Filmes que fazem uma família
Independentemente de uma qualquer assinatura pessoal, se há uma marca de autor inconfundível e intransmissível no actual cinema americano, essa marca pertence a John Lasseter e à sua equipa de animadores da Pixar, capazes de fazer filmes literalmente "para todos" que, mais do que meros "desenhos animados", transcendem cada vez mais a categoria da animação para se tornarem, apenas, cinema, ponto final - de algum modo cumprindo o velho sonho de Walt Disney quando se atirou à longa-metragem. Há uma identidade inconfundível comum a todos os dez filmes da companhia (que são, literalmente, filmes "de família", sobre a família, feitos "em família"), que torna ainda mais estranho perceber que a Pixar começou como simples empresa de software e que, em 1995, a ideia de toda uma longa-metragem em animação digital era uma experiência formal da qual ninguém sabia muito bem o que esperar...
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Independentemente de uma qualquer assinatura pessoal, se há uma marca de autor inconfundível e intransmissível no actual cinema americano, essa marca pertence a John Lasseter e à sua equipa de animadores da Pixar, capazes de fazer filmes literalmente "para todos" que, mais do que meros "desenhos animados", transcendem cada vez mais a categoria da animação para se tornarem, apenas, cinema, ponto final - de algum modo cumprindo o velho sonho de Walt Disney quando se atirou à longa-metragem. Há uma identidade inconfundível comum a todos os dez filmes da companhia (que são, literalmente, filmes "de família", sobre a família, feitos "em família"), que torna ainda mais estranho perceber que a Pixar começou como simples empresa de software e que, em 1995, a ideia de toda uma longa-metragem em animação digital era uma experiência formal da qual ninguém sabia muito bem o que esperar...
TOY STORY, OS RIVAIS (1995)
A grande dúvida era: é possível extrair emoção de figuras desenhadas por uma máquina? "Toy Story" neutralizou o argumento com uma resposta a dois tempos. Primeiro: a máquina é apenas mais um utensílio nas mãos do animador, como o lápis ou a tinta. Segundo: desde que haja uma história, um argumento, personagens sólidas (e essa foi sempre a grande mais-valia da Pixar face à concorrência), a técnica não importa verdadeiramente. O baú dos brinquedos aberto por John Lasseter tocava ao mesmo tempo na capacidade de maravilhamento de adultos e crianças e acelerou uma mudança de paradigma que afectou determinantemente a evolução da animação contemporânea: hoje, a animação por computador é a regra e a animação tradicional a excepção...
UMA VIDA DE INSECTO (1998)
O desafio da segunda longa era provar que "Toy Story" não fora mero fogacho ou sorte de principiante. E foi redobrado quando Lasseter passou do artificialismo "cartoonesco" do mundo dos brinquedos para uma aproximação ao realismo naturalista nesta história de uma formiga que recruta um grupo de insectos artistas de circo para proteger a sua colónia de gafanhotos mafiosos. Entrando em confronto com a concorrente Dreamworks, que iniciou a sua conversão ao digital quase ao mesmo tempo com "Formiga Z" (1998), o écrã panorâmico de "Uma Vida de Insecto" explicava que a Pixar queria era fazer cinema e não televisão ampliada. O que nos leva a...
TOY STORY 2 - EM BUSCA DE WOODY (1999)
O primeiro "Toy Story" resvalara no desastre porque a Pixar dera demasiados ouvidos às sugestões da Disney. A sequela estava inicialmente prevista para sair directamente em vídeo e esteve muito mais próxima da catástrofe quando a Disney optou por estreá-la em sala e Lasseter percebeu que o filme não atingia a fasquia interna mínima da Pixar. O realizador reuniu as tropas e, em menos de um ano, "Toy Story 2" foi inteiramente refeito, ensinando à Pixar a mais importante das lições: a necessidade de um controlo de qualidade rigorosíssimo a cada passo do processo. "Toy Story 2" é o exemplo que até agora nenhum dos concorrentes conseguiu emular: a sequela melhor que o original.
MONSTROS E COMPANHIA (2001)
Apesar de Lasseter ter dirigido os três primeiros filmes, a Pixar não queria ser companhia de um só homem - e "Monstros e Companhia" foi a primeira longa do estúdio assinada por um dos outros animadores, Pete Docter. A partir da ideia de que os monstros escondidos no armário existem numa realidade paralela onde assustar os humanos é o seu ganha-pão, Docter faz esquecer os progressos técnicos do "software" proprietário da Pixar (este é o filme em que a tecnologia consegue finalmente reproduzir os cambiantes do pêlo) com uma espantosa fábula sobre a paternidade disfarçada de comédia surreal.
À PROCURA DE NEMO (2003)
Andrew Stanton, a segunda contratação original da companhia e peça criativa importante nos guiões de todos os filmes anteriores, foi o animador seguinte a ascender à cadeira da realização, e a sua odisseia de um peixe palhaço pai-galinha que viaja pelo oceano para resgatar o seu único filho é também uma fábula sobre a paternidade que ressoou de maneira extraordinária em todo o mundo, tornando-se no maior êxito da companhia até então - e valendo-lhe o primeiro Oscar para melhor longa-metragem de animação. O talento dos criativos da Pixar, forçando repetidamente as capacidades do "software", tornou o mundo subaquático de "À Procura de Nemo" numa das mais notáveis proezas técnicas da companhia.
THE INCREDIBLES - OS SUPER-HERÓIS (2004)
Literalmente o verdadeiro filme da Pixar sobre a família - só que, no caso, uma família de super-heróis que procura reencontrar o equilíbrio perdido pelo meio de um dos melhores pastiches de 007 jamais realizados-, injectou na companhia sangue novo com a entrada do veterano Brad Bird, colaborador regular de "Os Simpsons" e director da animação de culto "O Gigante de Ferro" (1999). A ideia de Lasseter ao trazer o seu velho amigo para a companhia era "agitar as águas" e impedir que a Pixar tombasse na complacência; para Bird, era uma oportunidade única de ter finalmente a liberdade criativa que outros estúdios se recusavam a dar-lhe. À chegada, o segundo Oscar de melhor longa animada.
CARROS (2006)
O retorno do fundador Lasseter à realização, coincidindo com a compra da Pixar pela Disney e a promoção do realizador à direcção criativa da animação de ambos os estúdios, abriu um novo ciclo na produção da companhia, introduzindo uma série de reinvenções do cinema americano clássico e uma progressiva assimilação do verdadeiro espírito da Disney com esta história de um bólide de corrida que, numa América habitada exclusivamente por carros, aprende o significado de família e comunidade. Pedaço de "Americana" ao mesmo tempo nostálgico e optimista, é, paradoxalmente, o filme da Pixar que menos ressoou internacionalmente.
RATATUI (2007)
Ou mais um salvamento "in extremis", com Brad Bird a substituir Jan Pinkava na condução do projecto quando se tornou evidente que o animador checo não conseguiria levar o filme a bom porto. A história de uma ratazana gourmet disposta a transcender todas as suas limitações para cumprir o seu sonho de ser um mestre cozinheiro, terceiro Oscar da companhia, é a prova de que o espírito dos filmes clássicos da Disney se tinha transplantado inteirinho para as produções da Pixar - tornando cada vez mais evidente que fazia todo o sentido a Disney ter colocado Lasseter à frente dos seus destinos criativos.
WALL-E (2008)
Depois de Lasseter e Bird, Andrew Stanton foi o segundo animador do estúdio a "repetir" a realização, e se um universo de carros e uma ratazana gourmet não eram riscos suficientes, "Wall-E" arriscava uma primeira meia-hora inteiramente muda, no exacto cruzamento entre a distopia apocalíptica de "À Beira do Fim" (1973, Richard Fleischer) e a herança de Chaplin e Buster Keaton. E, de certo modo, "Wall-E" voltava a responder à pergunta original de "Toy Story": é possível extrair emoção de uma máquina? A resposta do robô-almeida solitário que descobria o amor era cabal: sim. Ao nono filme, a Pixar arrecadava o nono triunfo comercial - e o quarto Óscar de melhor animação...