A música mais triste do mundo

Kazuo Ishiguro é um escritor peculiar que, como já tem demonstrado no total da sua obra, se obstina em desmontar estruturas literárias tradicionais.

Foto
Reuters/Mike Segar

Em “Crooner”, numa Veneza invadida por turistas, um jovem polaco que ganha a vida a tocar nos cafés da piazza é desafiado por um famoso e decadente cantor romântico a acompanhá-lo numa serenata à sua jovem mulher. Mas o que começa como uma manifestação de dedicação e amor conhece uma reviravolta surpreendente, tal como acontece em “Faça Chuva ou Faça Sol”.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Em “Crooner”, numa Veneza invadida por turistas, um jovem polaco que ganha a vida a tocar nos cafés da piazza é desafiado por um famoso e decadente cantor romântico a acompanhá-lo numa serenata à sua jovem mulher. Mas o que começa como uma manifestação de dedicação e amor conhece uma reviravolta surpreendente, tal como acontece em “Faça Chuva ou Faça Sol”.

Neste segundo conto um desenraizado professor de Inglês no estrangeiro que regressa a Londres é convidado a ficar em casa de antigos amigos da faculdade. Numa tentativa para recuperar o ambiente da juventude, quando todos viviam uma existência de hippies despreocupados, o professor vê-se envolvido nos psicodramas do casal, a braços com mal-entendidos e falsos passos, o que dá origem a situações bizarras e trágico-cómicas.

Em “Malvern Hills”, um compositor e tocador de viola acústica deixa para trás Londres e uma série de insucessos para visitar a irmã e o cunhado, donos de um café no campo. Aí, conhece um casal de suíços que o obrigam a questionar a sua vida e ambições. Em “Nocturno”, um saxofonista a recuperar de um operação plástica que, supostamente, lhe irá corrigir a fealdade, melhorando, desse modo, a sua carreira, é arrastado para delirantes aventuras pela sua vizinha de quarto, uma rica americana que não é senão a ex-mulher do “crooner” da primeira história. Em “Os Violoncelistas”, o cenário volta a ser Veneza e o autor recupera as personagens do primeiro conto, focando a atenção, desta vez, no violoncelista húngaro Tibor. Este, seduzido por uma suposta diva que lhe exacerba a vaidade, é levado a acreditar que é bem mais genial do que supõe.

Neste volume de contos cujo título completo é “Nocturnos: Cinco Histórias sobre Música e o Cair da Noite” Kazuo Ishiguro reflecte a intenção de explorar a natureza do acto criativo, compondo algo semelhante a uma partitura com ênfase na decadência e na melancolia, uma vez que o entardecer não é só referente ao ciclo dos dias mas também ao ocaso da vida. Uma leitura mais atenta pode revelar a ligação entre cada conto a um tipo particular de música, uma vez que as menções casuais a compositores e intérpretes famosos estabelecem vínculos com figuras como os românticos e crepusculares Chopin e Gabriel Fauré, Janácek e a sua obra, influenciada pela música “folk” do seu país, Elgar e a sua ligação à Natureza (satiricamente tratado em “Malvern Hills) ou, ainda, as canções íntimas e simultaneamente cínicas de Cole Porter, o ritmo de Irving Berlin ou a sensualidade evocativa de Sarah Vaughan.

Sabe-se que Ishiguro, antes de se decidir pela escrita, desejou ser músico (de rock) e essa vocação tem-se revelado em toda a sua obra. Ao longo destes contos é possível detectar traços de anteriores romances, como é o caso de “ Os Inconsolados” - onde um pianista famoso é assombrado por um mundo estranho e cheio de sinais que ele não consegue apreender -, de “Nunca Me Deixes”, em que a melodia tocada numa cassete é repetidamente dançada por Kathy, e mesmo de uma peça que Ishiguro escreveu para o teatro, “The Saddest Music in the World”, uma comédia negra onde uma mulher patrocina um concurso para encontrar a “ música mais triste do mundo”.

Ishiguro é um escritor peculiar que, como já tem demonstrado no total da sua obra, se obstina em desmontar estruturas literárias tradicionais, mantendo, no entanto, um tom de aparente e perversa “normalidade”, num universo em que indivíduos mais ou menos disfuncionais são influenciados por sinais que os arrastam para situações bizarras, dramáticas e, como é o caso em pelo menos duas histórias deste volume, cómicas e com um toque de “slapstick”. A tristeza, a impaciência e o despeito atormentam as personagens, pessoas desenraizadas, vivendo longe das suas pátrias, em situações precárias e, por vezes humilhantes, mas que desenvolvem estranhos afectos e cumplicidades fortuitas.

Não é por acaso que o autor coloca em confronto jovens artistas com mentores muito mais velhos, enfatizando dessa forma o contraste entre a esperança e o conformismo, entre a expectativa e o cinismo. Apesar da óbvia referência ao romantismo, Ishiguro está muito mais próximo de Swift e de Austen, no que diz respeito à desadequação das personagens à realidade e à sua preocupação em seguir certas regras impostas por uma sociedade que dita comportamentos absurdos. Mas o mais interessante é a forma como Ishiguro questiona a essência da arte e reflecte sobre o narcisismo dos criadores e o dilema entre a “pureza” da criação e a atracção pela fama e pelo sucesso.

Este autor inglês que nasceu em Nagasáqui, no rescaldo da bomba atómica, carrega consigo e transmite nos seus livros o sentimento de que somos todos órfãos, arrastados pelas correntes da história e do acaso, vítimas da incomunicabilidade e da incerteza.