Depois de emigrar aconteceram-lhe muitas coisas

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"Escreve sobre aquilo que conheces bem" podia ser um mandamento para qualquer aspirante a escritor. O português Ricardo Adolfo sabe desde novo o que é ser emigrante. Nasceu em Luanda em 1974, voltou com os pais a Lisboa e a Mem Martins pouco depois da revolução de Abril, viveu em Macau ainda criança, retornou à capital e, finalmente, em 1999 resolveu deixar o país para trabalhar em Amesterdão, Londres, mundo fora.

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"Escreve sobre aquilo que conheces bem" podia ser um mandamento para qualquer aspirante a escritor. O português Ricardo Adolfo sabe desde novo o que é ser emigrante. Nasceu em Luanda em 1974, voltou com os pais a Lisboa e a Mem Martins pouco depois da revolução de Abril, viveu em Macau ainda criança, retornou à capital e, finalmente, em 1999 resolveu deixar o país para trabalhar em Amesterdão, Londres, mundo fora.

A condição de estrangeiro ajudou-o a escrever sobre o seu país. "Há uma parte que é o cliché de puxarmos Portugal para nós, e depois há outra que é o facto de ganharmos uma perspectiva diferente sobre a nossa realidade. As coisas começam a parecer mais interessantes, mais únicas, mais peculiares do que quando estamos sempre enfiado naquela roda viva", conta-nos, de passagem por Lisboa.

Nas suas duas primeiras obras - o livro de contos "Os Chouriços São Todos Para Assar" (2003) e o romance "Mizé" (2006), ambos editados na Dom Quixote - Ricardo vale-se do quotidiano luso, da linha de Sintra, das conversas de café. "Percebi que a vida aqui é bastante rica para quem quer escrever. Há contradições e tensões muito pequeninas que são fantásticas." 

O novo livro, "Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas", editado pela Objectiva, é diferente. Temos um emigrante de sucesso a escrever sobre emigrantes desgraçados, gente que tem de começar de novo num ambiente hostil. "O título é uma referência ao processo de transformação pelo qual se passa quando saímos de uma realidade e temos de nos recriar noutra. Esse para mim é o morrer, porque a partir do momento em que desembarcas noutro sítio qualquer esquece quem eras, começa tudo do zero."

Ao longo da trama, seguimos um casal emigrado, vivendo nos subúrbios. Ele, Brito, é o narrador, não tem trabalho e passa os dias em casa ou no café a cuidar do filho e com saudades da terra; ela, Carla, trabalha furiosamente para sustentar a família. Vivem numa casa minúscula, não falam a língua daquela gente, perdem-se.

"A minha experiência [de emigrante] foi bem mais fácil que a do livro, porque hoje é relativamente fácil sair quando se está equipado para isso", diz. Há questões logísticas, como alugar casa ou abrir conta no banco. Mas é sobretudo difícil pertencer, voltar a existir. "Há uma tentativa de reflexão sobre como é que se existe perante o outro sem conseguir comunicar. Se não há testemunhas do nosso dia-a-dia, não há vida."

Brito é esse narrador "morto", que "só não imigra totalmente para dentro de si mesmo por causa do filho". Na rua ninguém o conhece e a sua existência apenas se comprova negativamente - um guarda-chuva que o atinge, um encontrão desconhecido. O escritor não nomeia a cidade da acção, chama-lhe Ilha, mas adivinhamos Londres. Em cheio: "O livro foi escrito lá. É influenciado pelo tempo e pela convivência com a imigração londrina, muito mais cruel que a de Amesterdão". A Adolfo interessam-lhe essas franjas das grandes cidades, "espaços mortos, sombrios, onde uma parte da população não percebe bem o que anda a fazer".

O que é que faz um emigrante? Faz pela vida. E procura o melhor, que muitas vezes se escreve Europa. "Estamos fechados numa redoma, a tentar proteger-nos como se toda a gente nos quisesse invadir, quando as pessoas só querem safar-se", prossegue Ricardo. Por isso quis escrever sobre este tema actual, em que "há uma série de espaços mortos, na maior parte ocupados por imigrantes, porque ninguém quer andar por lá".

24 horas na vida de um emigrante

A ideia estava em partir do verosímil, de qualquer coisa pequena que se transformasse numa grande tragédia. "Um metro que avaria pareceu-me tão banal, tão pequeno e insignificante que é tipo: ‘ok, consigo identificar-me com isto'. Com uma série de factores agregados deu para criar esta bola de neve." A bola é uma família em busca da própria casa, depois de uma tarde de compras em que uma mala, com rodas e tudo, passa a acompanhá-la. "A mala começou por ser um triunfo, um pequeno símbolo de ostentação. E põe a questão da relação entre ela [Carla] e ele [Brito]. Ela é que tinha o dinheiro, ela é que decidiu comprar." O escritor interessa-se por este novo papel do homem na sociedade, o homem que fica em casa com os putos, que não trabalha, que depende da mulher. "Não é como há 50 anos, que sabíamos quais eram as regras. E a personagem sofre com isso, com as referências que estão diluir-se." 

Brito vive num auto-boicote permanente, complica, chega à conclusão de que tem de fazer sempre o oposto daquilo que acha que está certo. É um homem com passado por resolver, que estava condenado à partida. "Gosto de dar algo às personagens que em princípio é antipático e depois conseguir que as pessoas se identifiquem com elas", explica Adolfo. Já Carla "é o grande motor da história. Se calhar é uma homenagem às mulheres discretas que são o motor de muitas famílias." 

Brito, Carla, o filho e a mala vão errando por ruas e autocarros. E Adolfo aproveita para dar corpo a estas personagens num livro que concentra a acção em pouco mais de 24 horas. "Foi outro grande desafio perceber como condensar uma narrativa num espaço de tempo tão curto e criar personagens que não sejam totalmente planas." Para isso muniu-se da primeira pessoa, com Brito a aproximar-se do leitor e a guiá-lo pelos cenários mas também a falar de si, da terra e da mulher, aquela que "apesar de já não ter espaço entre as coxas e de ter ganho barriga, ainda tinha pernas. Continuava grossa" (pp. 21).

Estamos com o narrador quando ele fala da terra, essa coisa portuguesa que ganha importância no romance. A terra como o único lugar onde existe aquele homem mais velho, cumprimentado e respeitado por todos. A terra como qualquer coisa orgânica. "Quando traduzimos a palavra para outra língua, não tem esse significado. O voltar à terra, o ter uma terra significa um mundo para nós."

A terra de Adolfo é Mem Martins. Foi lá que passou "muitas horas a tagarelar, a ouvir filosofia barata à volta da mesa de snooker". Isso está toda nos diálogos dos seus livros, coloquiais e certeiros - alguns podem ler-se em www.objectiva.pt/depoisdemorrer. Um exemplo: "se tivéssemos ido logo pra casa já lá távamos/ e se não tivéssemos vindo tamem/ por isso é queu te disse que preferia ficar/ já sabias era?".

"A questão dos diálogos fascina-me. São tão ricos, tão fantásticos, pergunto-me como é que não há mais pessoas a roubá-los. Andamos na rua e ouvimos coisas lindas, ouvimos duas linhas e percebemos que isto agora vai dar esta discussão que é fantástica."

No restante, a linguagem serve a história e a "batalha" do autor. Como em "O Remorso de Baltasar Serapião", de valter hugo mãe. Perguntamos a Adolfo se podemos traçar essa linha. "Gosto muito do valter, acho que desta nova vaga é o autor de que me sinto mais próximo. Estamos a trabalhar no mesmo tipo de personagens, de angústias. Leio esse livro ou o ‘O Apocalipse dos trabalhadores' e vejo ali a briga que também estou a tentar travar." 

Apesar de haver religião neste livro, com um episódio em que Brito dá cabo da fé, Adolfo não compra essa luta. Mas não se coíbe de dizer que há uma perspectiva quase de super-mercado em relação a Deus. "É uma forma comum de lidarmos com a religião: quando precisamos vamos a Fátima e quando não precisamos vamos à Luz."

"Mizé" adaptado ao cinema

Como é que um rapaz da publicidade, imigrante "mais porque sim que por outra coisa qualquer", acaba como Creative Consultant numa curta-metragem do realizador de "2046", Wong Kar-wai? Milagre? Ricardo Adolfo: "É uma história cómica. Estava com uma campanha para o lançamento de uma nova TV da Philips. Fizemos a campanha, criámos o conceito e no fim houve a necessidade de fazer algo que não fosse só um anúncio normal de TV, para ter conteúdos no ponto de venda a passar na nova TV.

O conceito andava à volta de luz e sedução. Adolfo liderou a equipa que escreveu alguns guiões para uma curta-metragem. Quando lhes pediram um realizador, Kar-wai foi o nome unânime. "Não encontrei ninguém como ele a trabalhar estes conceitos. E basicamente telefonamos-lhe." Seguiram-se reuniões em Hong Kong e Los Angeles, o realizador estava a terminar "My Blueberry Nights" (2007), depois seguia para Cannes.

Adolfo acompanhou tudo, da génese da ideia de que resultaria a curta "There's Only One Sun" (2007), à rodagem em Xangai. "Foi uma experiência interessante porque apesar de ele ser escritor não escreve muito. Então cada dia era um guião novo, uma aventura nova." O filme, futurista, recupera a estética - e até boa parte da equipa técnica - de "2046". "O stilling da actriz [Amelie Daure] também é muito parecido com o da Faye Wong [actriz em "2046"]", reconhece o autor.

O seu primeiro romance, "Mizé", que descreve como uma tragédia suburbana, também está em fase de financiamento para adaptação ao cinema, por uma produtora e realizadora inglesas. Tem trabalhado no guião e acredita que acabará por escrever mais para cinema.

Para já - e seja porque privou com Wong Kar-wai ou por outros motivos - não conta regressar a Portugal. "Quanto mais viajo mais quero ser imigrante noutros sítios. Saí com vontade conhecer outras realidades e sinto vontade de conhecer algumas ainda mais distantes, como por exemplo a Ásia, que é uma experiência de imigração bem mais difícil." A começar pela língua.