Ana Moura, o mais natural possível
Não há uma tradução portuguesa curta e lapidar para a expressão inglesa "workaholic". A palavra "trabalhadeira" não soa adequada e a expressão "viciada em trabalho" cansa só de pensar em dizer. Mas é muito provavelmente adequada para Ana Moura: um ano depois de um par de concertos nos Coliseus ela já tem disco novo, "Leva-me Aos Fados", um disco que marca uma viragem para uma imagem - e um fado - mais terra-a-terra-
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Não há uma tradução portuguesa curta e lapidar para a expressão inglesa "workaholic". A palavra "trabalhadeira" não soa adequada e a expressão "viciada em trabalho" cansa só de pensar em dizer. Mas é muito provavelmente adequada para Ana Moura: um ano depois de um par de concertos nos Coliseus ela já tem disco novo, "Leva-me Aos Fados", um disco que marca uma viragem para uma imagem - e um fado - mais terra-a-terra-
Desde esses concertos, diz, teve apenas "uma semana de férias", de resto esteve "quase sempre em digressão": "mais de 90 concertos dados só o ano passado". Para proteger a voz, agora, quando anda em digressão, "por cada três dias de concertos consecutivos" coloca "dois dias de descanso", o que na prática implica estar fora de casa bem mais que os 90 dias dos concertos. E no meio ainda houve tempo para escrever um disco, um disco que tem a importância acrescida de se seguir à consagração dos Coliseus, palcos que ele nunca tinha pisado.
"Os Coliseus foram uma consagração", diz, no seu habitual timbre pausado. "Foram duas noites marcantes, porque as casas estavam cheias e aos primeiros acordes de guitarra as pessoas reagiam porque já conheciam os temas".
Lá fora e dentro dela
A questão dos Coliseus não é de somenos importância, para mais numa fadista que começou "lá fora, com agentes estrangeiros e queria ver o trabalho reconhecido cá". Hoje Ana Moura passa uma boa parte do seu tempo a tocar na Alemanha. E a Holanda, diz, já é "uma segunda casa": "Quando toco no Norte da Europa fico sempre em Amesterdão, que é uma cidade que me agrada muito".
Ela não tem explicação para isto. Às vezes, quando os concertos acabam e está a dar autógrafos, pergunta ao público "o que os faz gostar tanto de fado", e respondem-lhe que "há semelhanças com a música tradicional holandesa". "Deve ser uma música introspectiva", conclui, admirando o grau de conhecimento de fado que os holandesas adquiriram: "É engraçado que quando usamos um instrumento que não pertence ao fado tradicional eles já perguntam porque é que o usámos e se isso vai desvirtuar o fado".
Por tudo isto "Leva-me Aos Fados" é um disco de responsabilidade acrescida. Porque hoje ela já tem "a sensação de já ter conquistado alguma coisa". Aconteceu-lhe na digressão pelos EUA, em que tanto em Boston, como em Los Angeles ou Nova Iorque "estava tudo esgotado". E acontece-lhe "por vezes no final de um concerto", quando sente que cantou "como se fosse a última vez, nem que no dia seguinte houvesse um concerto supostamente mais importante".
Podíamos portanto esperar um disco conceptual ou que carregasse ainda mais na imagem de sensualidade que lhe foi sendo associada ao longo dos anos.
Ela rejeita ambas as hipóteses, a começar pela questão da sensualidade: no libreto, bastante discreto, não surge com os habituais vestidos glamourosos e decotados, antes vestida como uma mulher que vai apanhar o metro para ir para o trabalho. (Ok, uma mulher com qualidades acima da média que vai apanhar o metro para ir para o trabalho.)
"Houve uma intenção de diminuir essa imagem de sensualidade", admite. "Até porque, confesso, essa imagem dos vestido vermelhos nunca foi nada que desejasse. Só que hoje estou muito mais integrada e a minha opinião é que vale". Ana diz ter a impressão que "essa imagem diminuía a importância da música" pelo que quando chegou a hora de preparar as fotos do libreto o que pensou foi "‘Vamos lá a ser o mais natural possível". Acaba com o assunto com uma afirmação curiosa: "Perguntam-me muitas vezes pela sensualidade, mas acho que a sensualidade está associada à música que canto". A frase lembra aquela tirada de mestre Paredes que dizia que as pessoas não gostavam de o ouvir tocar, mas sim do timbre da guitarra.
Mas no que toca ao fado-fado este também é um disco terra-à-terra. "Nunca houve", diz sem o mínimo embaraço, "a intenção de passar uma mensagem única". Foi preparando o disco "na estrada ou quando voltava a Portugal". Razões racionais para entrar este ou aquele fado não há: "Escolho um fado porque sim: porque entrei numa casa de fados, ouvi e apaixonei-me por ele. Ou porque alguém me oferece um poema e quero cantá-lo". Por razões logísticas, complementa, o "disco foi sendo gravado nos intervalos das digressões".
A haver algo que una estes temas é apenas o simples facto de "na vida levarmos sempre rasteiras" - "e é disso que se fala neste disco", conclui, antes de acrescentar que acha que em "Leva-me Aos Fados" "até os problemas de que se falam acabam de forma positiva".
Como exemplo dá a letra de "Caso Arrumado", um triângulo amoroso em que uma fadista usa o poder da sua garganta para afastar uma mulher e conquistar um homem. "Na letra [de Manuela de Freitas] vejo ali um lado determinado" que, diz, bate certo o seu actual estado: "Neste momento não me apetece nada estar a ser submissa, antes quero independência". Confessa que a letra não foi escrita propositadamente para si mas quando a fadista Aldina a leu disse a Manuela de Freitas que o poema "só podia" ser para Ana Moura.
Sem vergonhas, assume que "este último é completamente auto-biográfico", assinalando que agora sente-se finalmente "capaz de assumir uma coisa destas".
É isto que se pode esperar de "Leva-me Aos Fados". Isto e fado que é fado, alguns momentos de fado que não é bem fado e um fado que não é de certeza fado. Digamos que: Ana interpreta alguns alguns temas de forma mais próxima do registo canção. Mas ainda assim ela vê esses temas como um fado. Dá o exemplo de "A penumbra", em que tanto a voz como uma linha de guitarra fogem à tradição, muito por culpa do guitarrista e arranjador Custódio Castelo que "tornou o tema um pouco arabesco".
A excepção é "Se isto é um fado normal, escrito por Amélia Muge e interpretado pelos Gaiteiros de Lisboa - uma tremenda canção que foge a tudo o que Ana tinha feito antes. "Eu já tinha vontade de gravar com os Gaiteiros desde que a Amélia me convidou para cantar com ela e com eles num espectáculo dela no CCB. Adorei-os".
A questão é: estará ela pronta para fazer um disco só com temas assim, que sendo fado fujam ao fado? "Não sei. A Amália quando atingiu um certo patamar fez as experiências que bem entendeu, chegou a gravar standards americanos. Passa muito por aí, pelo equilíbrio que se atinge e que nos permite darmo-nos ao luxo de brincar um bocadinho".