Seis personagens em nome da multidão
A ópera parece ter deixado de intimidar os jovens compositores, pois cada ano que passa vão sendo estreadas novas criações. "Jerusalém", composta por Vasco Mendonça (n. 1977) a partir do premiado romance homónimo de Gonçalo M. Tavares (entretanto convertido em libreto), teve a sua estreia absoluta em Julho na Culturgest, contando agora com uma segunda apresentação no Teatro Municipal da Guarda, no âmbito do Festival de Teatro Acto Seguinte. Com direcção musical de Cesário Costa, a interpretação conta com um sólido elenco vocal e os instrumentistas da Orquestra Metropolitana de Lisboa.
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A ópera parece ter deixado de intimidar os jovens compositores, pois cada ano que passa vão sendo estreadas novas criações. "Jerusalém", composta por Vasco Mendonça (n. 1977) a partir do premiado romance homónimo de Gonçalo M. Tavares (entretanto convertido em libreto), teve a sua estreia absoluta em Julho na Culturgest, contando agora com uma segunda apresentação no Teatro Municipal da Guarda, no âmbito do Festival de Teatro Acto Seguinte. Com direcção musical de Cesário Costa, a interpretação conta com um sólido elenco vocal e os instrumentistas da Orquestra Metropolitana de Lisboa.
A obra mostra-nos pedaços da vida de seis personagens que deambulam pela noite: Mylia, incapaz de dormir com dores resultantes do seu grave estado de saúde; Ernst, que se preparava para o suicídio antes do telefonema de Mylia; Theodor Busbeck, ex-marido de Mylia, que procura uma prostituta (Hanna); o seu filho Kaas, brutalmente assassinado...
O libreto resultou de um trabalho conjunto entre o compositor, o escritor e o encenador Luís Miguel Cintra, e o conceito do espectáculo e da dramaturgia evoluiu em paralelo com a música. São seis "personagens em nome da multidão", cujas histórias se vão cruzando num percurso não linear de fragmentos, memórias e reflexos. O espectador é desafiado a reconstruir o seus elos e transportado para "as cidades que conhecemos, todas cegas, todas metidas na morte herdada e na morte vivida cada dia, sem futuro visível, cheias de gente desesperada à procura de um sentido que as tornasse nalguma Jerusalém, cidade única e de todas as religiões", escreve Luís Miguel Cintra no programa.
"Todas as personagens carregam qualquer coisa de escuro", disse Vasco Mendonça ao Ípsilon a propósito da estreia em Lisboa. "Funcionam como uma espécie de visão de uma pequena parte da condição humana. Cada uma delas transporta um tipo particular de sofrimento, de história de violência. São figuras em queda." Ao nível da escrita vocal, sobretudo na parte central da ópera em que a narrativa é interrompida e as personagens surgem como "uma procissão de sombras", o compositor quis dar uma impressão sonora particular de cada uma e nalguns momentos introduziu também uma espécie de oráculo: "um coro que pode ser entendido como a voz do mundo e que acaba por ser uma transformação dramática do que é o narrador no livro."
A paixão pela literatura tem sido uma importante vertente do percurso de Vasco Mendonça, que desenvolve actualmente um projecto de doutoramento no King's College de Londres sobre a influência do vários tipos de texto (dramático, narrativo ou poético) na forma de uma peça musical.