Mais público, menos arte
O episódio é conhecido: em 1971, uma série de nomes ligados sobretudo ao minimalismo, à arte conceptual e à "land art" - Donald Judd, Dan Flavin, Joseph Kosuth e Richard Long - exigiram a exclusão de uma obra de Daniel Buren, a monumental "Peinture-Sculpture", da sexta exposição internacional organizada pelo Guggenheim, em Nova Iorque, com o argumento de que o trabalho do francês comprometia a visão de outras criações, nomeadamente as dos autores do pedido de exclusão.
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O episódio é conhecido: em 1971, uma série de nomes ligados sobretudo ao minimalismo, à arte conceptual e à "land art" - Donald Judd, Dan Flavin, Joseph Kosuth e Richard Long - exigiram a exclusão de uma obra de Daniel Buren, a monumental "Peinture-Sculpture", da sexta exposição internacional organizada pelo Guggenheim, em Nova Iorque, com o argumento de que o trabalho do francês comprometia a visão de outras criações, nomeadamente as dos autores do pedido de exclusão.
Apesar de a instalação ter sido aprovada inicialmente pela comissária da mostra, Diane Waldman, esta viria a ceder aos argumentos dos contestatários, decidindo retirar a peça de Buren - uma tela não esticada com 20x10 metros, suspensa, de modo a dividir, desde a clarabóia até à parte inferior da primeira rampa, o espaço cilíndrico da rotunda do museu.
Em oposição à retirada de "Peinture-Sculpture", dezasseis dos vinte e um artistas presentes na exposição assinaram uma petição, tendo mesmo Carl Andre, em solidariedade com Buren, retirado a sua obra da mostra; contudo, apesar dos gestos de solidariedade, a peça acabou por ser desmontada antes da inauguração. Nesse ano, 1971, uma retrospectiva de Hans Haacke foi cancelada pelo mesmo museu, na sequência da vontade do então director do Guggenheim, Thomas Messer, de excluir dois trabalhos da exposição, um desejo repudiado neste caso quer pelo artista, quer pelo comissário, Edward Fry - as obras em questão eram "Shapolski et al. Manhattan Real Estate Holdings" e "Sol Goldman and Alex DiLorenzo Manhattan Real Estate Holdings".Os trabalhos de Buren - não esqueçamos a sua imagem de marca, as listras coloridas, com 8,7 cm de largura - e de Haacke podem ser considerados momentos fundadores da crítica institucional.
Hoje, a assimilação deste projecto pelas instituições, nomeadamente através da inclusão nas suas agendas de iniciativas (mostras, colóquios, cursos, etc.) relacionadas com a investigação sistemática do sistema artístico anulou os seus efeitos práticos. Continua, mesmo assim, a ser necessária uma análise atenta e permanente das possíveis instrumentalizações das estruturas museológicas para outros fins - ou das instrumentalizações por estas realizadas em seu benefício. Essa tarefa pode ser realizada quer a partir de um olhar centrado na sua componente artística - por exemplo, a relação da obra de arte com a arquitectura envolvente ou a forma como se constitui um programa de exposições -, quer focando a atenção na autonomia de um museu relativamente a interesses distintos (políticos, económicos, sociais, administrativos).
Em texto incluído em "Art Since 1900", precisamente o dedicado a 1971, Benjamin Buchloh escreve que a crítica institucional, tal como formulada por Haacke e Buren, é um projecto que pode ser associado ao impacto das teorias críticas e pós-estruturalistas nas artes visuais: "Podemos dizer que para Haacke este efeito é evidentemente o legado do pensamento da Escola de Frankfurt e de Jürgen Habermas, enquanto para Buren é evidentemente o legado estruturalista e pós-estruturalista de Roland Barthes, Michel Foucault e Louis Althusser, que levaram a práticas artísticas que tomam em conta a inescapável sujeição da arte a interesses ideológicos." Porém, tudo isto parece distante, absorvido: passados 34 anos, o artista francês, já depois de consagrado com o Leão de Ouro da Bienal de Veneza (1986), volta ao Guggenheim com uma exposição intitulada "The Eye of the Storm" - Buren, que, em 2005, num diálogo com Olafur Eliasson publicado na revista "Artforum", declara a propósito de instituições como a Tate, o Centro Pompidou, o MoMa ou o Guggenheim: "Estes são certamente lugares onde expor ainda é um "plus", mas expor em quaisquer outros é como expor numa galeria ou seja lá onde for - não é uma coisa que indica que o teu trabalho é muito especial."
Serralves pertence porventura àqueles museus que ainda não foram atingidos pelo síndroma de que hoje sofre o Louvre, uma situação analisada recentemente por Pietro Citati em artigo publicado no "La Repubblica" : "Os oitomilhõesquinhentosecinquentamil visitantes [o número de entradas na instituição francesa, no ano passado] não são, na sua maioria, nada: não compreendem nada: não amam a pintura: não distinguem um Grünewald de um Caravaggio: não experimentam nenhuma alegria; e aborrecem-se mortalmente." Através desta poderosa crítica, o escritor italiano consegue atingir o cerne da actual questão: o divórcio absoluto entre o espectador e a obra de arte, confundindo-se esta cada vez mais com as necessidades básicas de compreensão do público - quanto mais divertida a experiência, melhor, chegando-se ao ponto de, numa das exposições realizadas este ano no Guggenheim, o artista Carsten Höller propor um espaço em que o visitante podia dormir por um preço que variava entre 259 (estudantes, só às segundas-feiras) e os 799 dólares (fins-de-semana), sendo-lhe ainda permitido circular pelos seis pisos da instituição durante a sua estada.
Comissariada por Guy Schraenen, a actual exposição dedicada a Daniel Buren pela biblioteca de Serralves - numa altura em que o museu comemora dez anos - é, por isso, uma excelente oportunidade para reflectir sobre os desígnios da instituição. Mais público, menos arte, parece ser a estratégia, na qual o marketing ganha cada vez mais território relativamente à investigação, ao saber.
Quanto aos livros e publicações expostos, aparecem transformados em "documentos" de uma época já desaparecida - alguns surgem sobre plintos, outros emoldurados, numa contradição absoluta relativa aos seus usos, como é o caso dos convites/cartazes usados nas intervenções realizadas pelo artista no Wide White Space, em Antuérpia, entre 1969 e 1974. Há um envelhecimento precoce em muitos destes domesticados objectos, talvez porque se quis andar demasiado depressa, sem pensar nas consequências desse movimento: a ineficácia crítica.