Thomas Mapfumo: o primeiro rugido do leão do zimbabwe

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Nascido em 1945, Thomas Mapfumo cantava desde os 16 anos. Nos Zutu Brothers, nos Cyclones, nuns  Hallelujah Chicken Run Band que tinham esse nome porque, quando não cantava, fazia outras coisas. Criava galinhas, por exemplo. Mas quando o jovem Mapfumo, vindo de uma pequena cidade rural até Salisbury, capital da então Rodésia, era músico, subia a palco e emulava James Brown, Otis Redding, Elvis Presley ou Mick Jagger.

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Nascido em 1945, Thomas Mapfumo cantava desde os 16 anos. Nos Zutu Brothers, nos Cyclones, nuns  Hallelujah Chicken Run Band que tinham esse nome porque, quando não cantava, fazia outras coisas. Criava galinhas, por exemplo. Mas quando o jovem Mapfumo, vindo de uma pequena cidade rural até Salisbury, capital da então Rodésia, era músico, subia a palco e emulava James Brown, Otis Redding, Elvis Presley ou Mick Jagger.

Num país que, apesar de independente da Coroa Britânica desde 1965, se manteve ferozmente colonialista, Mapfumo fazia o possível: tocava pelos bairros da comunidade negra, transpunha as barreiras de uma sociedade segredada (sendo músico, era tolerável fazê-lo) e actuava para a minoria branca nos clubes e hotéis de prestígio. Em 1980, quando foi posto um fim à segregação, quando ao ditador Ian Smith sucedeu, em eleições livres, o então libertador Robert Mugabe, Mapfumo não era o músico que cantava êxitos da Inglaterra e dos EUA. Era "o Leão do Zimbabwe", o músico mais famoso do país, o criador da "chirumenga" - que em Shona, a etnia de Mapfumo, significa "luta revolucionária".

No cosmopolitismo de Salisbury, hoje Harare, transformara a música ancestral do seu povo em força de combate. Uma simbiose de dois universos. O da sua infância na rural Marondera, onde se tocavam tambores ngoma e mbiras (metalofone de lamelas) para celebrar o ritual quotidiano dos vivos e invocar o espírito dos mortos; e o da cidade em convulsão: a da luta contra a segregação racial, mas também aquela onde se ouviam baixos e guitarras eléctricas, onde chegavam os sons das Caraíbas, da África do Sul, de Londres ou de Nova Iorque.

Trocou o inglês de Sam Cooke pelo shona e, no auge da luta pela libertação, em 1978, lançou "Hokoyo!" ("Atenção!"). Nele, dizia às mães do Zimbabwe que enviassem os filhos para a guerra - e por isso foi preso. Dois anos depois, "Gwindingwi Rine Shumba" ("Está um Leão no Arbusto"), canta o orgulho num país novo, é música altiva celebrando o passado que o antecedeu - nele, álbum de esperança, Mapfumo canta louvores ao primeiro ministro eleito, Robert Mugabe, e ao seu novo governo.

Ambos os álbuns, o primeiro gravado com a Acid Band, o segundo com o grupo que montou depois, The Blacks Unlimited, foram agora alvo de reedição e são matéria de uma magnífica intemporalidade (invenção musical, o nascimento de uma nova linguagem). São paralelamente, e sem paradoxo, dois manifestos históricos, indissociáveis do seu tempo e da história do país onde nasceram.

A vida ensinou-o a desconfiar

"Flash-forward" para 2002. Mapfumo, um dos músicos mais respeitados do Zimbabwe, abandonara-o há alguns anos. Tudo começara em 1989, quando editou "Corruption". Uma chamada de atenção, tal como havia feito dez anos antes, mas com outro destinatário. Já nada havia a louvar em Mugabe e Mapfumo deixava-o claro. A sua música deixou de passar na rádio, o cerco apertou-se. Coisa mesquinha, típica de ditaduras: acusado de envolvimento numa rede de venda de automóveis, crime comum que o transformaria em preso político, é obrigado a exilar-se. Foge para o Oregon, EUA, onde ainda reside.

Eis-nos então em 2002. Em entrevista ao magazine online Afropop, perguntam-lhe se Morgan Tsvangirai, a face mais visível da oposição a Mugabe (hoje membro do governo de transição que gere o país), seria alternativa ao poder instalado. A resposta é elucidativa - a vida ensinara-o a desconfiar: "Não sei. Com estes politicos, nunca podemos prever o que acontecerá. Tens que acreditar em ti próprio e no povo." Acentua: "Acreditar no povo, porque é ele a maioria." De certa forma, fora essa convicção que o conduzira a "Hokoyo!" e "Gwindingwi Rine Shumba".

Mergulhou na raiz popular, renovou-a, tornou-a voz daqueles que representava. Fê-lo com a inventividade de um visionário - unificando os sons cosmopolitas que fluíam pela cidade a algo mais permanente, transpondo as melodias encantatórias e torrenciais da mbira para guitarra eléctrica. E fê-lo com a pose altiva e confrontante de Fela Kuti, o mítico músico nigeriano.

Conta-se que durante uma das habituais rusgas da polícia de Ian Smith nos bairros negros, os agentes armados deram a também habitual ordem à população para se dispor frente a uma parede. Mapfumo disse-lhes que esperassem. Entrou em casa. Regressou. Tinha vestido o casaco prateado que usava em palco. Depois, então sim, encostou-se à parede - não fosse a ironia de ter sido reconhecido por um dos polícias, que, fã da sua música, perdoou a afronta, a "audácia" do gesto custar-lhe-ia caro.

Olhando para as capas dos seus dois primeiros álbuns, estes agora reeditados, identificamos um curioso paralelismo que reflecte aquilo que representam. A capa de "Hokoyo!", negra e de título a vermelho sangue, mostrando uma multidão fotografada em expressivo preto e branco, recorda-nos a de "O Canto e as Armas" de Adriano Correia Oliveira, grito por mudança em tempos de ditadura, onde o vermelho não era só sangue, era sangue escorrendo. Já a capa de "Gwindingwi Rine Shumba" mostra os músicos como agricultures numa paisagem rural, com Mapfumo destacando-se como figura tutelar, feiticeiro vestido de negro. O seu peso simbólico nada tem de épico, como "Hokoyo!". É uma celebração de tradição e a manifestação de um desejo de futuro. Excepto pela figura de Mapfumo, tem algo dos arados e lavradores de um álbum como "... E Vira Bom", editado pelo GAC (Grupo de Acção Cultural) durante o fervor revolucionário do pós-25 de Abril. Naquelas capas, duas histórias diferentes, dois momentos históricos semelhantes.

Em 2008, ano das últimas e sangrentas eleições no Zimbabwe, Thomas Mapfumo votou em Tsvangirai, principal opositor de Mugabe. Não permitiu, contudo, que a sua música fosse usada nos comícios do canditato que apoiava. "Não pertenço a nenhum partido político. Sou um mensageiro. Um combatente pela liberdade. Um representante. Se alguém me apontar o dedo, estarão a apontá-lo ao povo". O leão do Zimbabwe não deixou de rugir.