Do ridículo ao sublime
James Gray, na entrevista concedida ao Ípsilon, diz que a condição de se estar apaixonado ("the state of being in love") é inevitavelmente "ridícula". Não o diz para remeter o tema da paixão a um assunto de comédia, nem para postular que qualquer abordagem do tema deva insistir neste ponto (de resto, não é ao "sentimento" que ele se refere, é ao "comportamento", ao "estado"). Di-lo, sim, para complicar a sua própria tarefa. "Duplo Amor" é a história de um homem apaixonado (Joaquin Phoenix), e o seu movimento é semelhante ao da grande literatura da paixão, ou ao da grande tradição do melodrama clássico: encontrar nesse ridículo a sua própria força trágica, operar uma passagem do ridículo ao sublime. A cena final, quando Phoenix fica com uma das mulheres (e com um dos mundos) que o dividiram porque simplesmente já não tem opção, e mesmo assim conseguem (ele e Gray) apresentar isso como uma escolha, transbordante de sinceridade e dignidade, é a prova do sucesso da empresa. Em "Duplo Amor" vamos mesmo do ridículo - ou enfim, sejamos francos: do vagamente ridículo - ao absolutamente sublime.
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James Gray, na entrevista concedida ao Ípsilon, diz que a condição de se estar apaixonado ("the state of being in love") é inevitavelmente "ridícula". Não o diz para remeter o tema da paixão a um assunto de comédia, nem para postular que qualquer abordagem do tema deva insistir neste ponto (de resto, não é ao "sentimento" que ele se refere, é ao "comportamento", ao "estado"). Di-lo, sim, para complicar a sua própria tarefa. "Duplo Amor" é a história de um homem apaixonado (Joaquin Phoenix), e o seu movimento é semelhante ao da grande literatura da paixão, ou ao da grande tradição do melodrama clássico: encontrar nesse ridículo a sua própria força trágica, operar uma passagem do ridículo ao sublime. A cena final, quando Phoenix fica com uma das mulheres (e com um dos mundos) que o dividiram porque simplesmente já não tem opção, e mesmo assim conseguem (ele e Gray) apresentar isso como uma escolha, transbordante de sinceridade e dignidade, é a prova do sucesso da empresa. Em "Duplo Amor" vamos mesmo do ridículo - ou enfim, sejamos francos: do vagamente ridículo - ao absolutamente sublime.
Gray, que na sua curta obra (esta é a quarta longa-metragem) sempre filmou histórias aparentadas ao policial, abre aqui a torneira do melodrama (na entrevista ele explica por que o fez, assim como explica porque é que "Duplo Amor" foi feito logo a seguir a "Nós Controlamos a Noite", sem o habitual intervalo de vários anos que mediou os seus outros filmes). A mudança é mais superficial do que parece. Os seus outros filmes ("Viver e Morrer em Little Odessa", "The Yards" e "Nós Controlamos a Noite") eram melodramas familiares temperados por intrigas policiais, histórias de amor entre filhos, pais, irmãos. E "Duplo Amor", excluindo a intriga policial, preserva muitos dos elementos desses filmes. Não deixa de ter, apesar da história de Phoenix e das duas mulheres (Gwyneth Paltrow e Vinessa Shaw), um fundo de melodrama familiar, e como também é habitual em Gray, directamente ligado às comunidades emigrantes da zona de Nova Iorque (a acção passa-se em Brighton Beach, a família da personagem de Phoenix é de origem russa). E a questão familiar, origens, identidade, expectativas, é importante no filme e no próprio arco da personagem. Gray eliminou as pistolas mas continua a filmar - como os polícias polacos de "Nós Controlamos a Noite" - "ecossistemas" familiares muito específicos. E de certa maneira isto é outra vez, ainda como nesse filme, uma variação sobre a parábola do filho pródigo.
James Gray filma admiravelmente, é um estilista. O tratamento da cor e as alternâncias interiores/exteriores e dia/noite, o peso de cada acção e cada gesto (a indolência inquieta de Joaquin Phoenix é mais uma vez usada às mil maravilhas), a precisão na definição das personagens secundárias (a primeira cena com os pais dele, chega ele encharcado depois da tentativa de suicídio dos primeiros planos), a expressão do estatuto simbólico das raparigas (Paltrow, como uma "projecção", a mulher que se vê da janela; e Shaw, mulher "real", quase uma noiva de conveniência comercial), o desenho dos espaços e o confronto de geografias (Brighton Beach e Manhattan). É um estilista, mas não é um "virtuoso" no sentido comum (e "pobre") do termo - nenhum rasgo gratuito, nenhum gesto grandiloquente, antes uma consistência de tom que tem horror a tudo o que a possa trair e se deposita inteiramente (como na cena final) na justeza emocional que foi capaz de construir. Não é de "classicismo" que se trata - o primeiro a sabê-lo impossível é Gray - mas seria preciso inventar uma expressão melhor do que "neo-classicismo" para caracterizar o seu cinema.
E depois, uma vez que Gray (ainda a entrevista) se declara "obcecado por pormenores", há que reparar em pequenas coisas quase subliminares, e ficar a pensar se foi por acaso ou se foi premeditado. Quase "private jokes", mas que ficam a "bater" depois de as descobrirmos. A personagem de Phoenix chama-se "Leonard", o apelido da família da de Shaw é "Cohen", e estes dois nomes juntos evocam um cantor célebre por cantar sofridas e mortificadas devoções masculinas... Ou, ainda mais fundo: foi por acaso que Gray trouxe Isabella Rossellini para o papel da mãe, Isabella que foi o fruto do amor proibido e condenado de Roberto e Ingrid Bergman?...