Pixar, a arca de Noé do cinema clássico americano
Durante muitos anos, Jeffrey Katzenberg, que sabe como tirar partido da comunicação social, e a sua DreamWorks Animation trouxeram os seus filmes ao estilo de Hollywood e cheios de estrelas aos festivais de cinema. O primeiro "Shrek" (2001) deu o pontapé de saída ao levar todo um elenco de vozes - estrelas como Eddie Murphy, Mike Myers e Cameron Diaz - a Cannes. A sua continuação também se apresentaria no festival, tal como "A História de Uma Abelha" (2007), com Jerry Seinfeld a ser içado por cima da avenida da Croisette, ao passo que, para "O Panda do Kung Fu" (2008), Jack Black fez estardalhaço com um gigantesco urso de brinquedo. Veneza receberia "O Gang dos Tubarões" (2004), do mesmo estúdio, embora tivesse sido uma embaixada mais modesta, apenas com um satisfeito Will Smith a falar com excitação sobre o filme. Mas, eh, não estaria qualquer estrela muito bem-disposta se soubesse que estava a ganhar 10 milhões de dólares só por utilizar a sua boca?
A Pixar Animation Studio não se interessa tanto por todos estes truques mediáticos e estrelas. O dinheiro vai para a animação gerada em dispendiosos computadores de tecnologia de ponta, e as pessoas ficam muito envolvidas na história porque esta parece ser tão real. Formada por um punhado de maçadores especialistas em comunicação, a equipa da Pixar concentra-se em boas histórias, deixando as vozes para depois. Já tinham estabelecido as características do seu cabeça-dura e mal-humorado protagonista de 78 anos para "Up - Altamente" antes de se aperceberem de que Ed Asner (a antiga estrela do The Mary Tyler Moore Show, que está prestes a completar 80 anos e tem quase 300 actuações no seu currículo) seria o actor perfeito para lhe dar voz.
"Tínhamos este molde da personagem e vivemos com ele por bastante tempo", explica Pete Docter ("Monstros & Companhia", 2001), co-autor da história e co-realizador do filme com Bob Peterson ("À Procura de Nemo", 2003). "Ouvimos fragmentos de diálogos de montes de filmes, mas o Ed esteve sempre no topo da lista. Ele tem aquele fantástico tom áspero de rezingão que, no entanto, deixa perceber que lá no fundo existe um coração. O Ed também tem um excelente ritmo cómico da fala. Basicamente, possui tudo aquilo de que precisávamos para o filme."
À antigaCom um enredo à antiga e já amplamente considerado o filme mais divertido da Pixar, "Up - Altamente", que teve uma produção de cinco anos e uma equipa média de 270 pessoas (chegou às 400 em momentos determinantes), fala-nos de Carl, que, a seguir à morte da mulher, está decidido a permanecer na casa que tinham tornado o seu lar. Quando vis promotores imobiliários chegam e se mostram prontos a forçá-lo a sair dali, ele faz a casa elevar-se do chão com balões cheios de hélio, de modo que ela voa pelos ares.
Foi provavelmente apropriado que o décimo filme da Pixar e o seu primeiro em 3D se tornasse um marco e abrisse o Festival de Cannes, em Maio. Para não ficar atrás, Veneza, o festival que homenageia regularmente os filmes do animador japonês Hayao Miyazaki - amigo e mentor do co-fundador da Pixar John Lasseter - vai conceder a Lasseter, em Setembro, um prémio de carreira Lifetime Achievement Award, tal como tinha feito antes com Miyazaki. Lasseter apoiou recentemente o lançamento nos EUA do "Ponyo" de Miyazaki (estreia portuguesa na próxima semana) através da Disney, de que a empresa Pixar faz agora parte, enquanto a própria Disney celebrará o seu regresso à tradicional animação pintada à mão, exibindo cenas do seu próximo "A Princesa e o Sapo" em Veneza. Nesse festival, a Pixar vai revelar a versão em 3D de "Toy Story 2 - Em Busca de Woody" que está prestes a sair e discutir-se-á "Toy Story 3", que terá o seu lançamento tanto em versão 3D como em versão 2D em Junho do ano que vem. Os estúdios da Pixar receberão igualmente uma homenagem, enquanto os realizadores Lasseter, Docter, Andrew Stanton, Brad Bird e Lee Unkrich darão uma "masterclass".
"É uma grande honra e creio que é também um legado que na Pixar estejamos tão centrados em fazer bons filmes com grandes histórias", diz Lasseter. "Gostamos do meio de comunicação que é a animação; para mim, pessoalmente, isso é tudo o que sempre quis fazer na vida. É uma forma de arte que penso que, mais do que a acção ao vivo, pode durar para sempre. Steve Jobs, meu sócio na Pixar [e fundador da Apple] disse uma vez, quando estávamos a fazer 'Toy Story', que, por melhores que fossem os computadores na Apple, a sua duração é de três a cinco anos e, a seguir, a tecnologia avança. Mas, se fizermos o nosso trabalho bem feito, este filme pode durar para sempre. 'Branca de Neve' estreou em 1938 e é difícil imaginar outro filme que seja tão visto hoje como será amanhã e nos próximos 20 anos ou por aí."
Classicismo: o argumento
Inicialmente, antes de se ter tornado um dos maiores êxitos de bilheteira do Verão nos EUA, "Up - Altamente", sem nenhum peixe falante (como "À Procura de Nemo"), ou robô engraçado (como "Wall-E"), apenas um velhote rabugento com uma casa e balões, parecia um produto difícil de vender.
O seu classicismo tornou-se o seu argumento de venda - porque a Pixar se vem destacando como uma espécie de Arca de Noé onde cabe todo um património figurativo e narrativo, da comédia ao melodrama, passando pela aventura dos "serials", tudo o que parece ter sobrado do dilúvio que se seguiu ao estilhaçar da linguagem clássica do cinema americano.
"Queríamos decididamente um estilo clássico neste filme porque parecia que a história pedia isso, uma vez que Carl tinha crescido nos anos 30 e 40", diz Docter. Carl é o "velho" tradicional e rabugento do cinema americano - se olharem para ele descobrem semelhanças, que foram procuradas, com os actores Spencer Tracy e Walther Matthau - e Docter confirma que o filme bem pode ser uma homenagem aos filmes que os seus avós viam no tempo em que eram jovens. "A banda sonora do filme e o ritmo suave fazem-nos sentir que regressámos a um tempo mais inocente. Para mim, o divertido da animação é quando as câmaras como que se fixam e deixam as personagens agir. Observamos os movimentos, os gestos e tentamos ler-lhes o pensamento."
Não restam dúvidas de que a capacidade da Pixar no que toca a expressões fisionómicas, mesmo a barba curta de Carl e o difícil cabelo e pêlo (um pesadelo para desenhadores de animação), é excepcional. A sequência de abertura do filme, que conta a vida anterior de Carl, é uma proeza de síntese narrativa - como num filme de Frank Capra, Billy Wilder ou Orson Welles, como num filme "tout court", como cinema "tout court". Carl tinha conhecido a sua enérgica mulher, Ellie, quando ambos eram crianças e ele era o mais dócil na relação do casal. Tinham planeado viajar para a América do Sul e ver animais e plantas fantásticos, mas nunca o chegaram a concretizar. Carl pensa que falhou como marido porque prometeu a Ellie que lá iriam anos antes e nunca foram.
"Uma vez que percebemos que a história principal é Carl a redefinir o que é aventura, tínhamos realmente que avançar para mostrar essa grande aventura", explica Docter, sintetizando a prodigiosa síntese narrativa desses minutos iniciais do filme. "De início, tínhamos cenas que levariam vinte minutos e, fosse como fosse, tínhamos de encapsular a vida deles em apenas pouco mais de quatro minutos. Eu cresci com os meus pais a fazerem uma data de filmes super 8 e a vê-los a seguir. Não havia som, apenas se viam as imagens projectadas e havia algo mais emocional nisso. Foi por isso que fomos retirando os diálogos e, por fim, efeitos sonoros. E, então, restaram-nos apenas imagens e música."
A suprema aventura que se segue, que podia ser comparada a "King Kong" ou a "Os Salteadores da Arca Perdida", é uma viagem divertida. Começa quando a casa levanta voo com Russell, um persistente escuteiro de oito anos de idade, que acidentalmente se encontra a bordo, e culmina com Carl a descobrir como voltar a amar e viver de novo.
Originalmente, a história era muito mais bizarra, nota Docter. "Era sobre uma cidade flutuante e aquele tipo com ar de marreta que não era verdadeiramente humano. Era muito surreal e não tinha ligação emocional. Por isso, quando o Bob e eu começámos a torná-lo mais ligado à realidade, a ideia de uma casa voadora pareceu mais relacionada com fuga, com afastar-se de tudo. Isso era o que me atraía naquela cidade que vogava no espaço, mas todas as outras pessoas à minha volta resolveram que devia realmente ser sobre um único tipo."
As 3D tinham de combinar-se com isto facilmente, também. Quando Lasseter decidiu iniciar a sua primeira aventura em 3D, criou um grupo de pesquisa para ver o que é que resultava. "Tentámos tratar o ecrã como se fosse uma janela por onde espreitássemos para dentro, por oposição a ter as coisas a saírem de lá na nossa direcção", explica Docter, "e, neste processo, descobrimos um modo de usar o 3D artisticamente e de aumentar a emoção. Isto é algo de que não se tem verdadeiramente consciência, mas, quando o Carl está sozinho com a mulher, nós de facto apertámos intencionalmente o espaço, tornando-o claustrofóbico. E, depois, quando o Carl levanta voo com a casa, ampliamo-lo de modo que se obtém uma sensação de profundidade e de fuga. Tal como as luzes e a cinematografia, descobrimos maneiras de utilizar o 3D". Que é mais uma mais-valia narrativa, pouco tem a ver com a exibição de um "efeito especial", algo que poderia fazer com que as pessoas "saíssem da história"
A gargalhada e a lágrima
O lema da Pixar para as suas histórias é um lema da Disney: "Onde há uma gargalhada deve haver uma lágrima". Mas ninguém na Pixar precisa de ser demasiado sensível. Docter diz que o mais difícil não foi revelar ao mundo "Up - Altamente", mas mostrá-lo aos colegas realizadores - que o fizeram em pedaços, da forma mais simpática possível. É uma espécie de abordagem comunitária na Pixar, um estúdio à antiga, que é simultaneamente uma fábrica de produção e uma escola de especialização em que as ideias "aparecem sempre da experiência pessoal dos realizadores", é aí que elas encontram "o seu coração", mas que tem uma forma comunitária de acompanhar o processo de feitura.
"Quando vou para essas exibições farto-me de suar e não durmo bem na noite anterior. O John [Lasseter], o Andrew [Stanton] e o Brad [Bird, realizadores da Pixar e que pertencem a uma espécie de "conselho de sábios" da companhia], esses tipos podem ser críticos duros, da melhor maneira possível. Isso torna sempre o filme muito melhor." E ele, claro, terá de conseguir fazer-lhes o mesmo quando é um filme deles que está em cima da mesa. De facto, os realizadores foram substituídos nos seus filmes mais notórios - "Toy Story 2", "Ratatouille"- quando os seus projectos não passaram o teste.
"É das decisões mais difíceis de tomar", admite Lasseter. "A Pixar é um estúdio dirigido por um produtor de cinema e não é algo que façamos de ânimo leve. Mas quando o fazemos, é o que está certo e sempre se veio a revelar correcto. Todos os dez filmes da Pixar foram, em algum momento, postos em causa. Mas sempre acreditámos na ideia, no processo, em nós próprios"
Lasseter podia ser um chefe de serviço severo, mas também é uma criança grande. "Toda a gente que trabalha em animação o é", diz. "Apercebemo-nos de que não temos de crescer. A parte séria disso é que permanecemos ligados àquele ingénuo maravilhamento com o mundo. Ajuda-nos a fazer filmes que resultam para as crianças assim como para os adultos. Eu uso camisas havaianas e tenho uma grande colecção de brinquedos, colecciono comboios de brincar e todas essas coisas. Se der uma volta pela Pixar, verá que a maioria dos desenhadores de animação tem prateleiras cheias de brinquedos que juntaram. Têm mesmo interese nesse tipo de coisas, e em banda desenhada também. Para mim, é óptimo continuar assim."
Possivelmente o único defeito dos filmes da Pixar é a falta de protagonistas femininos. "Temos uma falha nesse aspecto", confessa Lasseter, "e provém de tentarmos desenhar a partir da nossa própria experiência. Por qualquer razão, é difícil para nós, rapazes, criar personagens femininas. Felizmente, agora temos uma realizadora mulher, Brenda Chapman, que foi directora da história em 'O Rei Leão'. Ela é uma extraordinária contadora de histórias, por isso verá um filme dela corrigir o problema até certo ponto. Vamos continuar a trabalhar nesse sentido."
Tradução Rita Veiga - Dito e Certo
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Durante muitos anos, Jeffrey Katzenberg, que sabe como tirar partido da comunicação social, e a sua DreamWorks Animation trouxeram os seus filmes ao estilo de Hollywood e cheios de estrelas aos festivais de cinema. O primeiro "Shrek" (2001) deu o pontapé de saída ao levar todo um elenco de vozes - estrelas como Eddie Murphy, Mike Myers e Cameron Diaz - a Cannes. A sua continuação também se apresentaria no festival, tal como "A História de Uma Abelha" (2007), com Jerry Seinfeld a ser içado por cima da avenida da Croisette, ao passo que, para "O Panda do Kung Fu" (2008), Jack Black fez estardalhaço com um gigantesco urso de brinquedo. Veneza receberia "O Gang dos Tubarões" (2004), do mesmo estúdio, embora tivesse sido uma embaixada mais modesta, apenas com um satisfeito Will Smith a falar com excitação sobre o filme. Mas, eh, não estaria qualquer estrela muito bem-disposta se soubesse que estava a ganhar 10 milhões de dólares só por utilizar a sua boca?
A Pixar Animation Studio não se interessa tanto por todos estes truques mediáticos e estrelas. O dinheiro vai para a animação gerada em dispendiosos computadores de tecnologia de ponta, e as pessoas ficam muito envolvidas na história porque esta parece ser tão real. Formada por um punhado de maçadores especialistas em comunicação, a equipa da Pixar concentra-se em boas histórias, deixando as vozes para depois. Já tinham estabelecido as características do seu cabeça-dura e mal-humorado protagonista de 78 anos para "Up - Altamente" antes de se aperceberem de que Ed Asner (a antiga estrela do The Mary Tyler Moore Show, que está prestes a completar 80 anos e tem quase 300 actuações no seu currículo) seria o actor perfeito para lhe dar voz.
"Tínhamos este molde da personagem e vivemos com ele por bastante tempo", explica Pete Docter ("Monstros & Companhia", 2001), co-autor da história e co-realizador do filme com Bob Peterson ("À Procura de Nemo", 2003). "Ouvimos fragmentos de diálogos de montes de filmes, mas o Ed esteve sempre no topo da lista. Ele tem aquele fantástico tom áspero de rezingão que, no entanto, deixa perceber que lá no fundo existe um coração. O Ed também tem um excelente ritmo cómico da fala. Basicamente, possui tudo aquilo de que precisávamos para o filme."
À antigaCom um enredo à antiga e já amplamente considerado o filme mais divertido da Pixar, "Up - Altamente", que teve uma produção de cinco anos e uma equipa média de 270 pessoas (chegou às 400 em momentos determinantes), fala-nos de Carl, que, a seguir à morte da mulher, está decidido a permanecer na casa que tinham tornado o seu lar. Quando vis promotores imobiliários chegam e se mostram prontos a forçá-lo a sair dali, ele faz a casa elevar-se do chão com balões cheios de hélio, de modo que ela voa pelos ares.
Foi provavelmente apropriado que o décimo filme da Pixar e o seu primeiro em 3D se tornasse um marco e abrisse o Festival de Cannes, em Maio. Para não ficar atrás, Veneza, o festival que homenageia regularmente os filmes do animador japonês Hayao Miyazaki - amigo e mentor do co-fundador da Pixar John Lasseter - vai conceder a Lasseter, em Setembro, um prémio de carreira Lifetime Achievement Award, tal como tinha feito antes com Miyazaki. Lasseter apoiou recentemente o lançamento nos EUA do "Ponyo" de Miyazaki (estreia portuguesa na próxima semana) através da Disney, de que a empresa Pixar faz agora parte, enquanto a própria Disney celebrará o seu regresso à tradicional animação pintada à mão, exibindo cenas do seu próximo "A Princesa e o Sapo" em Veneza. Nesse festival, a Pixar vai revelar a versão em 3D de "Toy Story 2 - Em Busca de Woody" que está prestes a sair e discutir-se-á "Toy Story 3", que terá o seu lançamento tanto em versão 3D como em versão 2D em Junho do ano que vem. Os estúdios da Pixar receberão igualmente uma homenagem, enquanto os realizadores Lasseter, Docter, Andrew Stanton, Brad Bird e Lee Unkrich darão uma "masterclass".
"É uma grande honra e creio que é também um legado que na Pixar estejamos tão centrados em fazer bons filmes com grandes histórias", diz Lasseter. "Gostamos do meio de comunicação que é a animação; para mim, pessoalmente, isso é tudo o que sempre quis fazer na vida. É uma forma de arte que penso que, mais do que a acção ao vivo, pode durar para sempre. Steve Jobs, meu sócio na Pixar [e fundador da Apple] disse uma vez, quando estávamos a fazer 'Toy Story', que, por melhores que fossem os computadores na Apple, a sua duração é de três a cinco anos e, a seguir, a tecnologia avança. Mas, se fizermos o nosso trabalho bem feito, este filme pode durar para sempre. 'Branca de Neve' estreou em 1938 e é difícil imaginar outro filme que seja tão visto hoje como será amanhã e nos próximos 20 anos ou por aí."
Classicismo: o argumento
Inicialmente, antes de se ter tornado um dos maiores êxitos de bilheteira do Verão nos EUA, "Up - Altamente", sem nenhum peixe falante (como "À Procura de Nemo"), ou robô engraçado (como "Wall-E"), apenas um velhote rabugento com uma casa e balões, parecia um produto difícil de vender.
O seu classicismo tornou-se o seu argumento de venda - porque a Pixar se vem destacando como uma espécie de Arca de Noé onde cabe todo um património figurativo e narrativo, da comédia ao melodrama, passando pela aventura dos "serials", tudo o que parece ter sobrado do dilúvio que se seguiu ao estilhaçar da linguagem clássica do cinema americano.
"Queríamos decididamente um estilo clássico neste filme porque parecia que a história pedia isso, uma vez que Carl tinha crescido nos anos 30 e 40", diz Docter. Carl é o "velho" tradicional e rabugento do cinema americano - se olharem para ele descobrem semelhanças, que foram procuradas, com os actores Spencer Tracy e Walther Matthau - e Docter confirma que o filme bem pode ser uma homenagem aos filmes que os seus avós viam no tempo em que eram jovens. "A banda sonora do filme e o ritmo suave fazem-nos sentir que regressámos a um tempo mais inocente. Para mim, o divertido da animação é quando as câmaras como que se fixam e deixam as personagens agir. Observamos os movimentos, os gestos e tentamos ler-lhes o pensamento."
Não restam dúvidas de que a capacidade da Pixar no que toca a expressões fisionómicas, mesmo a barba curta de Carl e o difícil cabelo e pêlo (um pesadelo para desenhadores de animação), é excepcional. A sequência de abertura do filme, que conta a vida anterior de Carl, é uma proeza de síntese narrativa - como num filme de Frank Capra, Billy Wilder ou Orson Welles, como num filme "tout court", como cinema "tout court". Carl tinha conhecido a sua enérgica mulher, Ellie, quando ambos eram crianças e ele era o mais dócil na relação do casal. Tinham planeado viajar para a América do Sul e ver animais e plantas fantásticos, mas nunca o chegaram a concretizar. Carl pensa que falhou como marido porque prometeu a Ellie que lá iriam anos antes e nunca foram.
"Uma vez que percebemos que a história principal é Carl a redefinir o que é aventura, tínhamos realmente que avançar para mostrar essa grande aventura", explica Docter, sintetizando a prodigiosa síntese narrativa desses minutos iniciais do filme. "De início, tínhamos cenas que levariam vinte minutos e, fosse como fosse, tínhamos de encapsular a vida deles em apenas pouco mais de quatro minutos. Eu cresci com os meus pais a fazerem uma data de filmes super 8 e a vê-los a seguir. Não havia som, apenas se viam as imagens projectadas e havia algo mais emocional nisso. Foi por isso que fomos retirando os diálogos e, por fim, efeitos sonoros. E, então, restaram-nos apenas imagens e música."
A suprema aventura que se segue, que podia ser comparada a "King Kong" ou a "Os Salteadores da Arca Perdida", é uma viagem divertida. Começa quando a casa levanta voo com Russell, um persistente escuteiro de oito anos de idade, que acidentalmente se encontra a bordo, e culmina com Carl a descobrir como voltar a amar e viver de novo.
Originalmente, a história era muito mais bizarra, nota Docter. "Era sobre uma cidade flutuante e aquele tipo com ar de marreta que não era verdadeiramente humano. Era muito surreal e não tinha ligação emocional. Por isso, quando o Bob e eu começámos a torná-lo mais ligado à realidade, a ideia de uma casa voadora pareceu mais relacionada com fuga, com afastar-se de tudo. Isso era o que me atraía naquela cidade que vogava no espaço, mas todas as outras pessoas à minha volta resolveram que devia realmente ser sobre um único tipo."
As 3D tinham de combinar-se com isto facilmente, também. Quando Lasseter decidiu iniciar a sua primeira aventura em 3D, criou um grupo de pesquisa para ver o que é que resultava. "Tentámos tratar o ecrã como se fosse uma janela por onde espreitássemos para dentro, por oposição a ter as coisas a saírem de lá na nossa direcção", explica Docter, "e, neste processo, descobrimos um modo de usar o 3D artisticamente e de aumentar a emoção. Isto é algo de que não se tem verdadeiramente consciência, mas, quando o Carl está sozinho com a mulher, nós de facto apertámos intencionalmente o espaço, tornando-o claustrofóbico. E, depois, quando o Carl levanta voo com a casa, ampliamo-lo de modo que se obtém uma sensação de profundidade e de fuga. Tal como as luzes e a cinematografia, descobrimos maneiras de utilizar o 3D". Que é mais uma mais-valia narrativa, pouco tem a ver com a exibição de um "efeito especial", algo que poderia fazer com que as pessoas "saíssem da história"
A gargalhada e a lágrima
O lema da Pixar para as suas histórias é um lema da Disney: "Onde há uma gargalhada deve haver uma lágrima". Mas ninguém na Pixar precisa de ser demasiado sensível. Docter diz que o mais difícil não foi revelar ao mundo "Up - Altamente", mas mostrá-lo aos colegas realizadores - que o fizeram em pedaços, da forma mais simpática possível. É uma espécie de abordagem comunitária na Pixar, um estúdio à antiga, que é simultaneamente uma fábrica de produção e uma escola de especialização em que as ideias "aparecem sempre da experiência pessoal dos realizadores", é aí que elas encontram "o seu coração", mas que tem uma forma comunitária de acompanhar o processo de feitura.
"Quando vou para essas exibições farto-me de suar e não durmo bem na noite anterior. O John [Lasseter], o Andrew [Stanton] e o Brad [Bird, realizadores da Pixar e que pertencem a uma espécie de "conselho de sábios" da companhia], esses tipos podem ser críticos duros, da melhor maneira possível. Isso torna sempre o filme muito melhor." E ele, claro, terá de conseguir fazer-lhes o mesmo quando é um filme deles que está em cima da mesa. De facto, os realizadores foram substituídos nos seus filmes mais notórios - "Toy Story 2", "Ratatouille"- quando os seus projectos não passaram o teste.
"É das decisões mais difíceis de tomar", admite Lasseter. "A Pixar é um estúdio dirigido por um produtor de cinema e não é algo que façamos de ânimo leve. Mas quando o fazemos, é o que está certo e sempre se veio a revelar correcto. Todos os dez filmes da Pixar foram, em algum momento, postos em causa. Mas sempre acreditámos na ideia, no processo, em nós próprios"
Lasseter podia ser um chefe de serviço severo, mas também é uma criança grande. "Toda a gente que trabalha em animação o é", diz. "Apercebemo-nos de que não temos de crescer. A parte séria disso é que permanecemos ligados àquele ingénuo maravilhamento com o mundo. Ajuda-nos a fazer filmes que resultam para as crianças assim como para os adultos. Eu uso camisas havaianas e tenho uma grande colecção de brinquedos, colecciono comboios de brincar e todas essas coisas. Se der uma volta pela Pixar, verá que a maioria dos desenhadores de animação tem prateleiras cheias de brinquedos que juntaram. Têm mesmo interese nesse tipo de coisas, e em banda desenhada também. Para mim, é óptimo continuar assim."
Possivelmente o único defeito dos filmes da Pixar é a falta de protagonistas femininos. "Temos uma falha nesse aspecto", confessa Lasseter, "e provém de tentarmos desenhar a partir da nossa própria experiência. Por qualquer razão, é difícil para nós, rapazes, criar personagens femininas. Felizmente, agora temos uma realizadora mulher, Brenda Chapman, que foi directora da história em 'O Rei Leão'. Ela é uma extraordinária contadora de histórias, por isso verá um filme dela corrigir o problema até certo ponto. Vamos continuar a trabalhar nesse sentido."
Tradução Rita Veiga - Dito e Certo