As canções que a Bíblia lhe ensinou
Sabemos todos como a conversão ao cristianismo não fez grande coisa a Bob Dylan, e a primeira reacção aos títulos das doze canções de "The Life of the World to Come" (para não falar do título) é a de estranheza. Que John Darnielle costume dar os títulos mais estranhos às suas canções já é um hábito ("Hast Thou Considered the Tetrapod?" ou "Sax Rohmer #1" vêm à cabeça). Mas chamar a um álbum inteiro "A Vida do Mundo que Há-de Vir" e intitular cada tema com uma referência a um versículo da Bíblia (sobretudo depois de problemas de saúde que o impossibilitaram de promover condignamente o anterior "Heretic Pride") levanta certamente questões. Vai-se a ver, não há razão para medos: no site oficial o cantor/compositor/guitarrista/embalo criativo dos Mountain Goats diz que não, não deu em cristão-novo. São "só doze canções que a Bíblia me ensinou".
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Sabemos todos como a conversão ao cristianismo não fez grande coisa a Bob Dylan, e a primeira reacção aos títulos das doze canções de "The Life of the World to Come" (para não falar do título) é a de estranheza. Que John Darnielle costume dar os títulos mais estranhos às suas canções já é um hábito ("Hast Thou Considered the Tetrapod?" ou "Sax Rohmer #1" vêm à cabeça). Mas chamar a um álbum inteiro "A Vida do Mundo que Há-de Vir" e intitular cada tema com uma referência a um versículo da Bíblia (sobretudo depois de problemas de saúde que o impossibilitaram de promover condignamente o anterior "Heretic Pride") levanta certamente questões. Vai-se a ver, não há razão para medos: no site oficial o cantor/compositor/guitarrista/embalo criativo dos Mountain Goats diz que não, não deu em cristão-novo. São "só doze canções que a Bíblia me ensinou".
Faz sentido: sempre houve qualquer coisa de pregador sulista, de ruralismo American Gothic nas canções de John Darnielle. Isto, claro, se conseguirmos imaginar Mike Scott, ele dos Waterboys, a cantar sobre morte, droga, vício, paranóia, sofrimento sobre a sua "big music" expansiva e cinemascópica. Ou a entoar canções que podiam ter sido escritas por um Bruce Springsteen virado do avesso em modo lo-fi bucólico armadilhado. Mas a verdade é que Darnielle, chefe de um grupo que é basicamente ele mais os amigos que aparecerem no momento, ao fim de quase vinte anos de discos e uma dúzia de álbuns, já não é comparável com mais ninguém a não ser consigo próprio. E as suas vinhetas lúcidas e devastadoras sobre as fraquezas do ser humano não poderiam ser escritas por mais ninguém. Percebemo-lo quando deu uma de Almodóvar e assinou três obras-primas de seguida - "Tallahassee" em 2003, "We Shall All Be Healed" em 2004, "The Sunset Tree" em 2005. "Get Lonely", em 2006, trouxe uma breve quebra de rendimento, "Heretic Pride", em 2008, restabeleceu o equilíbrio. E agora "The Life of the World to Come" é outro clássico quase instantâneo.
Cada vez mais longe do "lo-fi" dos primórdios e cada vez mais mestre no artesanato de construção de uma melodia orelhuda até à quinta casa apresentada de modo simples e imediato, Darnielle retorna aqui às assombrações surreais que fazem das suas letras retratos brutais de gente perdida numa América demasiado grande para a sua visão periférica reduzida. Não é um ciclo conceptual como o eram as três obras-primas, mas podia ser: a morte e a religião são recorrentes (do místico de "1 Samuel 15:23" ao gótico de "Hebrews 11:40", passando pela dúvida de "Romans 10:9" e pelo apocalipse de "Ezekiel 7 and the Permanent Efficacy of Grace"). E não é difícil pensar que a suave nostalgia de "Genesis 3:23" ou, sobretudo, o adeus dolente a alguém que muito se ama do sublime "Matthew 25:21" (tema maior do novo disco e da carreira dos Goats) partilham algo de autobiográfico com o exorcismo de "The Sunset Tree".
Que não se pense que isso faz de "The Life of the World to Come" "The Sunset Tree nº 2" - o tom do disco está mais próximo do comboio-fantasma psicológico de "We Shall All Be Healed". Embora, ao ouvido não-iniciado, não se encontre aqui nada de significativamente diferente dos discos anteriores, o novo disco prossegue o caminho de "pacificação sonora" de um projecto que soube abrir o seu espectro sonoro sem perder um único dos seus sinais particulares. Antes pelo contrário: cada novo disco dos Goats é mais acessível que os anteriores sem trair a matriz sonora, ao mesmo tempo que as letras de Darnielle se tornam progressivamente mais complexas e perturbantes (e as referências bíblicas não são nada casuais - se formos a ver, todos os discos de Darnielle podiam ser intitulados com versículos da Bíblia). E é nesse limbo entre a luz e a escuridão, tornado nicho unipessoal e intransmissível, que os Mountain Goats continuam a ser um dos segredos mais bem guardados do rock contemporâneo. "The Life of the World to Come" é, outra vez, um dos melhores discos do ano que pouca gente vai ouvir. O que não anda assim tão longe da Bíblia como isso, como o provava a recente sondagem que dizia que eram os cristãos quem menos a lia...