A música mais triste do mundo
Kazuo Ishiguro é um escritor peculiar que, como já tem demonstrado no total da sua obra, se obstina em desmontar estruturas literárias tradicionais.
Em “Crooner”, numa Veneza invadida por turistas, um jovem polaco que ganha a vida a tocar nos cafés da piazza é desafiado por um famoso e decadente cantor romântico a acompanhá-lo numa serenata à sua jovem mulher. Mas o que começa como uma manifestação de dedicação e amor conhece uma reviravolta surpreendente, tal como acontece em “Faça Chuva ou Faça Sol”.
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Em “Crooner”, numa Veneza invadida por turistas, um jovem polaco que ganha a vida a tocar nos cafés da piazza é desafiado por um famoso e decadente cantor romântico a acompanhá-lo numa serenata à sua jovem mulher. Mas o que começa como uma manifestação de dedicação e amor conhece uma reviravolta surpreendente, tal como acontece em “Faça Chuva ou Faça Sol”.
Neste segundo conto um desenraizado professor de Inglês no estrangeiro que regressa a Londres é convidado a ficar em casa de antigos amigos da faculdade. Numa tentativa para recuperar o ambiente da juventude, quando todos viviam uma existência de hippies despreocupados, o professor vê-se envolvido nos psicodramas do casal, a braços com mal-entendidos e falsos passos, o que dá origem a situações bizarras e trágico-cómicas.
Em “Malvern Hills”, um compositor e tocador de viola acústica deixa para trás Londres e uma série de insucessos para visitar a irmã e o cunhado, donos de um café no campo. Aí, conhece um casal de suíços que o obrigam a questionar a sua vida e ambições. Em “Nocturno”, um saxofonista a recuperar de um operação plástica que, supostamente, lhe irá corrigir a fealdade, melhorando, desse modo, a sua carreira, é arrastado para delirantes aventuras pela sua vizinha de quarto, uma rica americana que não é senão a ex-mulher do “crooner” da primeira história. Em “Os Violoncelistas”, o cenário volta a ser Veneza e o autor recupera as personagens do primeiro conto, focando a atenção, desta vez, no violoncelista húngaro Tibor. Este, seduzido por uma suposta diva que lhe exacerba a vaidade, é levado a acreditar que é bem mais genial do que supõe.
Neste volume de contos cujo título completo é “Nocturnos: Cinco Histórias sobre Música e o Cair da Noite” Kazuo Ishiguro reflecte a intenção de explorar a natureza do acto criativo, compondo algo semelhante a uma partitura com ênfase na decadência e na melancolia, uma vez que o entardecer não é só referente ao ciclo dos dias mas também ao ocaso da vida. Uma leitura mais atenta pode revelar a ligação entre cada conto a um tipo particular de música, uma vez que as menções casuais a compositores e intérpretes famosos estabelecem vínculos com figuras como os românticos e crepusculares Chopin e Gabriel Fauré, Janácek e a sua obra, influenciada pela música “folk” do seu país, Elgar e a sua ligação à Natureza (satiricamente tratado em “Malvern Hills) ou, ainda, as canções íntimas e simultaneamente cínicas de Cole Porter, o ritmo de Irving Berlin ou a sensualidade evocativa de Sarah Vaughan.
Sabe-se que Ishiguro, antes de se decidir pela escrita, desejou ser músico (de rock) e essa vocação tem-se revelado em toda a sua obra. Ao longo destes contos é possível detectar traços de anteriores romances, como é o caso de “ Os Inconsolados” - onde um pianista famoso é assombrado por um mundo estranho e cheio de sinais que ele não consegue apreender -, de “Nunca Me Deixes”, em que a melodia tocada numa cassete é repetidamente dançada por Kathy, e mesmo de uma peça que Ishiguro escreveu para o teatro, “The Saddest Music in the World”, uma comédia negra onde uma mulher patrocina um concurso para encontrar a “ música mais triste do mundo”.
Ishiguro é um escritor peculiar que, como já tem demonstrado no total da sua obra, se obstina em desmontar estruturas literárias tradicionais, mantendo, no entanto, um tom de aparente e perversa “normalidade”, num universo em que indivíduos mais ou menos disfuncionais são influenciados por sinais que os arrastam para situações bizarras, dramáticas e, como é o caso em pelo menos duas histórias deste volume, cómicas e com um toque de “slapstick”. A tristeza, a impaciência e o despeito atormentam as personagens, pessoas desenraizadas, vivendo longe das suas pátrias, em situações precárias e, por vezes humilhantes, mas que desenvolvem estranhos afectos e cumplicidades fortuitas.
Não é por acaso que o autor coloca em confronto jovens artistas com mentores muito mais velhos, enfatizando dessa forma o contraste entre a esperança e o conformismo, entre a expectativa e o cinismo. Apesar da óbvia referência ao romantismo, Ishiguro está muito mais próximo de Swift e de Austen, no que diz respeito à desadequação das personagens à realidade e à sua preocupação em seguir certas regras impostas por uma sociedade que dita comportamentos absurdos. Mas o mais interessante é a forma como Ishiguro questiona a essência da arte e reflecte sobre o narcisismo dos criadores e o dilema entre a “pureza” da criação e a atracção pela fama e pelo sucesso.
Este autor inglês que nasceu em Nagasáqui, no rescaldo da bomba atómica, carrega consigo e transmite nos seus livros o sentimento de que somos todos órfãos, arrastados pelas correntes da história e do acaso, vítimas da incomunicabilidade e da incerteza.