Fantin-Latour forever
Em "O ateliê do pintor. Alegoria real", pintado em 1855, Gustave Courbet sintetiza sete anos da sua vida artística. Nessa imensa pintura - 361x598 cm -, o artista retrata num dos cantos Charles Baudelaire, sentado sobre uma mesa, a ler - a absorta figura do escritor é captada dois anos antes da publicação de "As flores do mal", cuja segunda edição, veio a lume em 1860, após a primeira ter sido retirada do mercado sob a acusação de obscenidade.
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Em "O ateliê do pintor. Alegoria real", pintado em 1855, Gustave Courbet sintetiza sete anos da sua vida artística. Nessa imensa pintura - 361x598 cm -, o artista retrata num dos cantos Charles Baudelaire, sentado sobre uma mesa, a ler - a absorta figura do escritor é captada dois anos antes da publicação de "As flores do mal", cuja segunda edição, veio a lume em 1860, após a primeira ter sido retirada do mercado sob a acusação de obscenidade.
A obra de Courbet terá certamente inspirado Henri Fantin-Latour (1836-1904), havendo a notícia de que este artista terá ficado impressionado com a visita ao Pavilhão do Realismo, onde foi revelado o "O ateliê do pintor", trabalho entretanto recusado pelos organizadores da Exposição Universal de 1855 - anos mais tarde, depois de travar conhecimento com Courbet, Fantin-Latour irá mesmo frequentar o seu ateliê durante alguns meses de 1861.
Os retratos de grupos contam-se entre as obras mais emblemáticas de Fantin-Latour, sendo apresentado na retrospectiva promovida pelo Museu Calouste Gulbenkian, comissariada por Vincent Pomarède, aquele que é o mais relevante dos quatro pintados pelo artista francês, todos habitualmente integrados no percurso expositivo do Museu de Orsay, em Paris: "Ao redor da mesa", de 1872. A primeira ideia para a concepção deste trabalho foi a de realizar uma homenagem a Baudelaire, entretanto falecido, e por extensão à literatura. Em carta enviada a Edwin Edwards, um dos seus mecenas e "dealer", o pintor chega mesmo a revelar o título da futura criação, "O Aniversário", e acrescenta: "Vou criar o Baudelaire com base no retrato que fiz dele no Delacroix. (...) Baudelaire, cuja reputação tem vindo a aumentar, é visto pelo público como um ser revolucionário, embora se trate de um daqueles artistas puros, à margem de tudo...".
Com esse objectivo, Fantin-Latour decidiu convocar uma série de escritores para figurarem na sua celebração; contudo, como nota Pomarède em texto incluído no catálogo da exposição, "uma querela no mundo literário parisiense, aparentemente sem sentido, mas fundamental para a evolução de 'Ao redor da mesa', estalou por ocasião de um jantar da sociedade chamada os 'Vilains Bonshommes' ou os 'Affreux Bonshommes' (...); e esta desavença iria azedar as relações entre os homens de letras que Fantin havia seleccionado como modelos para a 'Homenagem a Baudelaire', ao ponto de, à pressa, o obrigar a suprimir a referência ao poeta de 'As Flores do Mal' e a eliminar algumas personalidades - entre as quais Albert Mérat, que foi inclusivamente substituído por um ramo de hortênsias."
Aquela que seria uma evocação de Baudelaire passou assim a ser uma alegoria da indiferença, do tédio, centrada em duas personalidades representadas num canto de uma mesa, no fim de uma refeição: Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, cuja turbulenta relação em tudo parece desmentir as posturas adoptadas para a pintura. Como escreve Jean-Luc Steinmetz na biografia dedicada a este último (Paris, 2ª ed., Tallandier, 1999), os amantes "adoptam poses fingidas; dão a impressão de não se conhecerem." E acrescenta: "De perfil ou de frente, cada um tem o ar unicamente preocupado com a sua própria imagem." O biógrafo nota ainda que, durante os trabalhos preparatórios do quadro, Rimbaud foi várias vezes ao ateliê de Fantin-Latour, tendo este realizado, num desses encontros, um "guache admirável" do escritor.
Curiosa será a reacção de Verlaine quando, já em Londres - cidade habitada pelos dois escritores durante cerca de um ano, numa situação de permanente dificuldade financeira -, se confronta novamente com "Le coin de table", exposto na galeria Durant-Ruel (168 New Bond Street). "Acabamos de nos rever. Foi comprado por 400 libras por um ricaço de Manchester. Fantin 'for ever'."
Esta é apenas uma das pinturas apresentadas no âmbito da retrospectiva patente na Gulbenkian, uma exposição marcante e inesgotável. Ali se encontram estudos, auto-retratos, retratos, alegorias, naturezas-mortas - flores, sobretudo -, numa montagem sóbria, exemplar. Destaque ainda para "O Estudo (Retrato de Sarah Elizabeth Budgett), pintado em 1883; uma obra sobre a questão filosófica da potência e também um trabalho acerca do "spleen": o jarro com junquilhos parece inscrever-se já na tela branca contemplada pela artista, sentada, com o rosto ensombrado e em pose estática. Este trabalho pode situar-se numa linhagem de que faz parte a gravura "A Melancolia" (1514), de Albrecht Dürer, mas esta é já toda uma outra história, na qual o desejo também tem uma palavra a dizer...