Seja em legitimidade seja em número, Sines ainda está a crescer

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Foi ao som do reggae janado do jamaicano Lee Perry que a 11.ª edição do Festival de Músicas do Mundo encerrou

Foi ao som do reggae janado do jamaicano Lee Perry que a 11.ª edição do Festival de Músicas do Mundo encerrou, após nove dias consecutivos de música que começaram, tal como é hábito desde 2005, em Porto Covo. À medida que o fogo-de-artifício - que surge todos os anos a meio do último concerto do último dia - varria o céu de Sines em violentas explosões de cor, uma simples pergunta podia ser colocada: o que mais pode fazer este festival?
Os números oficiais ainda estão a ser contabilizados, mas de acordo com Carlos Seixas, director artístico do festival, tudo aponta para que ontem tenha sido a noite com mais público de sempre na história do FMM, isto contando com o público que se deslocou à Avenida da Praia após o último concerto no Castelo. (Todos os anos, após o concerto oficial de encerramento, há mais um na praia seguido de sessão de DJ.)
Será por aí que Sines pode crescer e não pelo Castelo, que está invariavelmente cheio ou quase - se bem que este ano a noite de quarta-feira esteve abaixo das expectativas devido a uma inesperada chuvada. Os concertos em Porto Covo também parecem começar a ganhar adeptos: a primeira noite deste ano, sexta-feira, 17, teve quatro mil pessoas, recorde de assistência do prolongamento de FMM a Porto Covo.
O Mezzo no Castelo
Mas se em Sines é difícil crescer mais, porque não trazer o resto do mundo à cidade? Este ano deu-se, pela primeira vez, a presença de um canal de televisão estrangeiro: o Mezzo deslocou-se a Sines para filmar o concerto do jazzman americano James Blood Ulmer. A simples presença de um concerto do FMM no Mezzo funciona como forma de espalhar o nome do festival, de o tornar mais apelativo.
Reza Ackbaraly, responsável pela programação jazz do Mezzo, explica: "Era o único concerto que o James Blood Ulmer ia dar na Europa." Por norma os festivais tentam trazer artistas que já estejam em digressão, pois assim o cachet é mais baixo, mas, segundo Ackbaraly, a opção de ir buscar artistas para espectáculos únicos confere "ousadia e autonomia" a um festival. Foi, aliás, a idiossincrasia habitual dos cartazes de Sines que lhe fez ter curiosidade sobre o festival. "Vi na Internet um cartaz de Sines há três anos. Admirei a originalidade e o risco das escolhas." Segundo Ackbaraly, o facto de "haver artistas que vêm de propósito [a Sines] só para um concerto" é a marca "que distingue um grande festival".
O concerto que o Mezzo gravou de Ulmer foi mais um desses casos de concerto-cometa (goste-se ou não) que mostram o grau de risco que se corre em Sines: guitarrista de excepção, Ulmer subiu ao palco sozinho, munido apenas de uma guitarra eléctrica (uma belíssima Gibson) para enfrentar uns quantos milhares de festivaleiros. Tão parco som contra tanta cerveja podia ter indiciado o pior, mas aqui há uma dose de interesse grande pelo desconhecido, pelo que Ulmer foi ouvido com atenção e devidamente apreciado.
Ulmer baseou cerca de uma hora de actuação numa espécie de derivação mantra do blues, em que as frases blues se seguiam com fluidez. Não procurou o virtuosismo clássico, nem sequer se dedicou ao fingerpicking: antes deixou sair notas e mais notas como se não houvesse separação entre elas. (A velha e gasta metáfora do rio assenta aqui bem.)
No exacto oposto da solidão frágil de Ulmer estiveram os finlandeses Alamaailman Vasarart, que têm o seu quê de terroristas. Já tinham tocado em Sines, na Avenida da Praia, e a recepção ao seu som foi tão boa que voltaram para o penúltimo concerto da última noite no castelo (esta espécie de fidelidade, de hipótese de crescimento, é um dos pormenores que fazem com que os músicos gostem de Sines). São uma espécie de terroristas sonoros, estes finlandeses, e é nítido que têm um pé no rock progressivo, pela forma como não deixam um tema estar quieto, mas a instrumentação atípica dá uma cor e um timbre inusitados a esta música. São cinco tipos: um baterista, dois violoncelistas, um teclista (órgão e piano) e dois homens dos metais que dividem entre si saxofones, clarinetes, trombones e sopros.
Há tanta música na cabeça destes moços que num instante podem estar a fazer um jazz swingado e noutro, por via dos violoncelos, lançar linhas de baixo com aspereza rock. Podem num segundo soar a fanfarra e dois pares de compassos depois dedicar-se a belas melodias clássicas. O papel dos violoncelos é importante: usando a distorção, chegam a soar quase a metal; outras vezes as cordas são sinuosas e varrem as canções com uma beleza quase etérea.
São particularmente interessantes quanto os metais se soltam, largando notas estridentes e instalando o caos (devidamente controlado). E parecem ter apenas uma regra, que é a de destruir a beleza que eles próprios constroem: quando o órgão estabelece uma base melódica confiável, é rapidamente atacado por todos os outros instrumentos presentes. Uma boa parte do tempo esta música soa a uma sessão de espancamento mútuo entre os instrumentos. Mas uma boa sessão de espancamento.
A fama de Perry
Espancamentos sonoros é coisa que não há (nunca houve) na música de Lee Perry, mítico produtor jamaicano, responsável por boa quota-parte desse som a que chamamos dub, e por uma data de técnicas de produção que marcaram a música pop de final do século XX e início do XXI. Perry fechou o festival, mas quase se pode dizer que, mais do que ouvi-lo, é necessário vê-lo, porque aos 73 anos ele ainda faz jus à sua fama de homem fora de comum (embora ao longo dos anos muitos o tenham apelidado pura e simplesmente de "louco"): surge vestido numa espécie de fato cheio de dourados (com Los Angeles escrito nas costas) e com tantas cores quanto o mais opulento dos arco-íris, o boné tem espelhos colados, as botas estão nitidamente dois ou três números acima do seu.
Pode, sem escândalo, defender-se que "Scratch" Perry é mais interessante enquanto compositor e produtor que enquanto intérprete, mas também se pode admitir que a idade já começa a pesar e Perry, mais que oferecer uma lição dub, deu um concerto de reggae que, estando longe de ser clássico, também não foi subversivo. Obviamente Perry não tem uma má canção no reportório e não brinca em serviço: a máquina rola com uma segurança admirável e, digamos, a cada quatro temas (isto mais ou menos contabilizado de cabeça), há um que sai num equilíbrio perfeito entre ritmo dengoso, apelo dançável e melodia janada, lançando um pouco mais de frémito. (Muito disto cortesia de uma secção rítmica que de cada vez que saía fora do espartilho da sua função primordial era um encanto.)
Não terá sido o concerto da vida de muita gente, mas não terá defraudado ninguém, até porque é música tremendamente apelativa.

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Foi ao som do reggae janado do jamaicano Lee Perry que a 11.ª edição do Festival de Músicas do Mundo encerrou, após nove dias consecutivos de música que começaram, tal como é hábito desde 2005, em Porto Covo. À medida que o fogo-de-artifício - que surge todos os anos a meio do último concerto do último dia - varria o céu de Sines em violentas explosões de cor, uma simples pergunta podia ser colocada: o que mais pode fazer este festival?
Os números oficiais ainda estão a ser contabilizados, mas de acordo com Carlos Seixas, director artístico do festival, tudo aponta para que ontem tenha sido a noite com mais público de sempre na história do FMM, isto contando com o público que se deslocou à Avenida da Praia após o último concerto no Castelo. (Todos os anos, após o concerto oficial de encerramento, há mais um na praia seguido de sessão de DJ.)
Será por aí que Sines pode crescer e não pelo Castelo, que está invariavelmente cheio ou quase - se bem que este ano a noite de quarta-feira esteve abaixo das expectativas devido a uma inesperada chuvada. Os concertos em Porto Covo também parecem começar a ganhar adeptos: a primeira noite deste ano, sexta-feira, 17, teve quatro mil pessoas, recorde de assistência do prolongamento de FMM a Porto Covo.
O Mezzo no Castelo
Mas se em Sines é difícil crescer mais, porque não trazer o resto do mundo à cidade? Este ano deu-se, pela primeira vez, a presença de um canal de televisão estrangeiro: o Mezzo deslocou-se a Sines para filmar o concerto do jazzman americano James Blood Ulmer. A simples presença de um concerto do FMM no Mezzo funciona como forma de espalhar o nome do festival, de o tornar mais apelativo.
Reza Ackbaraly, responsável pela programação jazz do Mezzo, explica: "Era o único concerto que o James Blood Ulmer ia dar na Europa." Por norma os festivais tentam trazer artistas que já estejam em digressão, pois assim o cachet é mais baixo, mas, segundo Ackbaraly, a opção de ir buscar artistas para espectáculos únicos confere "ousadia e autonomia" a um festival. Foi, aliás, a idiossincrasia habitual dos cartazes de Sines que lhe fez ter curiosidade sobre o festival. "Vi na Internet um cartaz de Sines há três anos. Admirei a originalidade e o risco das escolhas." Segundo Ackbaraly, o facto de "haver artistas que vêm de propósito [a Sines] só para um concerto" é a marca "que distingue um grande festival".
O concerto que o Mezzo gravou de Ulmer foi mais um desses casos de concerto-cometa (goste-se ou não) que mostram o grau de risco que se corre em Sines: guitarrista de excepção, Ulmer subiu ao palco sozinho, munido apenas de uma guitarra eléctrica (uma belíssima Gibson) para enfrentar uns quantos milhares de festivaleiros. Tão parco som contra tanta cerveja podia ter indiciado o pior, mas aqui há uma dose de interesse grande pelo desconhecido, pelo que Ulmer foi ouvido com atenção e devidamente apreciado.
Ulmer baseou cerca de uma hora de actuação numa espécie de derivação mantra do blues, em que as frases blues se seguiam com fluidez. Não procurou o virtuosismo clássico, nem sequer se dedicou ao fingerpicking: antes deixou sair notas e mais notas como se não houvesse separação entre elas. (A velha e gasta metáfora do rio assenta aqui bem.)
No exacto oposto da solidão frágil de Ulmer estiveram os finlandeses Alamaailman Vasarart, que têm o seu quê de terroristas. Já tinham tocado em Sines, na Avenida da Praia, e a recepção ao seu som foi tão boa que voltaram para o penúltimo concerto da última noite no castelo (esta espécie de fidelidade, de hipótese de crescimento, é um dos pormenores que fazem com que os músicos gostem de Sines). São uma espécie de terroristas sonoros, estes finlandeses, e é nítido que têm um pé no rock progressivo, pela forma como não deixam um tema estar quieto, mas a instrumentação atípica dá uma cor e um timbre inusitados a esta música. São cinco tipos: um baterista, dois violoncelistas, um teclista (órgão e piano) e dois homens dos metais que dividem entre si saxofones, clarinetes, trombones e sopros.
Há tanta música na cabeça destes moços que num instante podem estar a fazer um jazz swingado e noutro, por via dos violoncelos, lançar linhas de baixo com aspereza rock. Podem num segundo soar a fanfarra e dois pares de compassos depois dedicar-se a belas melodias clássicas. O papel dos violoncelos é importante: usando a distorção, chegam a soar quase a metal; outras vezes as cordas são sinuosas e varrem as canções com uma beleza quase etérea.
São particularmente interessantes quanto os metais se soltam, largando notas estridentes e instalando o caos (devidamente controlado). E parecem ter apenas uma regra, que é a de destruir a beleza que eles próprios constroem: quando o órgão estabelece uma base melódica confiável, é rapidamente atacado por todos os outros instrumentos presentes. Uma boa parte do tempo esta música soa a uma sessão de espancamento mútuo entre os instrumentos. Mas uma boa sessão de espancamento.
A fama de Perry
Espancamentos sonoros é coisa que não há (nunca houve) na música de Lee Perry, mítico produtor jamaicano, responsável por boa quota-parte desse som a que chamamos dub, e por uma data de técnicas de produção que marcaram a música pop de final do século XX e início do XXI. Perry fechou o festival, mas quase se pode dizer que, mais do que ouvi-lo, é necessário vê-lo, porque aos 73 anos ele ainda faz jus à sua fama de homem fora de comum (embora ao longo dos anos muitos o tenham apelidado pura e simplesmente de "louco"): surge vestido numa espécie de fato cheio de dourados (com Los Angeles escrito nas costas) e com tantas cores quanto o mais opulento dos arco-íris, o boné tem espelhos colados, as botas estão nitidamente dois ou três números acima do seu.
Pode, sem escândalo, defender-se que "Scratch" Perry é mais interessante enquanto compositor e produtor que enquanto intérprete, mas também se pode admitir que a idade já começa a pesar e Perry, mais que oferecer uma lição dub, deu um concerto de reggae que, estando longe de ser clássico, também não foi subversivo. Obviamente Perry não tem uma má canção no reportório e não brinca em serviço: a máquina rola com uma segurança admirável e, digamos, a cada quatro temas (isto mais ou menos contabilizado de cabeça), há um que sai num equilíbrio perfeito entre ritmo dengoso, apelo dançável e melodia janada, lançando um pouco mais de frémito. (Muito disto cortesia de uma secção rítmica que de cada vez que saía fora do espartilho da sua função primordial era um encanto.)
Não terá sido o concerto da vida de muita gente, mas não terá defraudado ninguém, até porque é música tremendamente apelativa.