O passado é um drama
Qualquer espectador minimamente assíduo já deve ter visto, e mais do que uma vez, o "trailer" promocional de "Abraços Desfeitos". Há algumas semanas que anda a correr em várias salas lisboetas. É um "trailer" óptimo, completamente a contra-corrente do que é norma hoje em dia, quando os "trailers", sobretudo os dos filmes americanos, praticamente se esgotam num resumo acelerado da intriga do filme. Empobrecem-lhes o mistério, reduzindo-o à questão do "desfecho", como se tudo o que se propusesse ao espectador fosse ir ver o filme para saber "como acaba" o que já lhe foi contado no "trailer" (enfim, os brados indignados de "spoiler! spoiler!" por essa Internet fora sempre que um texto refere pormenores decisivos do desenlace de um filme emanam desta, chamemos-lhe, "cultura").
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Qualquer espectador minimamente assíduo já deve ter visto, e mais do que uma vez, o "trailer" promocional de "Abraços Desfeitos". Há algumas semanas que anda a correr em várias salas lisboetas. É um "trailer" óptimo, completamente a contra-corrente do que é norma hoje em dia, quando os "trailers", sobretudo os dos filmes americanos, praticamente se esgotam num resumo acelerado da intriga do filme. Empobrecem-lhes o mistério, reduzindo-o à questão do "desfecho", como se tudo o que se propusesse ao espectador fosse ir ver o filme para saber "como acaba" o que já lhe foi contado no "trailer" (enfim, os brados indignados de "spoiler! spoiler!" por essa Internet fora sempre que um texto refere pormenores decisivos do desenlace de um filme emanam desta, chamemos-lhe, "cultura").
O "trailer" de "Abraços Desfeitos" não funciona nada assim, pelo contrário: é quase uma assombração do filme, com a sua montagem pontuada por fundidos a negro e baseada em planos de sentido indecifrável, que pouco ou nada explicam da intriga - o plano de um cego a tactear o percurso num corredor iluminado ou abertura sobre uma fotografia a preto e branco de Penélope Cruz.
Ora aí está, portanto, um "trailer" capaz de criar uma aura de mistério em torno de um filme. Infelizmente, e para irmos agora, depois de tão demorada preparação, direitos ao assunto, o filme tem menos mistério. Há já uns anos que se tem a sensação de que Almodóvar se anda a mastigar, a "fazer Almodóvar" porque o que se espera dele é que faça "Almodóvar". Mas, e ainda que se pense que em Espanha há uma dezena de cineastas mais interessantes do que Almodóvar mas foi a ele que saiu a taluda de ser "a melhor coisa do cinema espanhol desde Buñuel" ou outro cliché parecido (o que não é incompatível com o reconhecimento do talento que ele obviamente tem), mesmo essa mastigação já foi melhor feita e com mais vigor (ainda o precedente "Voltar", por exemplo).
Com um argumento que mergulha em cheio nos temas e nos hábitos do Almodóvar de melodrama "sério" (um passado traumático revelado em "flashback" e prolongado num presente que tem tanto de solução como de expiação, a paixão atacada por um arrepio, a "sanguinidade" castelhana transformada em "anemia"), "Abraços Desfeitos" é singularmente falho de imaginação, com demasiada coisa a ser decidida em diálogos ensossos filmados em campos/contracampos neutros (o "racconto" é uma figura narrativa importante no filme, e até o põe em marcha, mas filmar um "racconto" é arte que exige um pouco mais do que ter apenas "gente a falar"). Sobre-escrito, seguramente, mas também sobre-explicado, com notas de rodapé "esclarecedoras" metidas a martelo (por exemplo: alguém menciona Arthur Miller e ouve como réplica "Arthur Miller, o dramaturgo americano que casou com Marilyn Monroe?"...).
Dois fantasmas (cinematográficos) assombram esta história sobre o dinheiro, o estrelato, a paixão e o ciúme (Penélope, secretária de um industrial que quer ser o seu Pigmalião e patrocina a sua entrada no cinema, para depois se desfazer em ciúmes que destroem tudo o que está em volta). O Douglas Sirk dos melodramas dos "fifties" e o Billy Wilder dos filmes em que, como em "Fedora", encharcou o "glamour" do "mundo do cinema" num pivete a casa mortuária. Fantasmas recorrentes no cinema de Almodóvar, mas a que ele já soube dar outra consistência e outra substância - o realizador cego, por exemplo, é um cliché que já só se aguenta em burlesco (como Woody Allen no "Hollywood Ending"). E a auto-paródia não está longe, ficando a dúvida, relativamente grave, de saber se é voluntária ou involuntária. Já a auto-citação, sim, é obviamente voluntária, com a convocatória para pequeníssimos papeis ("cameos") de figuras "clássicas" da almodovariana (Chus Lampreave, Rossy de Palma, Kitti Manver...). O que, juntamente, com o humor desbragado de algumas cenas dos "filmes no filme", faz pensar num "wishful thinking": Almodóvar, vergado ao peso da sua seriedade autorística, num filme onde está a pose toda mas onde quase nunca se vê a necessidade dos gestos que fazem a pose, a sonhar com a irreverência dos seus filmes de juventude?
E voltamos ao princípio: ver os planos do "trailer" integrados no contexto do filme é desapontante. Afinal, não tinham mistério nenhum. Isto é só meia piada: o "trailer" é melhor que o filme.
Trailer