Woodstock, um milagre de miúdos

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A princípio, era para ser um festival como outro qualquer. Aliás, havia já muitos nessa época, todos ao ar livre. Newport, em Rhode Island, começara com jazz em 1954 e com folk em 1959, e mantinha-os todos os anos. E havia já vários festivais pop. Monterey, na Califórnia, recebera em Junho de 1967 aquele que viria a ser considerado o primeiro festival rock da história: três dias, quase 200 mil pessoas e um cartaz que incluía Jimi Hendrix, The Who, Big Brother (com Janis Joplin) e Otis Redding, entre muitos outros.

Mas o Woodstock Music & Art Fair, como se apresentava, não foi um festival como os outros. Aquele que viria a ser o seu organizador, Michael Lang, produzira já em Maio de 1968 em Hallendale, no norte de Miami, um festival pop de dois dias, também com Jimi Hendrix e ainda os Mothers of Invention de Zappa, Steppenwolf ou Arthur Brown. Reuniu 100 mil pessoas, foi um sucesso, e Michael, então com 23 anos, imaginou que poderia fazer um, maior, perto de Nova Iorque. E fez: ficou conhecido por Woodstock, durou três longos dias e completa amanhã, dia 15 de Agosto, 40 anos. Menos de um mês após a chegada do homem à Lua e em plena contestação à guerra do Vietname.

As muitas histórias que rodearam Woodstock enchem agora discos e livros. Desde Abril que estão a ser lançadas várias obras que recolhem depoimentos, imagens e diversa "memorablia" do festival (um dos livros é do próprio Michael Lang, "The Road To Woodstock", lançado no início de Agosto). Ang Lee, em "Taking Woodstock", que estreia este ano, mergulha nos bastidores. E há a reedição do filme de Michael Wadleigh, que fixou o festival para a posteridade. Ao filme, remasterizado a partir da versão do realizador de 2001 (que o ampliou de 180 para 216 minutos), juntam-se agora duas horas de actuações inéditas e 1h50 de documentários, numa caixa com 4 DVD.

É num desses DVD que ouvimos Lang explicar, agora: "Era uma exposição aquariana, com tudo o que isso implica. Uma nova vaga, o sentir das pessoas, uma nova abertura." Mas era também um negócio (embora o investimento, que acabou por rondar os actuais três milhões de dólares, contra receitas de apenas 1,8 milhões, levasse depois onze anos a recuperar). Lang arranjara três sócios: Artie Kornfeld, da Capitol, e John Roberts e Joel Rosenman, que viriam a ser os investidores. Nenhum tinha mais de 26 anos. Mas foi difícil arranjar um terreno. Em Maio, por desespero, aceitam uma oferta em Wallkill. Mas a câmara local recusou e voltaram ao princípio. Até que, em Julho, surge a quinta de Max Yasgur, nas colinas de Bethel, Woodstock. Max mostra-lhes um terreno amplo mas liso. "Não tem nada com desníveis?", perguntam. "Tenho. Um campo de alfafa." Foram vê-lo e aceitaram logo. "Tínhamos diante de nós o anfiteatro perfeito".

Max foi pago pelo aluguer, claro, o equivalente a meio milhão de dólares hoje, mas houve outra razão para a sua oferta: ele ficou irritado com a recusa de Wallkill. Achou uma afronta. Lang recorda, no DVD: "Max era um desses americanos autênticos, muito directo, muito honrado, muito conservador em vários aspectos mas um verdadeiro homem de palavra e alguém que pensava que as pessoas tinham direito a fazer o que lhes desse na cabeça desde que não incomodassem quem estivesse à sua volta."

120 horas de filme

Quem iria tocar? Beatles e Rolling Stones recusaram "muito depressa", como recordou em Maio à revista britânica "Mojo" o director de palco John Morris. Dylan e os Doors idem. Havia já garantia dos Jefferson Airplane, Creedence Clearwater Revival, Canned Heat e, aos poucos, aderiram Hendrix, Janis Joplin, The Who. Lang queria músicos de que gostava e muitos estavam no início de carreira: Crosby, Stills & Nash, Joe Cocker, Santana (Carlos Santana tinha apenas 22 anos à época). Sha Na Na, por exemplo, era um grupo que actuava num clube e Lang contratou-o. Ficaram admirados mas foram. Sem o festival talvez nunca fossem conhecidos. Devido a ele, duram há já 41 anos.

Para cada nome de primeira linha, o cachet era de 15 mil dólares (o manager de Hendrix exigiu 50 mil). Abaixo disso, variava. Venderam-se 120 mil bilhetes por antecipação (18 dólares pelos três dias ou 8 dólares/dia se fossem comprados no local) mas só na quarta-feira anterior, quando 50 mil jovens começaram a instalar-se para acampar, é que os promotores tiveram uma antevisão de catástrofe. As estradas ficaram atafulhadas de automóveis (vistos de helicóptero pareciam "paus de mikado" coloridos largados sobre o terreno, diz-se no filme) e meio milhão de pessoas ficaram bloqueadas, ao ar livre, na quinta de Max Yasgur. Dez vezes a previsão inicial. A multidão começou a derrubar as cercas, não havia onde comprar bilhetes ("mas as pessoas queriam comprá-los", recorda Lang) e o festival foi então declarado "livre", excepto para os que já tinham pago. As autoestradas para lá foram depois cortadas e a zona foi declarada como de "catástrofe".

Os miúdos riam-se, ao falar ao telefone com os pais, quando chegava a sua vez na fila (vinham longe os telemóveis e a Internet no bolso). Catástrofe? Não. Estavam óptimos, apesar de tudo. Os artistas, que estavam em grande parte no hotel local, tinham que ir para o palco de helicóptero por causa do engarrafamento. Dez minutos de viagem. Na hora de começar, o caos nas estradas alterara por completo o alinhamento dos músicos. Ritchie Havens, que devia ser o quinto a entrar em palco, contou à "Mojo" que Lang lhe disse: "Não está ainda ninguém por aqui. Queres ir tu?" "Não! Querem que eu seja morto?" Mas acabou por aceitar. É assim que surge a abrir o poderosíssimo "Freedom" mesclado com o espiritual "Motherless Child", que o filme regista de forma incrível.

O filme? Outro problema. Lang e os seus associados queriam que fosse rodado um filme para fazer crescer as receitas do festival. Os direitos de gravação de som e imagem tinham sido vendidos ao célebre Ahmet Ertegun, da Atlantic (que acabou por editar os discos, um LP triplo e outro duplo) mas era preciso arranjar quem filmasse. Michael Wadleigh, documentarista que tinha fotografado Martin Luther King ou Bob Kennedy mostrou-se interessado. Quem tinha a seu lado como adjunto? Martin Scorsese. Uma equipa com câmaras Éclair de 16mm ao ombro varreu o festival sem dinheiro adiantado. A película foi chegando aos poucos, de helicóptero. Em três dias, ficaram gravadas 120 horas de festival em 75 quilómetros de celulóide. Wadleigh enfrentou tudo, para isso: o isolamento, a chuva torrencial, os elevados decibéis das colunas de som. "Era mais realista pensar que estávamos num sítio como Beirute, com as bombas a estoirar".

Uma minirevolução

O filme, que hoje é a memória viva do festival, mostra músicos muito novos (a cantora Melanie, por exemplo, tinha 22 anos e viajou até ao festival de carro com a mãe, que só não entrou no helicóptero direito ao palco porque a impediram: "mães não!") a tocar para uma multidão também muito jovem mas a braços com o pesadelo da guerra do Vietname e mergulhada já nas utopias da contracultura "hippie". Antes de cantar "Joe Hill", Joan Baez, grávida de seis meses, conta que o marido, objector de consciência, foi transferido da prisão municipal (onde estava de grilhetas nos pés e braços acorrentados à cama) para uma prisão federal. Na segunda parte do filme, Country Joe McDonald canta "I-feel-like-I'm-fixing-to-die rag", onde põe toda a gente a repetir "F-U-C-K." e "Whoopee, vamos todos morrer!" Na expressão do rosto dos que o escutam está, em parte, a explicação para tamanha concentração humana. Como se diz no filme, havia na época uma inquietação que precisava de respostas. Muitos foram procurará-las ali.

Mas se encontraram alguma coisa foi a capacidade de lidar uns com os outros e com as adversidades. Sob chuva torrencial, gritam "no rain, no rain!" por catarse, para resistir ao frio. Dormem em tendas ou enrolados em cobertores, encharcam-se na lama provocada pela chuva, tomam banho nus no lago, resistem à escassez de alimentos suprida pela acção de muitos voluntários. Fumam haxixe sem complexos e têm más experiências com más drogas (no palco, a pedido dos médicos, avisa-se que há "mau ácido" a circular. "Não digam depois que não os avisámos"). Mas, para lá de uma morte por overdose (houve também um parto, um bebé que nasceu em pleno festival), não se registaram distúrbios nem casos de violência. Entrevistado no filme, um polícia diz: "As pessoas deste país deviam estar orgulhosas destes miúdos. O modo de vestir ou o cabelo é lá com eles, mas os seus valores, o seu comportamento, são inquestionáveis. São sem dúvida bons cidadãos norte-americanos." "Isso é algo surpreendente vindo de um polícia", riposta o entrevistador. "Eu não sou um polícia, sou um chefe da polícia!"

Michael Wadleigh, o cineasta que assina "Woodstock, 3 Days of Peace and Music", diz que ali se abriram portas à consciência ecológica, aos direitos dos homossexuais, das mulheres, dos negros: "Uma minirevolução". Michael Lang, de início, tinha uma ideia curiosa para encerrar o festival: quis convidar Roy Rogers, o mítico cowboy, para ali cantar "Happy Trails". Mas o empresário dele rejeitou a proposta. Por causa disso, já na manhã de segunda-feira (a música arrastou-se por toda a noite de domingo até o dia clarear), os que ficaram no recinto ouviram uma coisa bem diferente: Jimi Hendrix a distorcer o hino americano de forma demolidora. "Star spangled banner", entre a chegada à Lua e o Vietname, soou em Bethel como um misto de agonia e redenção.
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"Com essa música [a que se ouviu durante o festival] vivemos um momento catártico extraordinário, um sentimento muito poderoso", recorda Scorsese. Leo Lyons, dos Ten Years After, observa: "Não creio que os músicos esperassem algo de transcendente. Só foram tocar. O público também não esperava nada. Foi tudo muito espontâneo. A energia estava ali." O filme acaba com uma visão dantesca do enorme terreno cheio de lixo, plásticos e cobertores abandonados, com pessoas sujas, ainda a juntar as suas coisas. A Warner, na época, não gostou. Queria um final feliz. Mas Wadleigh insistiu em deixar essa "nota inquietante no fim": "Toda esta diversão acabará muito, muito mal?" Reduzida a 9 minutos na primeira versão, a cena foi depois "devolvida" aos seus 16 minutos. É o tempo de perceber que uma coisa assim não se repete. E que não ter sido uma tragédia foi um milagre, mas um milagre humano. Daqueles "miúdos".

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A princípio, era para ser um festival como outro qualquer. Aliás, havia já muitos nessa época, todos ao ar livre. Newport, em Rhode Island, começara com jazz em 1954 e com folk em 1959, e mantinha-os todos os anos. E havia já vários festivais pop. Monterey, na Califórnia, recebera em Junho de 1967 aquele que viria a ser considerado o primeiro festival rock da história: três dias, quase 200 mil pessoas e um cartaz que incluía Jimi Hendrix, The Who, Big Brother (com Janis Joplin) e Otis Redding, entre muitos outros.

Mas o Woodstock Music & Art Fair, como se apresentava, não foi um festival como os outros. Aquele que viria a ser o seu organizador, Michael Lang, produzira já em Maio de 1968 em Hallendale, no norte de Miami, um festival pop de dois dias, também com Jimi Hendrix e ainda os Mothers of Invention de Zappa, Steppenwolf ou Arthur Brown. Reuniu 100 mil pessoas, foi um sucesso, e Michael, então com 23 anos, imaginou que poderia fazer um, maior, perto de Nova Iorque. E fez: ficou conhecido por Woodstock, durou três longos dias e completa amanhã, dia 15 de Agosto, 40 anos. Menos de um mês após a chegada do homem à Lua e em plena contestação à guerra do Vietname.

As muitas histórias que rodearam Woodstock enchem agora discos e livros. Desde Abril que estão a ser lançadas várias obras que recolhem depoimentos, imagens e diversa "memorablia" do festival (um dos livros é do próprio Michael Lang, "The Road To Woodstock", lançado no início de Agosto). Ang Lee, em "Taking Woodstock", que estreia este ano, mergulha nos bastidores. E há a reedição do filme de Michael Wadleigh, que fixou o festival para a posteridade. Ao filme, remasterizado a partir da versão do realizador de 2001 (que o ampliou de 180 para 216 minutos), juntam-se agora duas horas de actuações inéditas e 1h50 de documentários, numa caixa com 4 DVD.

É num desses DVD que ouvimos Lang explicar, agora: "Era uma exposição aquariana, com tudo o que isso implica. Uma nova vaga, o sentir das pessoas, uma nova abertura." Mas era também um negócio (embora o investimento, que acabou por rondar os actuais três milhões de dólares, contra receitas de apenas 1,8 milhões, levasse depois onze anos a recuperar). Lang arranjara três sócios: Artie Kornfeld, da Capitol, e John Roberts e Joel Rosenman, que viriam a ser os investidores. Nenhum tinha mais de 26 anos. Mas foi difícil arranjar um terreno. Em Maio, por desespero, aceitam uma oferta em Wallkill. Mas a câmara local recusou e voltaram ao princípio. Até que, em Julho, surge a quinta de Max Yasgur, nas colinas de Bethel, Woodstock. Max mostra-lhes um terreno amplo mas liso. "Não tem nada com desníveis?", perguntam. "Tenho. Um campo de alfafa." Foram vê-lo e aceitaram logo. "Tínhamos diante de nós o anfiteatro perfeito".

Max foi pago pelo aluguer, claro, o equivalente a meio milhão de dólares hoje, mas houve outra razão para a sua oferta: ele ficou irritado com a recusa de Wallkill. Achou uma afronta. Lang recorda, no DVD: "Max era um desses americanos autênticos, muito directo, muito honrado, muito conservador em vários aspectos mas um verdadeiro homem de palavra e alguém que pensava que as pessoas tinham direito a fazer o que lhes desse na cabeça desde que não incomodassem quem estivesse à sua volta."

120 horas de filme

Quem iria tocar? Beatles e Rolling Stones recusaram "muito depressa", como recordou em Maio à revista britânica "Mojo" o director de palco John Morris. Dylan e os Doors idem. Havia já garantia dos Jefferson Airplane, Creedence Clearwater Revival, Canned Heat e, aos poucos, aderiram Hendrix, Janis Joplin, The Who. Lang queria músicos de que gostava e muitos estavam no início de carreira: Crosby, Stills & Nash, Joe Cocker, Santana (Carlos Santana tinha apenas 22 anos à época). Sha Na Na, por exemplo, era um grupo que actuava num clube e Lang contratou-o. Ficaram admirados mas foram. Sem o festival talvez nunca fossem conhecidos. Devido a ele, duram há já 41 anos.

Para cada nome de primeira linha, o cachet era de 15 mil dólares (o manager de Hendrix exigiu 50 mil). Abaixo disso, variava. Venderam-se 120 mil bilhetes por antecipação (18 dólares pelos três dias ou 8 dólares/dia se fossem comprados no local) mas só na quarta-feira anterior, quando 50 mil jovens começaram a instalar-se para acampar, é que os promotores tiveram uma antevisão de catástrofe. As estradas ficaram atafulhadas de automóveis (vistos de helicóptero pareciam "paus de mikado" coloridos largados sobre o terreno, diz-se no filme) e meio milhão de pessoas ficaram bloqueadas, ao ar livre, na quinta de Max Yasgur. Dez vezes a previsão inicial. A multidão começou a derrubar as cercas, não havia onde comprar bilhetes ("mas as pessoas queriam comprá-los", recorda Lang) e o festival foi então declarado "livre", excepto para os que já tinham pago. As autoestradas para lá foram depois cortadas e a zona foi declarada como de "catástrofe".

Os miúdos riam-se, ao falar ao telefone com os pais, quando chegava a sua vez na fila (vinham longe os telemóveis e a Internet no bolso). Catástrofe? Não. Estavam óptimos, apesar de tudo. Os artistas, que estavam em grande parte no hotel local, tinham que ir para o palco de helicóptero por causa do engarrafamento. Dez minutos de viagem. Na hora de começar, o caos nas estradas alterara por completo o alinhamento dos músicos. Ritchie Havens, que devia ser o quinto a entrar em palco, contou à "Mojo" que Lang lhe disse: "Não está ainda ninguém por aqui. Queres ir tu?" "Não! Querem que eu seja morto?" Mas acabou por aceitar. É assim que surge a abrir o poderosíssimo "Freedom" mesclado com o espiritual "Motherless Child", que o filme regista de forma incrível.

O filme? Outro problema. Lang e os seus associados queriam que fosse rodado um filme para fazer crescer as receitas do festival. Os direitos de gravação de som e imagem tinham sido vendidos ao célebre Ahmet Ertegun, da Atlantic (que acabou por editar os discos, um LP triplo e outro duplo) mas era preciso arranjar quem filmasse. Michael Wadleigh, documentarista que tinha fotografado Martin Luther King ou Bob Kennedy mostrou-se interessado. Quem tinha a seu lado como adjunto? Martin Scorsese. Uma equipa com câmaras Éclair de 16mm ao ombro varreu o festival sem dinheiro adiantado. A película foi chegando aos poucos, de helicóptero. Em três dias, ficaram gravadas 120 horas de festival em 75 quilómetros de celulóide. Wadleigh enfrentou tudo, para isso: o isolamento, a chuva torrencial, os elevados decibéis das colunas de som. "Era mais realista pensar que estávamos num sítio como Beirute, com as bombas a estoirar".

Uma minirevolução

O filme, que hoje é a memória viva do festival, mostra músicos muito novos (a cantora Melanie, por exemplo, tinha 22 anos e viajou até ao festival de carro com a mãe, que só não entrou no helicóptero direito ao palco porque a impediram: "mães não!") a tocar para uma multidão também muito jovem mas a braços com o pesadelo da guerra do Vietname e mergulhada já nas utopias da contracultura "hippie". Antes de cantar "Joe Hill", Joan Baez, grávida de seis meses, conta que o marido, objector de consciência, foi transferido da prisão municipal (onde estava de grilhetas nos pés e braços acorrentados à cama) para uma prisão federal. Na segunda parte do filme, Country Joe McDonald canta "I-feel-like-I'm-fixing-to-die rag", onde põe toda a gente a repetir "F-U-C-K." e "Whoopee, vamos todos morrer!" Na expressão do rosto dos que o escutam está, em parte, a explicação para tamanha concentração humana. Como se diz no filme, havia na época uma inquietação que precisava de respostas. Muitos foram procurará-las ali.

Mas se encontraram alguma coisa foi a capacidade de lidar uns com os outros e com as adversidades. Sob chuva torrencial, gritam "no rain, no rain!" por catarse, para resistir ao frio. Dormem em tendas ou enrolados em cobertores, encharcam-se na lama provocada pela chuva, tomam banho nus no lago, resistem à escassez de alimentos suprida pela acção de muitos voluntários. Fumam haxixe sem complexos e têm más experiências com más drogas (no palco, a pedido dos médicos, avisa-se que há "mau ácido" a circular. "Não digam depois que não os avisámos"). Mas, para lá de uma morte por overdose (houve também um parto, um bebé que nasceu em pleno festival), não se registaram distúrbios nem casos de violência. Entrevistado no filme, um polícia diz: "As pessoas deste país deviam estar orgulhosas destes miúdos. O modo de vestir ou o cabelo é lá com eles, mas os seus valores, o seu comportamento, são inquestionáveis. São sem dúvida bons cidadãos norte-americanos." "Isso é algo surpreendente vindo de um polícia", riposta o entrevistador. "Eu não sou um polícia, sou um chefe da polícia!"

Michael Wadleigh, o cineasta que assina "Woodstock, 3 Days of Peace and Music", diz que ali se abriram portas à consciência ecológica, aos direitos dos homossexuais, das mulheres, dos negros: "Uma minirevolução". Michael Lang, de início, tinha uma ideia curiosa para encerrar o festival: quis convidar Roy Rogers, o mítico cowboy, para ali cantar "Happy Trails". Mas o empresário dele rejeitou a proposta. Por causa disso, já na manhã de segunda-feira (a música arrastou-se por toda a noite de domingo até o dia clarear), os que ficaram no recinto ouviram uma coisa bem diferente: Jimi Hendrix a distorcer o hino americano de forma demolidora. "Star spangled banner", entre a chegada à Lua e o Vietname, soou em Bethel como um misto de agonia e redenção.
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"Com essa música [a que se ouviu durante o festival] vivemos um momento catártico extraordinário, um sentimento muito poderoso", recorda Scorsese. Leo Lyons, dos Ten Years After, observa: "Não creio que os músicos esperassem algo de transcendente. Só foram tocar. O público também não esperava nada. Foi tudo muito espontâneo. A energia estava ali." O filme acaba com uma visão dantesca do enorme terreno cheio de lixo, plásticos e cobertores abandonados, com pessoas sujas, ainda a juntar as suas coisas. A Warner, na época, não gostou. Queria um final feliz. Mas Wadleigh insistiu em deixar essa "nota inquietante no fim": "Toda esta diversão acabará muito, muito mal?" Reduzida a 9 minutos na primeira versão, a cena foi depois "devolvida" aos seus 16 minutos. É o tempo de perceber que uma coisa assim não se repete. E que não ter sido uma tragédia foi um milagre, mas um milagre humano. Daqueles "miúdos".