No esconderijo do bom malandro Mário Zambujal
Decidimos viajar com o Renato, o Pedro Justiceiro, a Adelaide Magrinha e a restante quadrilha. Guardamos os bolsos, que com gente desta nunca se sabe, e enfiamo-los - a eles e ao exemplar de "Crónica dos Bons Malandros" de onde saíram - dentro do carro. O destino é Alcoutim, onde nos espera o criador das personagens e do famoso assalto à Gulbenkian.
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Decidimos viajar com o Renato, o Pedro Justiceiro, a Adelaide Magrinha e a restante quadrilha. Guardamos os bolsos, que com gente desta nunca se sabe, e enfiamo-los - a eles e ao exemplar de "Crónica dos Bons Malandros" de onde saíram - dentro do carro. O destino é Alcoutim, onde nos espera o criador das personagens e do famoso assalto à Gulbenkian.
Poucos minutos faltam para o meio-dia quando avistamos o Marmeleiro, lugar de pouco mais de uma vintena de casas junto a Alcoutim e ao Guadiana. Para trás deixámos o quilómetro de estrada onde só cabe um carro de cada vez e Mário Zambujal recebe-nos debaixo de um sol alto e quente. Quer saber se demos bem com isto, se não nos perdemos. Conhece as tecnologias GPS e as rotas que a Internet ajuda a traçar, mas nunca fiando. E foi por isso que esta conversa começou em Lisboa.
Recuamos três dias. Zambujal está na esplanada do Califa, em Benfica. Faz questão de nos entregar em mão um pequeno mapa, desenhado por si, com as coordenadas até ao Marmeleiro. "Estava ali sentado [aponta para outra esplanada] quando me telefonaram da rádio a perguntarem se eu confirmava a morte do Raul Solnado, se sabia alguma coisa. Não sabia de nada mas aquilo foi um choque e tanto."
Solnado e Zambujal eram muito amigos, recorda o escritor enquanto puxa de mais um cigarro. "Depois de publicar o meu livro anterior ["Já Não Se Escrevem Cartas de Amor"], encontrei-o e ele disse-me: 'Ó Mário, gostei tanto do teu livro, pá. Gostei mesmo.' Isto, vindo do Solnado, era uma coisa enorme para mim."
Zambujal está com 73 anos. Convive bem com a idade mas admite que "é difícil começar a ser cliente habitual de velórios". Fala-nos dos jornais e do seu tempo de repórter, da liberdade de escrever - "tão importante como a de não escrever" - que já o fez recusar alguns convites. Pressentimos que o "check-in" para o refúgio algarvio do escritor está feito. Acertamos encontro para dali a três dias, no Algarve. "Em África", corrige o escritor.
Papel branco e tinta preta
"Não há uma buzina. Se um gajo não escrever aqui alguma coisa de jeito, é porque não nasceu para isso." É assim, taxativo, que Mário Zambujal nos introduz àquilo que já foi um curral de bestas e que hoje lhe serve de escritório. A antiga cavalariça da casa dos sogros, no Marmeleiro, foi restaurada há dois anos, e o autor apetrechou-a seu gosto.
"Tenho poucos livros aqui, falta-me mandar fazer umas estantes." O que tem são fotografias de família, cachimbos e uma réplica do "Diário de Notícias" de 5 de Março de 1936, revisada pela censura. Foi o dia em que nasceu Zambujal e alguns companheiros do jornalismo ofereceram-lha quando completou 60 anos. Nas costas podem ler-se várias dedicatórias, uma de António Rolo Duarte: "Ainda que não se sinta, a verdade é que ele já se senta."
Na cavalariça não faltam o sofá e as cadeiras. Há ainda uma cozinha e um quarto de hóspedes, "muito frequentado no Verão". Os cavalos continuam cá, agora em imagens penduradas nas paredes. "Decidi pôr isto aqui em homenagem aos donos da casa", ri-se Zambujal enquanto olha a gravura do "Filho-da-puta", um dos cavalos de corrida mais importantes do século XIX, pintado por John Frederick Herring em 1815. "Vejam lá não me fotografem ao lado disto, ainda as pessoas vão pensar que pode ser a legenda da foto."
Voltamo-nos para a mesa de trabalho. "Aqui é onde vou tentando escrever alguma coisa." Da janela que se abre diante de nós avistam-se os últimos metros de Portugal e os primeiros de Espanha, ocupados pela povoação de Sanlúcar de Guadiana. Sobre o tampo de madeira, ao lado de uma placa com o nome do autor que veio do jornal "O Século", onde foi chefe-de-redacção, está um computador. Desconfiamos. Mário Zambujal escreve os seus livros no portátil? "Nem pensar. Entre a mente e a mãozinha armada de caneta ou esferográfica existe uma relação antiga que não atingi com Sua Excelência, o computador." O aparelho é, então, o depósito posterior daquilo que nasce entre o "papel branco e a tinta preta" que o autor não dispensa.
Passou-se assim com as cerca de 130 páginas de "Uma Noite Não São Dias", nova novela de Mário Zambujal que chega em Outubro pela editora Planeta. "A história foi em grande parte imaginada e escrita aqui. Trabalho mais durante o dia - três, quatro horas, raramente mais do que isso. Escrevo por prazer, desligo quando começo a entrar na zona do sacrifício."
Zambujal há-de guardar as maiores revelações sobre o seu sétimo livro para a hora de almoço, em Alcoutim. Antes, tempo de conhecer mais um pouco da casa e do Marmeleiro, "um lugar onde os adolescentes têm 65 anos". Do ponto mais alto da eira, onde chegamos subindo 99 degraus mandados construir monte acima, Mário explica a organização familiar. Aponta a casa da filha Isabel, publicitária e escritora de livros infantis. E a outra, mais rústica, onde fica com a mulher e o filho Rui, outro que deve estrear-se nos livros em breve.
"O Rui recolheu uma data de informação muito científica e queria que eu escrevesse um livro a partir dali. Mas não podia ser, a minha escrita e o meu tom não servem aqueles propósitos." O filho viu o pai recusar-lhe o livro, a irmã (a quem recorreu) dar-lhe outro não e ficou sem alternativa: teve de avançar sozinho e "2009-2049, 40 Anos de Montanha Russa" deve mesmo sair ainda antes do Natal. "Gostava de fazer um "booktrailer" e começar com a frase 'O livro que Mário Zambujal não quis escrever'", brinca Rui. O pai está satisfeito mas avisa que ainda falta muito trabalho de revisão. "Estou sempre a dizer-lhe, como dizia aos mais novos nos jornais, para ter cuidado com os verbos ser, estar e ter. Eles apossam-se da nossa linguagem e de repente estamos sempre a utilizá-los."
O pólo criativo da família Zambujal no Marmeleiro tem as suas particularidades. Mário mostra os rascunhos do que escreve aos filhos "se [eles] pedirem", mas em boa verdade prefere que eles "leiam os livros quando já são livros". O caminho contrário faz-se com conversa: "Dou-lhes sugestões que às vezes aceitam, outras não, o que me parece justo."
Lisboa em 2044
Deixamos o Marmeleiro rumo a Alcoutim com Mário a explicar que, "com este calor, o ideal é um tipo deitar-se tarde, levantar-se cedo e depois dormir a sesta". É assim que gere os seus dias na parte do ano em que está por aqui. A visita a Alcoutim é praticamente diária, para comprar os jornais e beber café. Desta vez o ar está quase irrespirável mas o autor sobe escadas e ruas ao mesmo tempo que fuma e conversa - ninguém lhe adivinharia a idade. "Estive 13 anos sem fumar, desde que nasci até aos 13. Agora estou proibidíssimo pelo meu médico, mas não resisto. Ele pergunta-me porquê e eu digo-lhe 'Ó doutor, porque me dá um prazer do caraças.' Se não fumar um cigarro depois de almoço, é como se não tivesse almoçado."
No restaurante, Mário confirma a fama: educado e simpático para os homens, atrevido e cortês com as senhoras. Quando levamos a conversa para o novo livro, o autor já publicado pela Bertrand, Oficina do Livro e Esfera dos Livros começa com honestidade. "Este sai [em Outubro] pela Planeta por um motivo muito simples: a Cristina Ovídio, editora que agora está na Planeta, é amiga de infância dos meus filhos. Vem várias vezes até aqui a nossa casa e insistiu que eu escrevesse um livro para lá. Dificilmente me poderia safar disso, não acha?"
À nossa frente almoça este homem sorridente, com o apetite de quem está de bem com a vida. Conta que "Uma Noite Não São Dias", um livro que viaja até ao ano 2044, parte de uma certeza: "A de que tudo vai mudar menos os sentimentos, as paixões humanas." É por isso que atrás de uma trama mirabolante há, claro, a história de amor. "Trata-se de uma novela que tem a pretensão de divertir os leitores", acrescenta. Como? Subvertendo tudo.
Depois de olhar para os anos 1950 no livro anterior, Zambujal tenta agora antever um futuro em que as mulheres dominam. "Saí do meu tempo e pus-me a imaginar com base nas tendências. Na minha visão do futuro só há ministras, não há ministros. Existem secretários em vez de secretárias e as mulheres jogam melhor futebol do que os homens. Alguns homens têm mesmo medo de ajuntamentos de mulheres, especialmente das operárias da construção civil, que têm uma língua desbragada."
Mário, também presidente do Clube de Jornalistas, garante ter-se divertido a escrever este livro, "uma galhofa" que usa Lisboa como "caricatura da evolução comunicativa". No ano 2044, a odisseia do autor é por uma cidade cheia de túneis e viadutos. "A heroína da história é, aliás, a directora dos Túneis de Lisboa, os Viadutos são os concorrentes. E tem até um slogan: 'Para baixo é que é Lisboa'."
Foi impossível ler "Uma Noite Não São Dias" antes desta entrevista e tudo o que Zambujal revela à mesa de almoço são completas novidades. Uma das personagens da novela será um historiador que estuda a primeira década do século XXI, a nossa. O que "dá muito jeito" ao autor, porque pode "pô-lo a falar e a fazer descobertas incríveis sobre o que está a acontecer hoje". Há, portanto, um investigador que olha o nosso presente com grande admiração e que constata coisas deste género: "Aqueles gajos de 2000-2010 eram engraçados como o caraças, andavam todos vestidos de azul da cintura para baixo [alusão às calças de ganga]."
No livro de Zambujal há cada vez menos pernas azuis e "cada vez mais gajos que ganham a vida de robe e pijama, trabalhando a partir de casa". É assim que Mário imagina a sociedade lisboeta daqui por 30 anos. Mas vai já avisando que perderá o espectáculo, por falta de comparência. Por agora, ainda é na capital que se sente em casa. Porque é "um autor citadino" e porque ainda há muita coisa a amarrá-lo ao Tejo. "Gosto de estar por lá e tenho sempre coisas a tratar. Quando ligo para o Marmeleiro digo-lhes: 'Daqui o delegado da família em Lisboa. Como vão as coisas?'"
Contar e pronto
Desconhece-se se haverá mais malandros nas cidades do que no campo, mas o livro que colou o adjectivo ao nome de Zambujal começou a nascer nas travessas do Bairro Alto, onde trabalhava. "Se desse certo, prometia Renato, seria o ultimo risco, a despedida, a apoteose, o gozo e a calmaria até ao fim da vida, vida boa, tudo de tudo, que nem uns senhores", lê-se na página 20 de "Crónica dos Bons Malandros". E podia ser o resumo do que aconteceu com o livro de estreia do autor, feito meio a brincar em 1980: deu certo.
Estamos de regresso ao Marmeleiro, para continuar a conversa debaixo do alpendre que serve as almoçaradas com amigos. O alentejano de Moura, criado nas terras algarvias de Faro, conta que escreveu mais de 60 por cento dessa primeira obra em 15 dias de férias, na aldeia de Açoteias. "Fiquei em casa a tomar um whisky com muitas pedras de gelo, não estava com grande vontade de praia. Tinha sido muito instado a escrever, pelo Urbano Tavares Rodrigues [com quem trabalhou no "Diário de Lisboa"] e outros companheiros. Quando comecei nem sequer sabia se o que estava a escrever era um livro - era uma coisa que eu queria contar e pronto."
Nada fazia prever o sucesso. A obra teve "uma saída modesta nos primeiros três meses" e Zambujal nem sequer contava que a coisa ultrapassasse o círculo de companheiros e amigos interessados, então composto por gente como Mário Castrim, Augusto Abelaira, Francisco Mata, Luís de Sttau Monteiro, José Cardoso Pires, Fernando Assis Pacheco ou Carlos Pinhão. Só que os bons malandros pegaram e transformaram a crónica de Zambujal num dos primeiros "bestsellers" portugueses.
Sobre o livro, Dinis Machado escreveu: "Se isto não é literatura, quem perde é a literatura." A eterna discussão sobre méritos mais ou menos literários não tira o sono a Mário Zambujal. "Isso não me interessa nada. Na altura pareceu-me giro (é mesmo esta a palavra que quero usar) contar a história assim, da maneira que está. Podia ter encontrado uma forma mais literária de fazê-lo, mas não quis. Aquilo é uma banda-desenhada por escrito."
Seguiu-se um livro mais pensado e trabalhado, "Histórias do Fim da Rua" (1983). Tinham-no assustado com aquilo de o segundo livro ser o mais difícil e Mário quis despachar o agouro. Fugiu da piada e do riso e houve quem não apreciasse. "Tornou-se no meu patinho feio e, curiosamente, é dos que mais gosto."
Ainda hoje, que passa as noites de verão a apreciar o céu muito estrelado de Alcoutim, Mário não se leva demasiado a sério como escritor. "Já o Laborinho Lúcio [antigo ministro da Justiça] dizia que 'não se é político, está-se político'. Eu também estou escritor agora, outra vez. O ser carrega uma obrigação que não me agrada." Tanto é assim que existe um intervalo de quase 20 anos entre "À Noite Logo se Vê" (1986) e "Fora de Mão" (2003) - foram os tempos em que Mário Zambujal fez e escreveu para a televisão.
Da escola jornalística, que começou no jornal "A Bola", ficou-lhe a "necessidade de contar coisas sem estacar na descrição marginal, de não sair do tempo". Os seus livros são curtos porque custa-lhe encher. "Quando vejo grandes romances com pouca intriga, penso que aquilo até daria uma boa noveleta. Eu escreveria uma noveleta, uma coisa curta, e não chateava as pessoas." Consegue identificar - até em Gabriel García Márquez - um ritmo narrativo jornalístico em autores que passaram pelas redacções para se transformarem em ficcionistas que "têm uma história para contar e vão-se a ela". Esse é o traço que ainda o liga aos jornalistas actuais, que trabalham em redacções "sem a banda sonora que era o bater da máquina de escrever".
Mário Zambujal é de uma época em que "as as pessoas perguntavam coisas umas às outras" mas vive num tempo em que "a gente pergunta tudo à Internet". Por isso gosta deste lugar onde os dias são grandes e as horas torram devagar. A noite vem longe quando, com pena, deixamos o Marmeleiro. Estamos com Zambujal: "Apetece mesmo estar por aqui, no sossego absoluto que só se quebra ao descer à costa algarvia ou à Andaluzia".