ZIP-ZIP: Os sete meses que marcaram a televisão em Portugal (por Adelino Gomes)
"E agora, TV? Que monstruoso buraco vai ser o da segunda-feira?", perguntava o papa da critica televisiva Mário Castrim, recentemente falecido, no vespertino "Diário de Lisboa".
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"E agora, TV? Que monstruoso buraco vai ser o da segunda-feira?", perguntava o papa da critica televisiva Mário Castrim, recentemente falecido, no vespertino "Diário de Lisboa".
Estávamos em 30 de Dezembro de 1969. A RTP transmitira no dia anterior ? uma segundafeira, como sempre ? a derradeira emissão do Zip-Zip. Como Castrim, também os críticos dos outros meios de informação dedicaram ao acontecimento a totalidade das suas colunas (ver texto "A crítica rendida").
Carlos Cruz e Fialho Gouveia, ao tempo locutores da RTP, tinham abandonado o PBX, programa radiofónico de grande impacte junto dos ouvintes do Rádio Clube Português, a maior emissora privada do pais. Amigos de Somado, com quem costumavam encontrar-se após as representações teatrais do actor no Vülaret, tiveram a ideia de fazer um programa de televisão diário, com público. "Um 'talk-show', com notícias pelo meio daquilo", recorda-se Fialho Gouveia.
O projecto vinha ao encontro de uma conversa sobre televisão que Somado mantivera muito antes, nos Estados Unidos, com Ramiro Valadão, ao tempo director da Casa de Portugal em Nova Iorque. "Quando ele chegou a Portugal [para presidir à RTP] pensei 'Agora é que é. Vamos recomeçar a conversa.' Com o Fialho Gouveia e o Carlos Cruz, fomos almoçar com ele." Os três amigos (a quem se junta, por breve período, Baptista Rosa, um oficial do Exército ligado à televisão desde os seus primeiros passos) partem de uma ideia-base ? o programa tem que ser diferente do que até aí se tinha feito. Aventam-se várias hipóteses. Uma delas, lembra-se Fialho Gouveia, consistia em fazer um programa diário, à hora de almoço, com notícias e directos, tendo por cenário uma cabina aberta na qual "entrava um qualquer e dizia o que quisesse".
Valadão argumenta que a RTP não tem meios para realizar tal programa e pede-lhes que reformulem o projecto dando-lhe uma periodicidade semanal. "Quero isso em 26 de Maio." Estreia com claque para animar o público Somado situa o almoço a cerca de um mês da data indicada. "Ficámos aflitos. E então lá começámos a pensar no que se podia fazer. Naquele tempo havia a abertura do Marcelo Caetano.
'Isto agora com a 'primavera' [marcelista, assim designada para reflectir promessas de que o regime salazarista iria democratizar-se com Marcelo Caetano] e com este Valadão, vai ser uma maravilha'. E resolvemos fazer um programa que levasse a televisão à casa das pessoas.
'Vamos pôr a malta toda a falar.'" À falta de dinheiro mas também com a consciência de que precisavam de conquistar o público mais jovem, Carlos Cruz e Fialho Gouveia encarregam José Nuno Martins, um estudante de Letras que com eles se profissionalizara no PBX, de seleccionar os novos valores da música popular.
O primeiro Zip-Zip é gravado no Teatro Villaret, em Lisboa, no sábado 24 de Maio, perante uma plateia de amigos e curiosos, que compraram um bilhete de entrada por dez escudos.
Corre tudo bem. "Levámos lá uma claque para segurar a coisa: puseram-se de pé na altura que era preciso, aplaudiram. Isto anima o público que está lá em casa a ver", explica Solnado.
A crítica nos jornais de terça-feira, 27, o dia seguinte à emissão, não esconde a surpresa e abre-se em elogios. "As câmaras de TV, finalmente, aproximaram-se do povo", avisa, ainda algo incrédulo, Miguel Serrano no "República". "De súbito prova-se que era possível o humor; que era possível refrescar as variedades; que era possível a convivência da inteligência e do riso", aplaude Castrim no "Lisboa". "Nunca tinha acontecido: o espectáculo convivente, a escolha inteligente de cada passo, a graça e a alegria no tom exacto (...) tudo num só programa de televisão", corrobora Correia da Fonseca em "A Capital".
Interpelados na rua por anónimos agradecidos, os autores têm a noção de que o programa atingiu em cheio o português comum. "Não sabia que havia pessoas tão importantes em Portugal", comenta um taxista a um deles, referindo-se a Almada Negreiros.
Figura meio vetada por razões políticas obscuras, Almada nunca fora chamado à televisão.
"O ambiente que criou no palco e no programa e a repercussão que teve no país dita definitivamente o impacte do Zip-Zip", considera hoje Carlos Cruz. Acrescente-se-lhe a participação do público, permitida pelo formato do programa ? acham Fialho e também Somado, que o aprendera durante as suas estadas, como actor, no Brasil, onde a televisão estava mais avançada do que em Portugal "Oprogramajáiaparacasa das pessoas com emoção, com a gargalhada, já ia pré-fabricado nesse aspecto." Entrevista, rábulas e música Uma grande entrevista, uma rábula de Raul Somado e actuações musicais inicialmente a cargo de cantores ou grupos que o público há-de identificar com o "movimento dos baladeiros" constituem a espinha dorsal de cada programa, realizado, de forma sempre também muito elogiada, por Luís Andrade, hoje director de programas da RTP.
Pelo palco do Villaret passam, semana após semana, figuras de quem a maioria dos portugueses nunca ouviu falar: intelectuais, escritores, nomes da música clássica e da música popular, ao lado de jovens desconhecidos de viola a tiracolo e de gente com profissões humildes e de falar incomum na televisão ? a vendedeira, o fotógrafo ambulante, o barrista popular, o limpachaminés, o último aguadeiro de Lisboa.
Os bilhetes para assistir às gravações esgotam-se semanas antes. Mais de um terço da população fica em casa, à segunda-feira à noite, para ver o programa. As ruas esvaziam-se e as casas de espectáculos ficam sem público. O programa marca a agenda das conversas.
A pressão da censura e a vertigem da popularidade fazem descer quase a pique, por vezes, o altíssimo nível das emissões iniciais. Os autores e apresentadores não são poupados."(...) Cultural, baladeiro, barraqueiro; (...) popularucho, chocarreiro,malcriado(...)?oZiptomou-seum ...'clássico' da nossa querida mediania", acusa no "Diário de Lisboa", em Novembro, A. Jazente (pseudónimo de Alexandre 0'Neill), um dos raros críticos que manteve uma posição reticente.
"O cómico chorou" Quando a série chega ao fim, porém, os elogios cairão de todos os lados. No dia a seguir à gravação do último programa, o "Diário Popular" estampa a fotografia de Solnado na primeira página. Sob o título "O cómico chorou", um redactor escreve (anonimamente como era de uso, mas onde se reconhece o estilo com que Baptista-Bastos marcou o jornal) breves linhas carregadas de simpatia emocionada: "Ontem, no Villaret, esse pequeno cómico de grande formato que se chama Raul Somado fez uma humilde declaração de princípios ao narrar a história da sua vida. 'Comecei a trabalhar em vassouras, na loja do meu pai, na Madragoa...' Ficou-lhe, para sempre, a tendência de realizar coisas asseadas (...)." O popular Carlos dos Jornais (ardina lisboeta com facilidade para versejar e que foi um dos entrevistados do programa) traduz pouco depois, num inquérito de rua, o pensamento do espectador comum: "P'ró programa famoso/Remeto esta saudação/Foi o mais maravilhoso/Que teve a Televisão." Como previra dias antes a critica do "Diário Popular", Alice Vieira, a segunda-feira torna-se de novo, em Portugal, "maçadora e desconfortável". E as pessoas voltam a "não ter nada que discutir durante a semana, nem para pensar no que vai acontecer..." Ao serviço da #primavera'''' de Caetano? No final do Zip-Zip há quem, na imprensa, não tenha dúvidas. "O programa serviu em cheio aquilo que vai sendo hábito chamar de 'a liberalização'", escreve o crítico do "Diário Popular" A. Jazente.
"No Zip 'criticaram-se', como nunca antes publicamente se fizera, pessoas e instituições consideradas intocáveis. Da parte de quem o permitiu, foi este um lance bem inteligente. O público teve a sensação de que havia mais liberdade na crítica, e portanto um dos principais objectivos do programa foi plenamente atingido".
Mário Castrim, que não lhe poupou elogios, também não parece convencido de outra coisa. Esse facto, contudo, leva-o a defender que o programa volte o mais depressa possível. "[Porque] não deve, não pode assumir aspectos de simples manobra." Raul Somado assume que o programa pretendeu "ajudar" Caetano, a quem convidou para uma entrevista, segundo revelou ao PUBLICO. "Gostou muito do convite, foi muito amável, disseme que gostava do programa, mas respondeu que não." A pressão constante da censura ? com quem produtores e apresentadores "negociavam" semanalmente os cortes ? contribuiu para que poucos meses depois do início do programa já o actor tivesse deixado de acreditar na prometida "primavera" política.
Texto publicado no PÚBLICO a 20 de Outubro de 2002