impossível. Para mim, um herói só pode ter um desenhador, um único autor. Depois de Uderzo, ninguém!"
O P2 viajou a convite das Edições Asa