Arguido no caso Colégio Militar diz que castigos são comuns
Jorge (nome fictício), 13 anos, aluno do Colégio Militar (CM), não gostou de regressar à sua camarata e ver desfeita a cama que já tinha feito nesse dia. E proferiu um insulto. Por volta das 21h, no decorrer da formatura, os mais velhos pediram-lhe explicações. Um dos graduados, 17 anos, estudante com presença habitual no quadro de honra da escola, vestiu uma luva castanha de cabedal, abeirou-se do rapaz e deu-lhe uma bofetada na cara. Acertou-lhe no ouvido. Jorge caiu no chão. Mais tarde, ouvido pela Polícia Judiciária Militar, o graduado explicaria que as "bofetadas de luva castanha" são prática corrente no CM.
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Jorge (nome fictício), 13 anos, aluno do Colégio Militar (CM), não gostou de regressar à sua camarata e ver desfeita a cama que já tinha feito nesse dia. E proferiu um insulto. Por volta das 21h, no decorrer da formatura, os mais velhos pediram-lhe explicações. Um dos graduados, 17 anos, estudante com presença habitual no quadro de honra da escola, vestiu uma luva castanha de cabedal, abeirou-se do rapaz e deu-lhe uma bofetada na cara. Acertou-lhe no ouvido. Jorge caiu no chão. Mais tarde, ouvido pela Polícia Judiciária Militar, o graduado explicaria que as "bofetadas de luva castanha" são prática corrente no CM.
Num outro depoimento, o jovem, então com funções de comandante da 3.ª companhia, agora constituído arguido, disse que é um facto que os castigos não estão previstos no guia do aluno. Mas que na prática são comuns e os oficiais sabem que existem. E enumerou quais: as chapadas de luva castanha são aplicadas quando as faltas dos alunos mais jovens são muito graves; obrigá-los a despir e vestir muito depressa, ou a fazer exercícios físicos são castigos mais leves. Jorge, esbofeteado em Fevereiro de 2007, tem até hoje lesões num ouvido e dores de cabeça frequentes.
Já o director do CM, o major-general Gonçalves Passos, ouvido no âmbito do inquérito do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) relacionado com esta e outras queixas, garantiu que, se são aplicados castigos físicos, tal é feito à revelia da escola. É que estas práticas estão proibidas (o jovem da luva castanha, por exemplo, esteve cinco dias suspenso). Mais: todas as queixas são analisadas. E em 2007/08 foram mesmo aplicadas cerca de 600 punições, lê-se na síntese do seu depoimento.
Os depoimentos do major-general e do aluno (que entretanto já deixou a escola) são apenas dois dos que constam do processo de milhares de páginas, em vários volumes, ontem disponibilizado pelo DIAP para consulta - um dia depois de ter sido tornado público que oito ex-alunos do CM tinham sido constituídos arguidos acusados de seis crimes de maus tratos. E de o Governo ter enviado ao Exército os resultados duma inspecção ao CM e ao Instituto Militar Pupilos do Exército exigindo medidas para corrigir as situações detectadas. Não disse quais.
O porta-voz do Exército, Hélder Perdigão, precisa que o relatório só foi recebido anteontem ao fim da tarde. "Neste momento estamos a analisar o documento, que é bastante extenso, e iremos proceder em conformidade", disse ao PÚBLICO.
Realçou ainda que foi o chefe de Estado-Maior da Exército que sugeriu esta auditoria, depois de em Fevereiro cinco alunos do CM terem sido internados num hospital devido ao alegado excesso de esforço físico. Quanto a este caso, Perdigão explica que foi aberto um processo de averiguações, do qual não resultou qualquer punição.
Um mês de cadeira de rodasO processo do DIAP revela que as vítimas de agressões entre 2006 e 2008 são quatro jovens - um de 11 anos, dois com 13, outro com 14.
Cláudio (nome fictício, como todos neste artigo) é um deles. Andava no 5.º ano (o equivalente ao 9.º no ensino regular) quando, no dia 17 de Outubro de 2006, foi castigado por alunos mais velhos. Primeiro teve que fazer 50 flexões, lê-se no despacho. Depois, mais 50 saltos de cócoras. Quando fraquejou, um graduado deu-lhe um pontapé nas costas e outros obrigaram-no a mais 40 minutos de flexões e pulos. Ficou exausto. Os relatórios médicos descrevem os efeitos do castigo: traumatismo muscular grave, lesões, internamento no hospital.
Cerca de um mês depois, na camarata dos alunos do 4.º ano, estava a decorrer mais um castigo colectivo. Rodrigo, 13 anos, era um dos castigados. A certa altura, um aluno mais velho desferiu-lhe vários pontapés no corpo. Rodrigo ficou com hematomas na barriga, num ombro e nas costas.
Em Fevereiro de 2007, foi a vez de Jorge ser assistido no Hospital da Dona Estefânia, em Lisboa. Disse que tinha levado com uma bola no ouvido. Mas os sintomas que apresentava não eram compatíveis com essa versão. Já o castigo a que foi submetido o irmão, Filipe, 11 anos, a 3 de Janeiro de 2008, perto da sua camarata, fez com que durante um mês tivesse que usar uma cadeira de rodas. Levou três bofetadas de um colega mais velho; ordenaram-lhe que fizesse 60 flexões, 60 saltos de cócoras com as mãos atrás das costas e ainda mais 60 saltos com as pernas flectidas, os pés juntos, os braços esticados. O rapaz fraquejou e foi pontapeado - à frente de colegas, para que servisse de exemplo.
Outras queixas, umas mais vagas do que outras, ficam sem desfecho. Um jovem afirma que uma vítima continua a ser intimidada - o que não ficou demonstrado. Como também não se sabe quem fez telefonemas para a família de duas vítimas. Num deles, diz a acusação, alguém terá dito ao pai dos alunos: "Gostaste da foda ao ouvido do teu filho?"