Natural é ser branco e ter carapinha
Ora bem: se já há meloas quadradas, cravos azuis, brancos de carapinha e negros de cabeleira loira, porque não há-de haver em Portugal música nigeriana roubada aos americanos que a receberam dos escravos africanos?
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Ora bem: se já há meloas quadradas, cravos azuis, brancos de carapinha e negros de cabeleira loira, porque não há-de haver em Portugal música nigeriana roubada aos americanos que a receberam dos escravos africanos?
O nigeriano - convém explicar - que roubou aos americanos música que, para sermos rápidos e simplistas, estes herdaram dos escravos africanos, era Fela Kuti. Kuti observou James Brown em concerto e quis fazer música idêntico à do "hardest working man in the business". Conjugando o que tinha ouvido com os padrões rítmicos do baterista Tony Allen, criou uma música de inimitável (im)precisão métrica, suada e explosiva, que se estendia por longos e longos minutos.
É essa a música que os portugueses Cacique 97 fazem hoje, é essa a música que se pode ouvir no disco de estreia, "Cacique 97" - bastamente elogiado no site da Ok Player, editora do colectivo de hip-hop The Roots, que fez uma crítica muito positiva do disco.
Mas os Cacique não começaram imediatamente por ser um colectivo de funk com excesso de testosterona. Quando em 2005 Milton Gulli, vocalista da banda (que desempenha a mesma função nos Cool Hipnoise), se juntou a Marcos Alves (irmão do pianista Ruben Alves e músico desde os 10 anos) e Gonçalo Oliveira eram, fundamentalmente, um projecto caseiro.
"Fazíamos uns beats em casa por brincadeira, música electrónica, black music por divertimento", conta Milton, rapaz que era para nascer em Moçambique mas, devido à independência, acabou por nascer em Lisboa - e depois ainda viveu na Arábia Saudite e na Madeira.
Assim que acabaram o primeiro tema acertaram num registo que os conquistou ao ponto de quatro anos depois a canção, "Quero tudo", não ter ficado de fora do álbum.
"Era um dos vários temas que o Gonçalo tinha feito", conta o vocalista. "Só tinha guitarra como instrumento analógico, depois tinha, em Midi, teclas, baixo". Os temas que coleccionavam eram todos assim: com muita electrónica e poucos instrumentos analógicos a dominar. Marcos e Gonçalo traziam os temas crus, juntavam-se os três, discutiam e chegavam a um consenso. "Não havia um líder assumido", recorda Milton.
Ouvindo "Quero tudo" e ponderando por que caminhos poderiam levar a canção, o trio enveredou pelo oposto: em vez de três moços fechados nas suas caves, optaram por "um som analógico" em grande: "Quisemos logo uma orquestra afro-beat com dez, quinze elementos, e arranjámos um estúdio na Meia Laranja. Tomámos a decisão porque gostávamos muito de afro-beat e em Portugal não havia nada semelhante. Quando começámos a tocar com uma orquestra - o que queríamos muito - tornou-se um vício".
Lá fora
O afro-beat, diz Milton, é de há muito um dos seus géneros preferidos - ele é, confessa, um melómano desde tenra idade, à conta do pai, que tinha o hábito de comprar muita música, especificamente em vinil.
O primeiro concerto foi no Clube Mercado, em Lisboa, em finais de 2005. Na altura, concluíram, "estávamos enferrujados: os metais ainda não estavam todos certinhos e a atacar todos ao mesmo tempo". A decisão foi trabalhar cada vez mais nos metais, para atingir o grau de força necessário nas orquestras afro-beat.
Em 2007 Gonçalo saiu: emigrou para Berlim. Foi "à procura de melhores condições de vida, porque cá só tocava com os Cacique". Entretanto "foi pai, faz DJ sets, está a viver melhor". A decisão do teclista compositor - que ainda tem três temas seus no disco - foi "repentina: disse ‘Vou viver para Berlim'. Ninguém estava à espera".
Nessa altura os Cacique estiveram algum tempo parados, sem saber o que fazer. A solução foi adicionar novos membros, sendo que uma boa parte da banda vem dos Cool Hipnoise. "Aí sim", diz Milton, começaram a "estruturar mesmo bem os temas, porque até então ainda tocávamos muito à base de sinais".
Concertos e mais concertos foram afinando a orquestra, mas do registo ao vivo para o disco vai, diz Milton, uma grande diferença: "Ao vivo os temas têm 15 minutos, mas em disco preferimos temas mais curtos para que as pessoas consigam ouvir. Ao vivo é que esticamos o mais que podemos, porque o afro-beat é uma música de hipnose, de transe".
Curiosamente o resultado não é puramente afro-beat: o som tem hip-hop, música moçambicana (origem de alguns dos elementos da banda), elementos que soam ao funk carioca dos Banda Black Rio, um certo toque guineense e tudo e mais o que lhes deu na proletária gana.
Milton acredita que "o projecto é internacionalizável", sendo essa uma das razões para o libreto estar em inglês. Os Cacique mandaram o disco "para todas as editoras de world music". A Luaka Bop "gostou do disco, mas não edita afro-beat por isso mandou-o para algumas rádio de Nova Iorque".
O resultado, como pode ser aferido pelo disco e pelas críticas de sites internacionais, não ficou abaixo das expectativas e o "lá fora" não parece ser ilusão. Até porque natural, hoje em dia, é um negro ter cabeleira loira e um branco carapinha.