O milagre de Jonas Mekas
Jonas Mekas, o "padrinho do underground nova-iorquino", está em Lisboa para acompanhar a retrospectiva da sua obra feita pelo DocLisboa. Cineasta de génio, a sua obra é tanto a expressão de um universo poético pessoal (muito marcado pelo tema do exílio) como a crónica das "décadas prodigiosas" (50, 60, 70) de Nova Iorque e do seu fervilhante underground artístico e cultural.
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Jonas Mekas, o "padrinho do underground nova-iorquino", está em Lisboa para acompanhar a retrospectiva da sua obra feita pelo DocLisboa. Cineasta de génio, a sua obra é tanto a expressão de um universo poético pessoal (muito marcado pelo tema do exílio) como a crónica das "décadas prodigiosas" (50, 60, 70) de Nova Iorque e do seu fervilhante underground artístico e cultural.
A acção de Mekas, e por isso lhe chamam o "padrinho", foi fundamental para o próprio desenvolvimento desseunderground: como crítico de cinema naFilm Culturee naVillage Voice, como dinamizador da Filmmakers Cooperative, como fundador dos Anthology Film Archives, espécie de cinemateca dedicada aos cinemas de vanguarda. À beira de completar 87 anos (na próxima véspera de Natal), e praticamente 50 anos depois de chegar a Nova Iorque vindo da Lituânia arrasada pela Segunda Guerra, Mekas não perdeu o sotaque cerrado do Norte da Europa e troca o "w" por "v". Fala devagar e pausadamente, à procura das palavras. Enverga umaT-shirtcom oslogan"stop wars" e acompanha a entrevista com um copinho de vinho branco, gelado.
Uma parte importante da sua vida foi dedicada a promover e a mostrar o trabalho de outros. Como é que se sente numa ocasião destas, em que é a sua própria obra que está no centro das atenções?
É bom, mas não é a mesma coisa. Eu gosto muito de ajudar e de mostrar o trabalho de pessoas que admiro e respeito. Se vim a Lisboa, nem foi tanto para apresentar os meus filmes mas porque toda a gente me dizia "tens que conhecer Lisboa, é uma das cidades mais bonitas da Europa". Vim para ver Lisboa. E agora que aqui estou, fico muito contente por poder confirmar: Lisboa é realmente muito bonita.
Mas, então, mostrar os seus filmes não é tão compensador como mostrar os filmes de outros?
Não, não. Na verdade não me preocupa muito se os meus filmes são mostrados ou não são mostrados. É bom, é simpático. Mas entusiasmo-me a fazer os meus filmes, não a vê-los. Normalmente nem acho muita piada a festivais, e ao ambiente dos festivais. Raramente os frequento. Estar aqui é uma excepção.
De certa maneira, são filmes que fez para si próprio...
Sim, para mim e para os meus amigos. Sei que são vistos em todo o lado, e que são apreciados, mas... É como se fosse outro mundo, fico de fora dele. Estou na minha obra, no meu mundo.
Começou a filmar pouco depois de chegar aos Estados Unidos, no final dos anos 40. Houve alguma coisa, alguma razão, para pegar numa câmara e começar a filmar?
Acho que não consigo responder a essa pergunta. Ou por outra, consigo. Um poeta começa a escrever poemas porque leu muita poesia. A poesia inspira os poetas, a música inspira os músicos. E ver filmes inspira os cineastas. Acho que comecei a fazer filmes porque via filmes e me entusiasmava com o que via. Mas isto não é uma boa resposta porque muita gente vê filmes e não faz filmes. A partir daqui, não tenho resposta [risos]...
Já se interessava por cinema na Lituânia?
Não, não. Na Lituânia não havia nada. Só miséria, e depois a guerra, exércitos, campos de desalojados. Depois fui parar à América. Não foi uma escolha, fui levado para lá por uma organização das Nações Unidas. Cheguei a Nova Iorque, olhei para Nova Iorque, e disse: "Estou em Nova Iorque, é um milagre!" Foi preciso uma guerra mundial, milhões de mortos, para eu chegar a Nova Iorque - veja lá a que preço ficou. Umas semanas depois consegui dinheiro emprestado e aluguei uma câmara. O meu cinema começou aí: Nova Iorque, 1949.
Que é o que vemos em Lost, Lost, Lost, de 1976...
Uma parte do material que então filmei acabou por ser montado em Lost, Lost, Lost...
E sentia-se perdido nessa altura?
Sim, sim. Mas Nova Iorque salvou-me. Rapidamente comecei a conhecer poetas, cineastas. E tudo aconteceu muito depressa nesse período que conduziu ao final dos anos 50 e princípio dos anos 60. Foi uma época muito entusiasmante, no cinema, no teatro, na música, nos happenings... Cheguei a Nova Iorque numa altura muito boa.
A sua acção também contribuiu para a riqueza da época...
Digamos assim: eu ajudei-os, e eles ajudaram-me.
Foi esse espírito de ajuda mútua que conduziu à fundação da Filmmakers Cooperative?
Nessa época Nova Iorque tinha uma pequena comunidade de jovens cineastas, interessados em usar técnicas modernas. Era um novo cinema a chegar. Mas os distribuidores não queriam pegar nestes filmes. Diziam que eram amadores, que não eram comerciais. E então dissemos, OK, não precisamos de vocês, vamos criar o nosso circuito de distribuição. Correu muito bem, e continua a correr muito bem.
O ambiente artístico na Nova Iorque contemporânea tem alguma coisa de comparável ao que era nesses tempos?
Não. Continua a ser uma cidade muito activa. Na música, sobretudo. No cinema e na pintura acho que está bastante... morta. Não há a mesma energia. Nos últimos 30 anos deixou de haver uma capital mundial da arte. Nos anos 20 era Paris. Depois, nos anos 60, era Nova Iorque. A partir do final dos anos 70 tornou-se uma coisa mais dispersa. Há uns centros, nos EUA, em França, em Inglaterra, na Alemanha, mas não há uma capital. Não há uma cidade de que se diga: é ali que as coisas se passam. E se há é sempre muito efémero, dura umas semanas. Aparece um artista em Pequim e fala-se de Pequim durante dois meses, depois aparece um artista na Nova Zelândia e toda a gente se esquece de Pequim.
Mas este descentramento não traz também coisas positivas?
O que nos falta é um local que concentre as energias. Como Paris no tempo dos surrealistas. Por outro lado, os tempos mudaram. As novas tecnologias, a Internet... É difícil conhecer tudo o que se está a passar. Se calhar daqui a 20 anos alguém vai descobrir que 2009 foi um ano riquíssimo... [risos]. Os anos 80 foram uma tristeza, mas agora há quem diga que não, que foi uma época interessantíssima [risos]....
Mas, em resumo, a situação actual não é muito entusiasmante. Aquele tipo inglês, como é que ele se chama, Damien qualquer coisa...
Hirst?
Hirst. Fez aquele armário de farmácia... [esgar, encolher de ombros e gargalhada]. Dizem que ele conseguiu fazer a peça sem fisicamente lhe tocar... O meu radar não anda a captar nada de muito entusiasmante. É tudo muito difuso.
E o seu trabalho, actualmente?
Em 2007 cumpri o meu 365 day project. Um filme por dia durante o ano inteiro, entre os três e os dez minutos. Mas nos últimos anos tenho-me aproximado cada vez mais das instalações vídeo. Interessam-me muito as maneiras de tornar o espectador num co-realizador, e este tipo de trabalho em vídeo abre-me possibilidades. Também me interessam muito assound pieces, objectos construídos apenas com o som. E ando a trabalhar algumafootage [metros de filme] antiga.
Ainda tem muita por montar?
Ainda tenho. Mas o projecto em que estou a trabalhar não é um filme, é uma peça para a Serpentine Gallery [em Londres].
Nunca cortou os laços com as suas raízes lituanas. São um tema de vários filmes seus, e além disso tem apoiado activamente as artes e os artistas na Lituânia. Sente-se mais americano ou mais lituano?
Eu sou lituano!... [puxa da carteira o passaporte lituano e mostra-o]. Claro que também sou americano. Mas gosto mesmo de pensar em mim é como cidadão do mundo. E acabo de ficar muito contente por perceber que encontrei em Lisboa mais uma cidade onde seria capaz de viver. Tenho uma listinha em permanente actualização com as seis cidades que me parecem as melhores para viver. E Lisboa acabou de entrar nela.
Ah sim? E que cidade foi expulsa da lista?
Marselha.