A nova comédia americana c'est lui (mas até quando?)

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A julgar pelas reacções a "Funny People", o reinado de Judd Apatow como novo mestre da comédia americana pode muito bem estar a chegar ao fim.
Como realizador de "Virgem aos 40 Anos" e "Um Azar do Caraças", e produtor de quase todas as comédias americanas recentes que interessam (mas que têm passado ao lado do espectadores portugueses, como "As Corridas Loucas de Ricky Bobby", de Adam McKay, ou "Superbaldas", de Greg Mottola), Apatow mostrou que era possível injectar inteligência e emoção num género que muitos identificam com a boçalidade adolescente. E, à terceira realização, arriscou o salto em frente, em direcção a um projecto mais adulto, mais maduro, mais sério e mais ambicioso, com um elenco de luxo: Adam Sandler, os "protegidos" Seth Rogen e Jonah Hill, Leslie Mann, Jason Schwartzman e Eric Bana.
E estampou-se.

Ao fim de cinco semanas em cartaz nos EUA, "Funny People" já terminou praticamente a sua carreira com uma bilheteira modesta (50 milhões de dólares de receita para um orçamento de 70 milhões - um terço dos números de "Um Azar do Caraças" com o dobro do orçamento...) e a crítica mostrou-se pouco entusiasmada com esta ambiciosa comédia dramática ambientada no mundo da comédia "stand-up".
Mas o verdadeiro problema de "Funny People" - que deverá chegar a Portugal no fim de Outubro, na ponta final de uma distribuição europeia que começa nos últimos dias do mês em Inglaterra - não está em o filme ser bom ou mau (para que conste: é bom, embora não seja extraordinário).

O verdadeiro problema de "Funny People" é que este é um filme a contra-corrente da formatação que domina Hollywood, uma comédia de duas horas e meia que quer falar de coisas muito (mais) sérias de maneira muito (mais) séria sem deixar de ser uma comédia, que não se dirige aos adolescentes da pipoca e do refrigerante que vão em massa à primeira sessão do "G. I. Joe". Judd Apatow quis fazer um filme para adultos numa Hollywood que só sabe vender brinquedos a miúdos - e que "Funny People" tenha ficado aquém das expectativas, afinal, é culpa de quem?

Mais do que a comédia do costume
O nome que mais se leu nas críticas americanas como inspiração de "Funny People" dá uma ideia e uma medida das ambições de Apatow: James L. Brooks, o realizador e argumentista de "Laços de Ternura", "Edição Especial" e "Melhor É Impossível". Tal como Apatow, Brooks vem da televisão (onde criou as séries "As Solteironas", "Lou Grant" e "Táxi" e foi um dos impulsionadores dos "Simpsons"), e criou uma reputação como autor literato, herdeiro da era clássica da Hollywood dos anos 1950-1970, capaz de conjugar num mesmo filme riso e lágrima de modo inteligente.
Ora, é precisamente aí que Apatow quer estar - ou não fosse "Funny People" um filme sobre as vidas muito sérias daqueles que fazem rir como profissão. É a história de George Simmons, antigo homem da "stand-up" transformado em super-estrela de Hollywood, em comédias que recordam quase sempre os filmes que fizeram de Adam Sandler um dos actores cómicos americanos mais populares junto do público e mais desprezados pela crítica. Que seja o próprio Sandler, amigo de longa data de Apatow (com quem começou nos palcos dos clubes de comédia), a interpretar Simmons é prova de que o actor sabe bem o que está a fazer e que Paul Thomas Anderson não foi parvo nenhum em ir buscá-lo para "Embriagado de Amor".
Mas o jogo meta-narrativo entre Simmons e Sandler é secundário ao que realmente interessa a Apatow: contrapor à "bananeira" a que Simmons se encostou o "Bildungsroman" de Ira Wright (Rogen), aspirante a comediante que ainda não conseguiu sair da cepa torta, vive com dois amigos que já conseguiram meter o pé na porta e agarra a oportunidade da sua vida quando Simmons o convida para ser seu assistente e escritor de piadas.
No que podia ser um "buddy movie" de comédia tensa entre dois opostos, Apatow lança uma bomba de fragmentação dramática - o diagnóstico de uma doença rara e potencialmente fatal a Simmons, que começa a questionar a sua vida e as suas opções, lamentando as oportunidades perdidas, e se decide a regressar aos palcos de "stand-up" e a reatar o romance de juventude com a mulher (Leslie Mann) que deixou escapar por ser um palerma arrogante (mulhe que, entretanto, casou e constituiu família).
Tudo isto, no entanto, sem deixar de ser um palerma arrogante, numa surpreendentemente conseguida modulação constante de tom entre a comédia e o drama que Apatow consegue sustentar ao longo da maior parte do filme e que confirma que esta não vai ser a "comédia do costume".
Precisamente por isso, vender "Funny People" (apenas) como uma comédia é cortejar a fraude: porque a comédia é só uma das facetas do filme, e porque quem for à espera de ritmo, velocidade, farsa e "sitcom" esbarra num filme muito mais sério e cujas piadas escondem melancolia, dúvida, existencialismo. Demasiado sério e longo para os adolescentes que compõem hoje a grande maioria dos espectadores dos multiplexes, mas demasiado identificado com um realizador de comédias jovens para convencer o público mais adulto, "Funny People" foi vendido como "blockbuster" por uma Universal que atravessa um mau momento (de todo o seu mapa de lançamentos do Verão, apenas "Velozes e Furiosos" e "Inimigos Públicos" cumpriram minimamente as expectativas de bilheteira), e foi bater de frente contra uma indústria de cinema que, sobretudo num momento de recessão, perdeu o toque que em tempos teve para saber vender filmes que saiam fora da gaveta. Não há, de facto, gavetas que acolham por inteiro "Funny People", filme muito mais transversal, subtil e inteligente do que parece à primeira vista.
Falta perceber o que "Funny People" pode valer internacionalmente - já que os mercados internacionais e o DVD correspondem hoje à grande maioria das receitas de um filme, e não faltam casos de projectos que compensam no internacional o insucesso americano, como "Austrália", de Baz Luhrmann, ou "A Bússola Dourada", de Chris Weitz, que, à chegada, triplicaram no estrangeiro os números americanos. Mas a verdade é que, mesmo sabendo que o público internacional é mais aberto a filmes adultos do que os EUA, "Funny People", pela sua própria natureza híbrida (uma comédia que não o é, ancorada num actor fora do seu habitat natural), é uma enorme incógnita. O seu insucesso, mais que uma derrota do marketing, seria uma derrota dos cineastas que ainda acreditam ser possível fugir às regras dentro do sistema e que acham que há público para filmes que não são "a comédia do costume".

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A julgar pelas reacções a "Funny People", o reinado de Judd Apatow como novo mestre da comédia americana pode muito bem estar a chegar ao fim.
Como realizador de "Virgem aos 40 Anos" e "Um Azar do Caraças", e produtor de quase todas as comédias americanas recentes que interessam (mas que têm passado ao lado do espectadores portugueses, como "As Corridas Loucas de Ricky Bobby", de Adam McKay, ou "Superbaldas", de Greg Mottola), Apatow mostrou que era possível injectar inteligência e emoção num género que muitos identificam com a boçalidade adolescente. E, à terceira realização, arriscou o salto em frente, em direcção a um projecto mais adulto, mais maduro, mais sério e mais ambicioso, com um elenco de luxo: Adam Sandler, os "protegidos" Seth Rogen e Jonah Hill, Leslie Mann, Jason Schwartzman e Eric Bana.
E estampou-se.

Ao fim de cinco semanas em cartaz nos EUA, "Funny People" já terminou praticamente a sua carreira com uma bilheteira modesta (50 milhões de dólares de receita para um orçamento de 70 milhões - um terço dos números de "Um Azar do Caraças" com o dobro do orçamento...) e a crítica mostrou-se pouco entusiasmada com esta ambiciosa comédia dramática ambientada no mundo da comédia "stand-up".
Mas o verdadeiro problema de "Funny People" - que deverá chegar a Portugal no fim de Outubro, na ponta final de uma distribuição europeia que começa nos últimos dias do mês em Inglaterra - não está em o filme ser bom ou mau (para que conste: é bom, embora não seja extraordinário).

O verdadeiro problema de "Funny People" é que este é um filme a contra-corrente da formatação que domina Hollywood, uma comédia de duas horas e meia que quer falar de coisas muito (mais) sérias de maneira muito (mais) séria sem deixar de ser uma comédia, que não se dirige aos adolescentes da pipoca e do refrigerante que vão em massa à primeira sessão do "G. I. Joe". Judd Apatow quis fazer um filme para adultos numa Hollywood que só sabe vender brinquedos a miúdos - e que "Funny People" tenha ficado aquém das expectativas, afinal, é culpa de quem?

Mais do que a comédia do costume
O nome que mais se leu nas críticas americanas como inspiração de "Funny People" dá uma ideia e uma medida das ambições de Apatow: James L. Brooks, o realizador e argumentista de "Laços de Ternura", "Edição Especial" e "Melhor É Impossível". Tal como Apatow, Brooks vem da televisão (onde criou as séries "As Solteironas", "Lou Grant" e "Táxi" e foi um dos impulsionadores dos "Simpsons"), e criou uma reputação como autor literato, herdeiro da era clássica da Hollywood dos anos 1950-1970, capaz de conjugar num mesmo filme riso e lágrima de modo inteligente.
Ora, é precisamente aí que Apatow quer estar - ou não fosse "Funny People" um filme sobre as vidas muito sérias daqueles que fazem rir como profissão. É a história de George Simmons, antigo homem da "stand-up" transformado em super-estrela de Hollywood, em comédias que recordam quase sempre os filmes que fizeram de Adam Sandler um dos actores cómicos americanos mais populares junto do público e mais desprezados pela crítica. Que seja o próprio Sandler, amigo de longa data de Apatow (com quem começou nos palcos dos clubes de comédia), a interpretar Simmons é prova de que o actor sabe bem o que está a fazer e que Paul Thomas Anderson não foi parvo nenhum em ir buscá-lo para "Embriagado de Amor".
Mas o jogo meta-narrativo entre Simmons e Sandler é secundário ao que realmente interessa a Apatow: contrapor à "bananeira" a que Simmons se encostou o "Bildungsroman" de Ira Wright (Rogen), aspirante a comediante que ainda não conseguiu sair da cepa torta, vive com dois amigos que já conseguiram meter o pé na porta e agarra a oportunidade da sua vida quando Simmons o convida para ser seu assistente e escritor de piadas.
No que podia ser um "buddy movie" de comédia tensa entre dois opostos, Apatow lança uma bomba de fragmentação dramática - o diagnóstico de uma doença rara e potencialmente fatal a Simmons, que começa a questionar a sua vida e as suas opções, lamentando as oportunidades perdidas, e se decide a regressar aos palcos de "stand-up" e a reatar o romance de juventude com a mulher (Leslie Mann) que deixou escapar por ser um palerma arrogante (mulhe que, entretanto, casou e constituiu família).
Tudo isto, no entanto, sem deixar de ser um palerma arrogante, numa surpreendentemente conseguida modulação constante de tom entre a comédia e o drama que Apatow consegue sustentar ao longo da maior parte do filme e que confirma que esta não vai ser a "comédia do costume".
Precisamente por isso, vender "Funny People" (apenas) como uma comédia é cortejar a fraude: porque a comédia é só uma das facetas do filme, e porque quem for à espera de ritmo, velocidade, farsa e "sitcom" esbarra num filme muito mais sério e cujas piadas escondem melancolia, dúvida, existencialismo. Demasiado sério e longo para os adolescentes que compõem hoje a grande maioria dos espectadores dos multiplexes, mas demasiado identificado com um realizador de comédias jovens para convencer o público mais adulto, "Funny People" foi vendido como "blockbuster" por uma Universal que atravessa um mau momento (de todo o seu mapa de lançamentos do Verão, apenas "Velozes e Furiosos" e "Inimigos Públicos" cumpriram minimamente as expectativas de bilheteira), e foi bater de frente contra uma indústria de cinema que, sobretudo num momento de recessão, perdeu o toque que em tempos teve para saber vender filmes que saiam fora da gaveta. Não há, de facto, gavetas que acolham por inteiro "Funny People", filme muito mais transversal, subtil e inteligente do que parece à primeira vista.
Falta perceber o que "Funny People" pode valer internacionalmente - já que os mercados internacionais e o DVD correspondem hoje à grande maioria das receitas de um filme, e não faltam casos de projectos que compensam no internacional o insucesso americano, como "Austrália", de Baz Luhrmann, ou "A Bússola Dourada", de Chris Weitz, que, à chegada, triplicaram no estrangeiro os números americanos. Mas a verdade é que, mesmo sabendo que o público internacional é mais aberto a filmes adultos do que os EUA, "Funny People", pela sua própria natureza híbrida (uma comédia que não o é, ancorada num actor fora do seu habitat natural), é uma enorme incógnita. O seu insucesso, mais que uma derrota do marketing, seria uma derrota dos cineastas que ainda acreditam ser possível fugir às regras dentro do sistema e que acham que há público para filmes que não são "a comédia do costume".