O palácio da RDA contra o da Prússia
Estamos no centro de Berlim, de costas para a Ilha dos Museus. À nossa frente um enorme relvado. Neste final de um dia de Agosto de muito calor há imensa gente deitada na relva, agarrada a garrafas de água, a tirar fotografias. Se esta imagem fosse de um daqueles livros em que uma folha transparente mostra como era o mesmo sítio no passado, aqui, sobre o relvado, aparecia o edifício em tons cobre do Palast der Republik (Palácio da República) da desaparecida República Democrática Alemã (RDA).
E se continuássemos com o mesmo jogo e tentássemos ver como era antes de esse palácio comunista existir, veríamos surgir no local um monumental palácio prussiano, que foi residência dos imperadores alemães até 1918. E - última experiência, prometemos - se passássemos mais uma folha transparente e tentássemos ver o futuro, talvez tivéssemos a surpresa de ver aparecer... um monumental palácio prussiano.
Destruir ou não o Palácio da República, reconstruir ou não o palácio real (em alemão Hohenzollern Stadtschloss) - a questão tem dominado os debates sobre que arquitectura querem os alemães para a Berlim reunificada, que este ano celebra o vigésimo aniversário da queda do Muro. "A história que edifícios como o Palácio da República contam e tudo o que indique que houve uma RDA foi 'limpo', e hoje só existem pequenos pedaços", diz o arquitecto alemão Martin Ostermann. "Não sou contra a cidade mudar, mas acho que houve muita pressa em demolir certas coisas para garantir que [o passado] não volta a acontecer."
Havia "centenas de opções diferentes para o Palácio da República", sublinha outro arquitecto berlinense, Wilfried Wang. Também ele acredita que alguns edifícios da antiga RDA desapareceram porque "os dirigentes ocidentais tinham memórias traumáticas relacionadas com esses espaços e queriam apagá-las imediatamente, sem discussões". Mas o caso do Palácio da República indigna-o particularmente: "No coração da capital fazer uma reconstituição de três fachadas de um antigo castelo é um desastre cultural da maior magnitude. As próximas gerações perceberão isso, mas será demasiado tarde."
Conflito de gerações
Tudo neste debate tem a ver com memórias. "A geração dos nossos pais ficou zangada por ver um governo [da Alemanha de Leste] derrubar coisas que eles achavam que faziam parte da sua sociedade democrática", explica Ostermann, sentado num antigo barco adaptado para bar, à beira do rio Spree. O palácio prussiano, transformado em museu depois da queda da monarquia em 1918, ficou gravemente danificado na II Guerra Mundial, e em 1950, ignorando os protestos da Alemanha Ocidental, os responsáveis da RDA decidiram demoli-lo. Em 1976 inauguraram o Palácio da República.
Durante 14 anos o edifício, com a sua imensa fachada em vidro cor de cobre onde o sol se reflectia e por trás do qual se via a elaborada iluminação feita de dezenas de globos brancos, foi um centro da vida cultural de Berlim Leste, onde as pessoas iam ouvir concertos, dançar, ver exposições, teatro, jogar bowling ou simplesmente passear.
Depois, com a queda do Muro, o palácio já semiabandonado foi ocupado por artistas e transformou-se num centro de cultura contemporânea, onde todo o tipo de experiências eram bem-vindas. Foi nesse período que Ostermann e muitos outros alemães ocidentais o conheceram. "Era um sítio fantástico", recorda o arquitecto. "Tinha um ambiente estranho, escuro, tudo ferrugento, parecia que estávamos dentro de uma máquina. Funcionava muito bem como centro cultural."
Nesses anos, escreveu o crítico de arte Michael Kimmelman no New York Times, o palácio tornou-se um símbolo de Berlim como "uma capital de segundas oportunidades e subculturas oportunistas". Uma cidade em que surgiam "clubes em antigos bunkers nazis, bares em arranha-céus comunistas, teatros em fábricas abandonadas e galerias de arte em prédios vazios". Tudo isto fazia da nova capital alemã uma cidade que "falhou sempre as tentativas de ser a metrópole que aspirava ser, e em vez disso tornou-se sempre qualquer coisa mais interessante".
Mas, com o argumento de que o edifício tinha asbestos (amianto), o Governo alemão decidiu demolir o Palácio da República. Rapidamente surgiu o movimento pela reconstrução do Stadtschloss (que será um centro cultural e científico com o nome de Humboldt-Forum). O concurso para esse fim, lançado pelo Governo alemão, foi ganho por um arquitecto italiano pouco conhecido, Franco Stella, e calcula-se que o projecto custe 552 milhões de euros. Faltam ainda 63 milhões, e o movimento apela a doações. Numa pequena praça não muito longe do local dos palácios, há uma sala com grandes maquetas onde é possível ver como poderá ser o castelo prussiano reconstruído e "experimentar Berlim antes da guerra".
A nova Alexanderplatz
Esta "guerra dos palácios" é reveladora da essência do debate sobre arquitectura em Berlim desde a reunificação. Muitos dos grandes arquitectos-estrela do mundo foram convidados a construir na cidade e, 20 anos depois da queda do Muro, quase todos os grandes projectos estão concluídos: da cúpula envidraçada do Reichstag, de Norman Foster (filas intermináveis para a visitar), ao Neues Museum, projecto de David Chipperfield que deverá abrir ao público a 16 de Outubro, passando pelo impressionante Museu Judaico de Daniel Libeskind e pela emblemática Potsdamer Platz, com trabalhos de vários arquitectos coordenados pelo italiano Renzo Piano.
Serão demasiados arquitectos para uma cidade só? "Não acho que seja esse o problema", diz Ostermann, olhando para o outro lado do rio, onde se ergue a Embaixada da Holanda, de Rem Koolhaas. "A questão é saber se é tudo boa arquitectura, porque foi tudo construído em dez anos. Diz-se que os maiores arquitectos do mundo construíram aqui, mas todos fizeram o seu pior edifício." Foram criadas regras e limitações. "Havia a visão de que a cidade devia voltar a parecer-se com a Berlim dos anos 20. E as regras sobre, por exemplo, os materiais a usar tentaram transformá-la num lugar homogéneo, que é algo que ela não é."
Houve regras positivas, diz Wilfried Wang, no seu atelier na antiga Berlim Ocidental, como a de impor usos mistos - de trabalho, habitação e lazer - em cada prédio ou quarteirão. O problema é que foi seguida "uma estratégia bastante conservadora, que restringiu qualquer tipo de experiências". Para Wang, Berlim nos últimos 20 anos "teve em cima uma espécie de espartilho intelectual que a impediu de se desenvolver, quer a nível topológico, quer estilístico". E também ele concorda que "a importação dos nomes famosos em poucos casos resultou em grande arquitectura".
Alexanderplatz, por exemplo, a grande praça do Leste, dominada pela torre da televisão construída pela RDA entre 1965 e 69, já não é hoje o espaço aberto que era na época comunista - o projecto, de Hans Kollhoff e Helga Timmermann, prevê a construção de 13 novas torres. "A ideia é transformar a praça em algo mais ocidental", explica Wang. "Alexanderplatz foi sempre um espaço moderno, cosmopolita. Agora transformou-se numa espécie de Nova Iorque mal interpretada."
Muito crítico da forma como a cidade tem sido reconstruída, Wang acha que na Ilha dos Museus - que durante décadas esteve em decadência e está agora a ser completamente restaurada - está também a cometer-se um "imenso erro", que é a criação de uma ligação subterrânea entre os cinco museus (Neues Museum, Alte National Galerie, Bode Museum, Pergamon Museum e Altes Museum). "O argumento é que temos milhões de turistas e que a maioria só quer ver os highlights de cada museu. Por causa disso vamos criar um passeio que nos dá a possibilidade de, como vermes ou ratos, andarmos nos subterrâneos e vir à superfície de vez em quando para vermos uma peça e voltarmos depois a descer."
Ostermann também lamenta algumas das opções na Alexanderplatz e em Potsdamer Platz - esta, que foi o grande vazio símbolo da divisão de Berlim, e depois, durante anos, um dos maiores estaleiros do mundo, está hoje cheia de arranha-céus espelhados patrocinados por grandes empresas e "funciona bem para os turistas", mas não atrai os berlinenses.
No meio de tantos debates, regras, nostalgia pelo(s) passado(s) e medo de arriscar, há, lamenta o arquitecto, "a sensação de que se perdeu a oportunidade de reconstruir a cidade da reunificação".
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Estamos no centro de Berlim, de costas para a Ilha dos Museus. À nossa frente um enorme relvado. Neste final de um dia de Agosto de muito calor há imensa gente deitada na relva, agarrada a garrafas de água, a tirar fotografias. Se esta imagem fosse de um daqueles livros em que uma folha transparente mostra como era o mesmo sítio no passado, aqui, sobre o relvado, aparecia o edifício em tons cobre do Palast der Republik (Palácio da República) da desaparecida República Democrática Alemã (RDA).
E se continuássemos com o mesmo jogo e tentássemos ver como era antes de esse palácio comunista existir, veríamos surgir no local um monumental palácio prussiano, que foi residência dos imperadores alemães até 1918. E - última experiência, prometemos - se passássemos mais uma folha transparente e tentássemos ver o futuro, talvez tivéssemos a surpresa de ver aparecer... um monumental palácio prussiano.
Destruir ou não o Palácio da República, reconstruir ou não o palácio real (em alemão Hohenzollern Stadtschloss) - a questão tem dominado os debates sobre que arquitectura querem os alemães para a Berlim reunificada, que este ano celebra o vigésimo aniversário da queda do Muro. "A história que edifícios como o Palácio da República contam e tudo o que indique que houve uma RDA foi 'limpo', e hoje só existem pequenos pedaços", diz o arquitecto alemão Martin Ostermann. "Não sou contra a cidade mudar, mas acho que houve muita pressa em demolir certas coisas para garantir que [o passado] não volta a acontecer."
Havia "centenas de opções diferentes para o Palácio da República", sublinha outro arquitecto berlinense, Wilfried Wang. Também ele acredita que alguns edifícios da antiga RDA desapareceram porque "os dirigentes ocidentais tinham memórias traumáticas relacionadas com esses espaços e queriam apagá-las imediatamente, sem discussões". Mas o caso do Palácio da República indigna-o particularmente: "No coração da capital fazer uma reconstituição de três fachadas de um antigo castelo é um desastre cultural da maior magnitude. As próximas gerações perceberão isso, mas será demasiado tarde."
Conflito de gerações
Tudo neste debate tem a ver com memórias. "A geração dos nossos pais ficou zangada por ver um governo [da Alemanha de Leste] derrubar coisas que eles achavam que faziam parte da sua sociedade democrática", explica Ostermann, sentado num antigo barco adaptado para bar, à beira do rio Spree. O palácio prussiano, transformado em museu depois da queda da monarquia em 1918, ficou gravemente danificado na II Guerra Mundial, e em 1950, ignorando os protestos da Alemanha Ocidental, os responsáveis da RDA decidiram demoli-lo. Em 1976 inauguraram o Palácio da República.
Durante 14 anos o edifício, com a sua imensa fachada em vidro cor de cobre onde o sol se reflectia e por trás do qual se via a elaborada iluminação feita de dezenas de globos brancos, foi um centro da vida cultural de Berlim Leste, onde as pessoas iam ouvir concertos, dançar, ver exposições, teatro, jogar bowling ou simplesmente passear.
Depois, com a queda do Muro, o palácio já semiabandonado foi ocupado por artistas e transformou-se num centro de cultura contemporânea, onde todo o tipo de experiências eram bem-vindas. Foi nesse período que Ostermann e muitos outros alemães ocidentais o conheceram. "Era um sítio fantástico", recorda o arquitecto. "Tinha um ambiente estranho, escuro, tudo ferrugento, parecia que estávamos dentro de uma máquina. Funcionava muito bem como centro cultural."
Nesses anos, escreveu o crítico de arte Michael Kimmelman no New York Times, o palácio tornou-se um símbolo de Berlim como "uma capital de segundas oportunidades e subculturas oportunistas". Uma cidade em que surgiam "clubes em antigos bunkers nazis, bares em arranha-céus comunistas, teatros em fábricas abandonadas e galerias de arte em prédios vazios". Tudo isto fazia da nova capital alemã uma cidade que "falhou sempre as tentativas de ser a metrópole que aspirava ser, e em vez disso tornou-se sempre qualquer coisa mais interessante".
Mas, com o argumento de que o edifício tinha asbestos (amianto), o Governo alemão decidiu demolir o Palácio da República. Rapidamente surgiu o movimento pela reconstrução do Stadtschloss (que será um centro cultural e científico com o nome de Humboldt-Forum). O concurso para esse fim, lançado pelo Governo alemão, foi ganho por um arquitecto italiano pouco conhecido, Franco Stella, e calcula-se que o projecto custe 552 milhões de euros. Faltam ainda 63 milhões, e o movimento apela a doações. Numa pequena praça não muito longe do local dos palácios, há uma sala com grandes maquetas onde é possível ver como poderá ser o castelo prussiano reconstruído e "experimentar Berlim antes da guerra".
A nova Alexanderplatz
Esta "guerra dos palácios" é reveladora da essência do debate sobre arquitectura em Berlim desde a reunificação. Muitos dos grandes arquitectos-estrela do mundo foram convidados a construir na cidade e, 20 anos depois da queda do Muro, quase todos os grandes projectos estão concluídos: da cúpula envidraçada do Reichstag, de Norman Foster (filas intermináveis para a visitar), ao Neues Museum, projecto de David Chipperfield que deverá abrir ao público a 16 de Outubro, passando pelo impressionante Museu Judaico de Daniel Libeskind e pela emblemática Potsdamer Platz, com trabalhos de vários arquitectos coordenados pelo italiano Renzo Piano.
Serão demasiados arquitectos para uma cidade só? "Não acho que seja esse o problema", diz Ostermann, olhando para o outro lado do rio, onde se ergue a Embaixada da Holanda, de Rem Koolhaas. "A questão é saber se é tudo boa arquitectura, porque foi tudo construído em dez anos. Diz-se que os maiores arquitectos do mundo construíram aqui, mas todos fizeram o seu pior edifício." Foram criadas regras e limitações. "Havia a visão de que a cidade devia voltar a parecer-se com a Berlim dos anos 20. E as regras sobre, por exemplo, os materiais a usar tentaram transformá-la num lugar homogéneo, que é algo que ela não é."
Houve regras positivas, diz Wilfried Wang, no seu atelier na antiga Berlim Ocidental, como a de impor usos mistos - de trabalho, habitação e lazer - em cada prédio ou quarteirão. O problema é que foi seguida "uma estratégia bastante conservadora, que restringiu qualquer tipo de experiências". Para Wang, Berlim nos últimos 20 anos "teve em cima uma espécie de espartilho intelectual que a impediu de se desenvolver, quer a nível topológico, quer estilístico". E também ele concorda que "a importação dos nomes famosos em poucos casos resultou em grande arquitectura".
Alexanderplatz, por exemplo, a grande praça do Leste, dominada pela torre da televisão construída pela RDA entre 1965 e 69, já não é hoje o espaço aberto que era na época comunista - o projecto, de Hans Kollhoff e Helga Timmermann, prevê a construção de 13 novas torres. "A ideia é transformar a praça em algo mais ocidental", explica Wang. "Alexanderplatz foi sempre um espaço moderno, cosmopolita. Agora transformou-se numa espécie de Nova Iorque mal interpretada."
Muito crítico da forma como a cidade tem sido reconstruída, Wang acha que na Ilha dos Museus - que durante décadas esteve em decadência e está agora a ser completamente restaurada - está também a cometer-se um "imenso erro", que é a criação de uma ligação subterrânea entre os cinco museus (Neues Museum, Alte National Galerie, Bode Museum, Pergamon Museum e Altes Museum). "O argumento é que temos milhões de turistas e que a maioria só quer ver os highlights de cada museu. Por causa disso vamos criar um passeio que nos dá a possibilidade de, como vermes ou ratos, andarmos nos subterrâneos e vir à superfície de vez em quando para vermos uma peça e voltarmos depois a descer."
Ostermann também lamenta algumas das opções na Alexanderplatz e em Potsdamer Platz - esta, que foi o grande vazio símbolo da divisão de Berlim, e depois, durante anos, um dos maiores estaleiros do mundo, está hoje cheia de arranha-céus espelhados patrocinados por grandes empresas e "funciona bem para os turistas", mas não atrai os berlinenses.
No meio de tantos debates, regras, nostalgia pelo(s) passado(s) e medo de arriscar, há, lamenta o arquitecto, "a sensação de que se perdeu a oportunidade de reconstruir a cidade da reunificação".