De homem não passamos, a mulher não chegamos
Deborah é nome judaico, diz a pagela por cima do espelho do camarim. E diz mais: "É profetisa, juíza, poetisa e esposa". Parece muito, mas ainda é pouco. No mundo de Deborah, de Deborah Kristal, pode-se ser o que se quiser: corista de cabaret berlinense, estrela de musical americano de grande orçamento, cantora em glória no Olympia, Simone de Oliveira em revista de La Féria. Deborah Kristal é uma personagem, um travesti de Lisboa. E por isso pode ser tudo o que sonhar - como também pode ser tragédia e vício, dúvida, desengano, tristeza. Ela e os outros todos que se vestem ou já se vestiram de mulher para fazer "playback" das canções das grandes divas. Um pé no estrelato, outro no fundo do mar.
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Deborah é nome judaico, diz a pagela por cima do espelho do camarim. E diz mais: "É profetisa, juíza, poetisa e esposa". Parece muito, mas ainda é pouco. No mundo de Deborah, de Deborah Kristal, pode-se ser o que se quiser: corista de cabaret berlinense, estrela de musical americano de grande orçamento, cantora em glória no Olympia, Simone de Oliveira em revista de La Féria. Deborah Kristal é uma personagem, um travesti de Lisboa. E por isso pode ser tudo o que sonhar - como também pode ser tragédia e vício, dúvida, desengano, tristeza. Ela e os outros todos que se vestem ou já se vestiram de mulher para fazer "playback" das canções das grandes divas. Um pé no estrelato, outro no fundo do mar.
A explosão deu-se a seguir ao 25 de Abril. "Lisboa foi inundada pelo travesti", sentenciava em Fevereiro de 1977 a revista "Opção", que calculava em meia centena o número de travestis que actuavam nos clubes lisboetas. "Por algum tempo, estes espectáculos serão uma espécie de alavanca, colorida, provocante, de um atrevimento inaudito por vezes, de uma certa ‘movida' lisboeta", escreveu Manuela Gonzaga na biografia "António Variações - Entre Braga e Nova Iorque" (2006).
Mas vieram os anos 80. E foi como se alguém pusesse fim à festa. O país normalizou o excesso pós-revolucionário, as pragas instalaram-se: sida, heroína. O travestismo não resistiu e a meio de 90 era já um fantasma.
É aqui que entra "Morrer Como Um Homem", o filme de João Pedro Rodrigues que se estreou esta semana, depois de passar por Cannes, em Maio, e ter sido o filme de abertura do festival Queer Lisboa, em Setembro. "Morrer Como Um Homem" fixa o tempo lisboeta de uma Tónia, travesti e homossexual, em crise de identidade de género, de carreira e de profissão. O realizador, 43 anos, resume: "Acho que há realmente o sentimento do fim de uma época, esse é também um dos temas do filme. Para mim a Tónia é como a Lola Montès que, no filme de Max Ophüls com o mesmo nome, representa o espectáculo da sua própria vida. No fim do meu filme a Tónia representa o espectáculo da sua própria morte."
Da década de 80 para a década de 90, a cena travesti foi dominada por Ruth Bryden. "Vedeta de então", classificou o cronista social Carlos Castro no livro de memórias "Solidão Povoada" (2007). "Uma personagem controversa [com] um percurso de tragédias mil", acrescentava. De certa forma, é a história de vida de Ruth Bryden que vemos em "Morrer Como Um Homem" - o funeral dela, diz quem lá esteve, foi igual ao do filme.
João Pedro é cauteloso no assumir dessa influência: "A vontade de fazer este filme veio, em parte, de me ter cruzado nos anos oitenta e noventa com artistas como Lydia Barloff, Ruth Bryden, Salomé, Deborah Kristal, Cindy Scrash, Jenny Larrue". Mas sublinha: "O meu filme não pretende ser um retrato nem dos travestis nem dos transsexuais, é uma ficção."
Rui Catalão, 38 anos, confirma, mas é mais claro: "Em 1999, como jornalista do PÚBLICO, escrevi um artigo de fundo sobre a Ruth Bryden, que tinha morrido dias antes. O João Pedro Rodrigues guardou esse artigo durante anos, até que por volta de 2005 me convidou para trabalhar com ele no argumento. A inspiração inicial foi a Ruth Bryden, mas no mesmo dia em que nos encontrámos ficou definido que queríamos uma ficção, interessava-nos um melodrama, mais do que um filme biográfico."
O fascínio de fascinar
Melodrama, portanto. Estertor do travestismo artístico lisboeta. Declinar de um tempo sob a forma de Tónia. Fernando Santos, 49 anos, Tónia no filme, Deborah Kristal todos os dias na discoteca Finalmente, em Lisboa, em registo lírico: "Os anos 80 em Lisboa foram os nossos loucos anos 20, tínhamos o fascínio de fascinar, tudo estava na moda, viver a noite era uma alegria e claro que isso tinha de passar". Dama em seu camarim, enquanto se maquilha: "Aquilo foi a loucura e o querer experimentar mais e mais, viver o mais intensamente possível e depois foi o rebentar da represa." Juíza em seu trono, antes de entrar em cena: "O João Pedro Rodrigues foi honesto, 80 por cento do filme é o retrato exacto do travestismo da época." O realizador diz que "Morrer Como Um Homem" "não se passa no passado", mas a verdade é que o tempo do filme é abundantemente indefinido.
O ponto pode ser este: foi com o travestismo que Lisboa exaltou durante as décadas de 70 e 80 uma condição homossexual que era reprimida pela sociedade, pela lei (só em 1982 o Código Penal deixou de criminalizar gays e lésbicas por o serem) e até pela ideologia de esquerda: "A homossexualidade é encarada como uma demonstração eloquente da decadência burguesa", explica o professor universitário e estudioso da cultura "queer" António Fernando Cascais no artigo "O Associativismo GLBT Português", publicado na "Revista Crítica de Ciências Sociais" (2006).
Não era, contudo, uma novidade nos palcos portugueses. "O travesti na revista era uma instituição desde que José Ricardo, em finais do século XIX, imitava na perfeição Sarah Bernhardt, e se quiséssemos recuar mais, no século XVIII, no tempo da senhora D. Maria I, que proibiu as mulheres de aparecerem no palco, era tudo travestis", escreve o ex-director do Museu Nacional do Teatro, Vítor Pavão dos Santos, num texto incluído no programa do musical "A Gaiola das Loucas", de Filipe La Féria - peça em que são lembradas Guida Scarlatty (Carlos Alberto Ferreira), Lydia Barloff (José Manuel Rosado), Belle Dominique (Domingos Machado) e Ruth Bryden (Joaquim Centúrio de Almeida).
A diferença está em que a seguir ao 25 de Abril o travestismo já não era apenas funcional. Era programático. Não servia o interesse de um encenador, nem era praticado independentemente da orientação sexual dos intérpretes. Celebrava o fim das formalidades, o retalhar da moral e dos bons costumes, o orgulho de se ser homossexual.
O primeiro passo foi dado por Carlos Alberto Ferreira em Outubro de 1975 com o Scarlatty Clube, ao cimo da Rua de São Marçal, em Lisboa, onde Ruth Bryden se iniciou em 1977. A seguir, várias casas copiaram a ideia. Ver homens em mulher tornou-se popular e chique. "O público que actualmente vê travesti pode ser dividido em três grandes grupos: os que vão por curiosidade, os que vão porque é moda e os frequentadores assíduos", dizia, em 1981, ao jornal "O Ponto" o travesti Carlos Guia.
Tal como hoje, os espectáculos recorriam a uma estética "camp" americanizada embrulhada na linguagem da revista à portuguesa. "O espectáculo no Scarlatty é composto, na sua maior parte, por números portugueses, destacando-se entre eles o fado, uma paródia à Heidi, uma rábula a Walt Disney e uma homenagem a Mirita Casimirio", informava a "Opção" de 1977. "No Travelot [actual Trumps] merece especial relevo a interpretação do tema da ‘agulha e do dedal' de Beatriz Costa, e ‘Cantiga da Rua', para além das interpretações de Marilyn Monroe e de Julie Andrews." Por fim: "No Porão da Nau [que ficava junto à Maternidade Alfredo da Costa] uma ‘charge' a Liza Minelli e a Tino Rossi são os dois pontos altos do espectáculo."
Veteranos de guerra
Voltemos a Deborah (Fernando Santos). Há mais de 25 anos, com interrupções pelo meio para actuar em outras casas, é visto no Finalmente, concorrida discoteca gay. Vestido como um homem, toca à campainha, passa pelo porteiro e pelos clientes que se amontoam. Vai para o camarim, lendariamente apertado, quente e místico, atravancado por roupas, perucas, caixas de sombras, borrifadores, batons, posters de Angélico, de Dolce & Gabbana e do José Fidalgo. Uma Nossa Senhora em miniatura, duas ventoinhas no máximo, o último disco de Whitney Houston.
Despe-se, maquilha-se durante três quartos de hora e aos poucos torna-se feminino. Entre as três da manhã entra e sai do mini-palco, alternando com os outros travestis que com ele trabalham, e aí imita cantoras célebres em formato orgulho gay e pose rainha da noite. "De homem não passamos, a mulher não chegamos", repete muitas vezes, como que para esconjurar qualquer ambiguidade que se queira instalar.
João Pedro Rodrigues foi ao Finalmente buscá-lo para protagonista de "Morrer Como Um Homem". A escolha parece óbvia. É a vedeta do travestismo lisboeta de hoje, diz-se que o sucessor directo de Scarlatty, Barloff e Bryden. Conheceu-as, viveu os anos 80 como travesti e jovem fascinado pelo fascínio daquele tempo, passou pelas desgraças e não foi ferido de morte. "É um actor extraordinário", diz o realizador. "Encontrámo-nos pela primeira vez durante um ensaio à tarde no Finalmente. Depois encontrámo-nos outras vezes num café, até que um dia apareci com uma primeira versão do argumento para o Fernando ler. Não o conhecia pessoalmente, mas depois de vários encontros em que ele me falou da vida, tanto da dele como da de outras pessoas, começou a ser evidente que só ele poderia ser o protagonista".
Outra protagonista: João Bastardinho (Cindy Scrash), 44 anos, natural do Algarve, transsexual. ("Gosto muito dos shows que ela faz, para mim é como uma actriz do Fassbinder dos anos setenta", diz Rodrigues). Começou a actuar no Verão de 1981 ou 82, não sabe precisar, e ainda continua. "Tinha estudado dança clássica durante quatro anos no Barreiro e cheguei a fazer umas aulas na Companhia Nacional de Bailado e com o Rui Horta, num estúdio da Praça da Alegria", recorda. "Por isso, quando me estreei não era transformista, era bailarino do espectáculo ‘Caramela C'est Moi', que a Ruth Bryden tinha no Finalmente. Foi a minha madrinha e foi ela que me baptizou Cindy Scrash".
Também Cindy regista o fulgor de 70/80 e o desastre que se segue. "O travesti começou a ficar banal e o comportamento de alguns artistas já não era tão bom: vendiam às casas trabalhos com pouca qualidade, andavam bêbados pelos bares a criar má imagem junto do público". E a droga? Responde Fernando Santos: "Deixou muitos pelo caminho, sim, e talvez ainda hoje exista, embora as drogas sejam outras e não tenham os mesmos efeitos visíveis de degradação".
No já citado artigo de 1981 de "O Ponto" são apontadas algumas causas da decadência do travesti, como a "falta de dinheiro, falta de locais com condições mínimas de trabalho, inexistência de autores, carência de preparação teatral dos próprios travestis". Mas falta um elemento: os caminhos ínvios da vida pessoal. Se uns tinham profissões diurnas, em cafés, lojas, repartições públicas, e se dedicavam ao travestismo como passatempo, outros não sabiam fazer mais nada. Porque o que ganhavam não era muito, deixavaram-se atrair pela prostituição.
Rui Catalão faz uma análise quase sociológica. "Estavam reduzidos a dois trabalhos: clubes nocturnos ou prostituição - situações de risco em ambos os casos, pelo contacto com as drogas, o álcool e a promiscuidade sexual", diz o argumentista.
"As marginalidades intersectam-se", acrescenta António Fernando Cascais. "Pequena criminalidade, toxicodependência, prostituição", precisa. Se bem que, nota Catalão, isso não fossem causas, mas sintomas. De quê? "De pessoas anatematizadas, cujas vidas se tornavam insuportáveis". Neste quadro, veja-se o rancor com que falava Ruth Bryden: "Sou importante para as pessoas poderem descarregar em cima de mim os fantasmas que, coitados, não conseguem descarregar de outra maneira. Eu tenho que saber estar nos locais como homossexual que sou, assumidíssimo. Eles podem-se incomodar por eu ser homossexual, mas eu não me incomodo nada por eles serem normais, se é que o são" - disse à revista "Sábado", em 1992, sete anos antes de morrer, vítima de sida.
Neste contexto de marginalidade forçada e incorporada, João Pedro Rodrigues pegou numa figura fundamental: o macho que domina o travesti. O chulo. Em "Morrer Como Um Homem" essa figura é Rosário, namorado de Tónia. Rosário rouba-lhe dinheiro para a heroína e exerce poder com frases destas: "Vais ficar sempre assim? Não és carne nem peixe. És um homem com mamas". Tónia é-lhe devota, cala e consente.
"Quem estabelecia relações com travestis eram normalmente rapazes da província que gostavam de hipertrofiar a sua masculinidade, mas só podiam fazê-lo junto de outros ainda mais desfavorecidos, ou seja, os travestis", explica Cascais. "Normalmente, esses rapazes diziam-se bissexuais, viviam em casa do travesti, dependiam economicamente dele porque não trabalhavam e se eram toxicodependentes roubavam-no". O ascendente vinha-lhes "da ainda maior fragilidade do travesti", prossegue. "Se esses rapazes se relacionassem com mulheres, perderiam o controlo da situação, porque não tinham maneira de as sustentar, comprar presentes e levar a jantar fora, como era costume na época na relação homem-mulher. Estando com um travesti, tinham margem de manobra e podiam manipular".
Isso, hoje, suavizou-se. Jenny Larrue, 36 anos, a travesti com que Tónia compete pela cabeleira loira, começou no Finalmente em 1992 ("é misteriosa como uma feiticeira ou uma fada, sempre me fez lembrar as fotografias que Leni Riefenstahl fez em África na tribo dos Nuba, tem uma presença sobre-humana", nota João Pedro). Nunca conheceu a época dourada, mas sabe que "o estigma era tão grande que os travestis se agarravam a quem estava por perto". Mas "a mentalidade das pessoas mudou, já ninguém quer estar numa relação desse género, as pessoas buscam equilíbrio e se ele não existe deixam-se."
Fernando Santos: "Os exemplos maus serviram para os que vieram a seguir aprenderem alguma coisa. Eu perdi muitos amigos e conhecidos da noite e isso foi um sinal, um alerta".
Apesar de tudo, não é fácil encontrar no discurso dos sobreviventes a assunção desses caminhos ínvios ou sequer a referência a quem os possa ter percorrido - como se um código de ética não escrito limitasse o que deve ser contado a quem está de fora. No abstracto, portanto, Jenny Larrue e Cindy Scrash preferem desvalorizar as sombras. "Não vivemos em função da noite, trabalhamos à noite, como um polícia ou um enfermeiro que têm de fazer turnos", diz Jenny. "Não é por ser discriminada que uma pessoa bebe muito ou experimenta drogas. E também nunca senti que houvesse grande confusão entre prostituição e travesti como arte".
Assim não pensa Catalão. "Os travestis e transsexuais sofrem de comportamentos pós-traumáticos em tudo semelhantes aos dos veteranos de guerra. Para todos os efeitos, são vítimas da guerra: uma guerra psicológica que os discrimina, de forma violenta, cruel e sistemática."
Ainda o argumentista, referindo-se aos travestis de palco e aos de rua que conheceu durante as várias entrevistas preparatórias: "Não conheci um único travesti ou transsexual que fosse uma pessoa banal. São pessoas ‘bigger than life', para o melhor e para o pior. Muito do que elas são, fazem e representam é uma afronta ao sentido de realidade."
Cindy Scarsh sobre o travestismo hoje: "Tem uma saúde média, há poucos sítios para actuar e a falta concorrência leva a que muitos artistas se acomodem".
Deborah Kristal em resposta à pergunta sobre como vivem neste início de século. "Vivem a balões de soro, como toda a gente. Ligo a televisão e vejo as cheias, a guerra no Iraque, a guerra no Irão, a gripe A, a corrupção, um Adamastor em cada esquina. Vivemos todos, não são só os travestis, com medo do medo."