Entrevista: “Mas Chico é nome de escritor ruim”
Na sua primeira entrevista sobre Leite Derramado, Chico Buarque abre a porta de casa e do novo romance. Making of de um livro, de um músico, de um escritor e de um herói brasileiro, não necessariamente por esta ordem.
Esqueçam os olhos, o sorriso, a classe e o charme. Chico Buarque, 65 anos, é muito mais do que isso. “Eran las cinco en punto de la tarde” quando o escritor e compositor brasileiro abriu a porta de casa, no Alto Leblon, no Rio de Janeiro, para dar a sua primeira entrevista sobre “Leite Derramado”. Dias antes, tinha sido a atracção da 7ª Festa Literária Internacional de Paraty, onde participou numa divertida mesa-redonda com o escritor brasileiro Milton Hatoum e falou pela primeira vez sobre este romance que saiu no Brasil há meses e pouco depois foi publicado em Portugal pela Dom Quixote.
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Esqueçam os olhos, o sorriso, a classe e o charme. Chico Buarque, 65 anos, é muito mais do que isso. “Eran las cinco en punto de la tarde” quando o escritor e compositor brasileiro abriu a porta de casa, no Alto Leblon, no Rio de Janeiro, para dar a sua primeira entrevista sobre “Leite Derramado”. Dias antes, tinha sido a atracção da 7ª Festa Literária Internacional de Paraty, onde participou numa divertida mesa-redonda com o escritor brasileiro Milton Hatoum e falou pela primeira vez sobre este romance que saiu no Brasil há meses e pouco depois foi publicado em Portugal pela Dom Quixote.
“Leite Derramado” foi escrito depois do sucesso mundial de “Budapeste” (Prémio Jabuti 2004, cuja adaptação ao cinema está em exibição nas salas brasileiras) e há quem o considere o romance “mais hábil” e “mais inspirado” do autor. Chico criou Eulálio, um velho centenário que, deitado numa cama de hospital, conta às enfermeiras, ao médico, aos maqueiros e à filha a história da decadência da família. É um monólogo delirante, pontuado por momentos de humor, onde, em 200 páginas, o autor de “Estorvo” e “Benjamim” condensa a história dos últimos dois séculos brasileiros.
Quando se entra na sala de Chico, não é o piano do século XIX que pertenceu ao seu pai ali, nem são os quadros nas paredes, nem são os livros na estante (sobre Oscar Niemeyer ou Vinicius de Moraes, e um dicionário que é uma relíquia) que retêm a atenção. É a varanda e janela que não termina mais, e de onde se avista o Leblon e Ipanema até à pedra do Arpoador. “Em dias límpidos”, diz o escritor, “chega-se a ver a costa de Niterói”.
Depois de desaparecer a assobiar na cozinha onde foi fazer um “cafezinho”, sentou-se no sofá e, entre receber telefonemas e toques de campainha, durante quase duas horas falou de si, do seu trabalho, do velho Eulálio e de Matilde. Com simpatia e gentileza extremas, respondeu a todas as perguntas e ainda tirou dúvidas por “e-mail”. A mãe, dona Maria Amélia, está quase a fazer 100 anos e leu o romance. “Gostou do livro e aprovou as referências históricas. Só fez um reparo ao turbante da [personagem] Matilde”. Não se pode ser perfeito em tudo.
Na Festa Literária de Paraty afirmou que sabia que, quando voltasse à ficção, não podia escrever nada parecido com “Budapeste”. E se nesse romance escreveu sobre uma cidade que nunca viu, em “Leite Derramado” achou que podia escrever sobre um tempo onde nunca esteve. Mas por aqui passa também um fascínio pelo navio francês transatlântico “Lutétia”, muito referido ao longo do livro pelo narrador.
Essa foi uma das ideias. Eu estava determinado a escrever um livro. Tinha terminado o meu ciclo musical, com canções novas, espectáculos. Parei e disse: “Está na hora de voltar à literatura”. Durante meses, só me dedicava a querer escrever, sem escrever nada. Ia escrevendo, procurando caminhos. Procurei vários até encontrar esse de “Leite Derramado”. Foi a partir do momento em que comecei a namorar a ideia de situar o núcleo da história no começo do século passado que por algum motivo fui dar nesse navio. Conversas que ia tendo ao longo do tempo.
Conversava com quem?
Tenho uma mãe centenária, vai fazer 100 anos em Janeiro. Tenho a impressão que foi ela a primeira pessoa a me falar sobre esses navios. Ela mora em Copacabana, aqueles navios ali passando... Alguns dos navios nomeados - o “Cap Polónio”, alemão; o “Lutétia”, da França; o “Arlanza”, inglês - são navios de que ela me falou. Como precisava de um caminho para o livro, comecei a me interessar por esses navios. Comecei a ler sobre o “Lutétia” e havia várias histórias interessantes ali.
Li sobre várias viagens, a última viagem do Santos Dumont [aviador] da Europa para o Brasil foi a bordo do “Lutétia"; o grupo Oito Batutas - que era do Pixinguinha com músicos brasileiros que pela primeira vez se apresentaram na Europa, em Paris, com grande sucesso - voltou no “Lutétia”. Le Corbusier [o arquitecto] e Josephine Baker [a cantora] fizeram nele uma viagem do Rio para Bordeaux.
Como músico você fez, com Toquinho, a primeira parte dos espectáculos da Josephine Baker numa “tournée” em Itália.
Achei engraçado. Juntar o meu encontro com a Josephine Baker com o meu grande interesse por arquitectura. Sou ex-estudante de arquitectura, muito amigo de Oscar Niemeyer, e achei curioso esse encontro de Le Corbusier com a Josephine Baker no “Lutétia”. Nessa altura pensei: “Por alguma intuição é nesse navio que eu vou. É por aí que eu vou começar essa história”. Enfim. A história não começou por aí, mas comecei a me localizar naquele ano, em 1929, a partir daí. Claro que o navio, no fim das contas, tem um papel secundário no livro. Mas a isca foi o “Lutétia”.
Aconteceu-lhe também ter ouvido a canção “O Velho Francisco”, que foi escrita por si em 1987, numa versão recente na voz de Mónica Salmaso.
Isso foi o que me encaminhou para a ideia de o narrador ser um sujeito com idade avançada e com memórias. Não quis escrever um romance situado em 1929, quis dar um relato actual com essas memórias, algo confusas, como são as memórias de um velho. Não tanto quanto “O Velho Francisco”, que foi quem me deu essa luz. Esse é um velho absolutamente delirante - o da canção. O meu tem momentos de delírio, mas tem momentos de lucidez. Supostamente aquela história aconteceu com ele. Ele não está a inventar nada. Talvez esteja a tergiversar, não quer contar exactamente como foi. E há também essa confusão própria de um homem de 100 anos. Obsessões, recordações que voltam sempre modificadas, aqui e ali há lapsos de memória, há esquecimentos voluntários. Tudo isso.
Isso faz parte do que há de melhor neste livro...
Eu achei que o processo de recordação de um velho indicava um caminho literário. O processo da memória do velho me pareceu um processo moderno de narrativa. Muitas vezes, essas histórias que aparecem e mais adiante reaparecem, contadas de outra forma, eu já usei em outros livros mas talvez como um exercício de estilo. Aí não, é próprio dele, próprio da maneira daquele velho relembrar a sua história.
Porque é que deu à personagem o nome de Eulálio? O seu tetravô também se chamava Eulálio.
Como é que você sabe disso?!
Está no livro “Tantas Palavras, Todas as Letras & Reportagem biográfica de Humberto Werneck” (Companhia das Letras) que ele se chamava Eulálio da Costa Carvalho.
(risos) É verdade, é verdade. Não, não foi em homenagem ao meu tetravô, não.
Em Paraty disse que as lembranças da família tinham sido muito importantes.
Relatos de família, coisas que ouvi, estão no livro. Mas o nome Eulálio não. O nome Eulálio é um nome que existe na minha família e que se repete. Meu tetravô e também um tio que se chamava Eulálio. [Já anoiteceu, o escritor olha através da janela e perde-se: “Ai, que lua. Linda mesmo!"] O curioso é que o nome não foi pensado no início, mas há essas coincidências que são instigantes. Quando começo a encontrar coincidências, tenho a impressão de que estou no caminho correcto. Já com o livro encaminhado fui descobrir o significado da palavra eulalia. A minha preocupação com a narrativa era tornar a fala ou a escrita - que é uma verborragia constante desse velho - fluida. Queria dar uma fluidez a essa narrativa que permite alguns capítulos sejam, na verdade, parágrafos únicos.
Ia fazer-lhe essa pergunta, sobre a ausência de parágrafos ao longo de “Leite Derramado".
São longos parágrafos onde pretendo que não haja nenhum tropeço. Que não haja solução de continuidade, que uma coisa puxe a outra, que puxe a outra, que puxe a outra e que não fique forçado. Não quero fazer um artifício gráfico. É como se fossem golfadas de memória desse velho. A eulalia é o falar agradável. Eu não sabia disso quando dei o nome de Eulálio. Mas no meio do caminho eu me interessei: Eulálio de onde vem isso aí? A eulalia significa fluência no falar, assim como a cacolalia, caco é feio, não é?, é o falar mal, falar com defeitos ou até com erros de linguagem, solecismos. Taquilalia é o falar depressa [risos]. E o nome honestamente não foi escolhido por isso, mas poderia ter sido. Tem a ver com esse desejo do velho de falar, de falar, de falar, de encontrar interlocutores e quando não há interlocutores ele inventa, ele confunde. E quando não há nenhum mesmo, ele fala para as paredes mas não pára de falar. Ou se pára, pára para dormir e recomeça na página seguinte. No capítulo, parágrafo seguinte. Com um novo impulso e vai até ao fim pretendendo dar essa fluidez.
Escreveu este romance sequencialmente? Quando se sentou para escrever o livro começou do princípio ao fim?
Sim. Já tinha algumas coisas esboçadas aqui e ali. Pouca coisa. Quando eu julguei que tinha o livro, que tinha história boa, a história que me interessava à mão, comecei a escrever do princípio e fui até ao fim. Evidentemente, uma outra vez, mas pouco, retornei a trechos anteriores por causa de acontecimentos que sucediam ali adiante. Fui obrigado a retocar algumas coisas mas isso foi muito pouco. Na verdade, ele foi acontecendo de cabo a rabo. Geralmente o que acontecia antes é que provocava [risos], é que tinha consequências ali adiante. Uma ou outra vez confesso que não. Alguma coisa que me interessava que acontecesse ali adiante, precisava que eu alterasse uma coisinha ou outra que já estava escrita. Mas de modo geral foi escrito do começo ao fim, na ordem que está no livro.
Sempre que recomeçava a escrita deste romance, lia o que já tinha escrito para trás. Lia alto, lia só para si?
Não cheguei a ler alto, não. Mas era como se lesse alto. Eu só me satisfazia com a escrita quando ela soava bem. Mas para soar bem, não preciso falar alto. Me soa bem um pouco como uma música dentro da cabeça. Quando digo música, digo música de propósito porque tem a ver. Acho que é evidente. Quem sabe que sou músico, que trabalho com música, ou mesmo talvez para quem não soubesse, daria para se perceber que esse autor mexe com música. É um autor que tem um ouvido musical. Agora eu, para pensar numa música, não preciso necessariamente de cantá-la. Dentro da minha cabeça tenho a melodia. E a melodia de cada frase do livro tinha que soar bem dentro da minha cabeça. Não me aconteceu de falar alto para ver se soava bem, não foi necessário. Há uma cadência, um ritmo dentro de cada frase que obedece a um critério musical. Isso já disse em relação a outros livros meus e é facto.
Como é que tratou a linguagem neste romance? De vez em quando o velho diz: “...em mil seiscentos e lá vai pedra”. Usam-se estas expressões agora no Brasil?
“E lá vai fumaça!” Engraçado que eu quase usei uma expressão portuguesa, “mil novecentos e carqueja”. Li não sei onde, mas não está nos meus dicionários e acabei por deixar de lado. Aqui ninguém ia perceber. “E lá vai fumaça” era o mais usado no Brasil, mas também fora de moda. Se você falar na rua “mil e oitocentos e lá vai fumaça” vai-se entender. Se falar “mil oitocentos e lá vai pedregulho” também. Agora eu acho que a linguagem do velho tem alguns anacronismos, principalmente quando ele se decide a falar com uma certa afectação. Quando ele lida com pessoas mais humildes, é uma forma de ele se valorizar por intermédio da linguagem, de criar uma distância de classe até, e então ele começa a falar de uma certa forma empolada. Ao mesmo tempo, aqui e ali, ele fala um português ou um brasileiro quase coloquial. Evidentemente que não escrevo como falo, nem pretendo reproduzir a linguagem oral, mas não creio que o livro inteiro seja escrito numa linguagem “démodée”. Acho que muitas vezes propositadamente é, mas não ao longo do livro todo.
Falou nas lembranças de família. Há críticos que consideram que há neste livro grande influência da obra do seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, autor de “Raízes do Brasil”.
Conscientemente não há influência dos livros de meu pai. Há a presença do meu pai porque ele é um historiador e os estudos e o trabalho dele normalmente vazavam para a conversa do dia-a-dia. Não que se fosse conversar sobre a história do Brasil o tempo todo. Inclusive eu citei lá coisas anedóticas que ele gostava muito. O que ele não podia usar, porque não cabia no tom dos livros dele, os restos dessas histórias, a pequena história, eram assuntos lá em casa. Pequenas coisas sem importância que nas pesquisas ele descobria, que eram engraçadas, mas não faziam parte do repertório dele oficial, do que era escrito. Mas que ele comentava. Eu naturalmente sou interessado em História, em História do Brasil especialmente, mas não sou um grande estudioso nem sequer da obra do meu pai.
É como se houvesse uma sombra, como se a obra do seu pai fosse demasiado grande? Deve ser complicado ser filho do seu pai, como deve ser complicado, para as suas filhas, serem suas filhas.
Vou lhe falar a verdade. O meu pai, o nome dele na minha juventude e na minha infância, não pesavam sobre mim. Até pelo contrário, as pessoas perguntavam é se eu era filho do Aurélio. O Aurélio é um dicionarista [risos]. É um primo distante do meu pai. E eu ficava aborrecido de me falarem sempre do Aurélio. E saía no jornal “Chico, filho do Aurélio” ou “Chico, sobrinho do Aurélio”, nem sobrinho eu sou! E eu dizia: “Sou filho do Sérgio” [diz com entoação]. Não tive esse problema com o meu pai. Poderia ter uma rejeição pelo peso que ele tem. Mas os livros dele são livros para historiadores. Eu conheço o que o meu pai escreveu, mas não sou profundo conhecedor. Agora o assunto, sim, me interessa. História talvez seja mais até genético do que resultado de aprendizado. Leio um jornal, há referências históricas, eu vou ali. Como se há um mapa das Honduras, vou olhar o mapa. Se há uma referência a uma guerra no Afeganistão, gosto de ir ver de onde é que vem isso, tenho um interesse natural por História. Mas repito: não sou um estudioso. Não tenho a pretensão com o meu livro de estar interpretando a história do Brasil.
Para a crítica há neste livro influência de Machado de Assis. Concorda?
De novo vou ter que dizer que não tenho consciência de tudo o que são as minhas influências. Tão-pouco sou um conhecedor da obra de Machado de Assis. Vou contar uma história. Eu comecei a me interessar por literatura por influência do meu pai. O meu pai antes de ser historiador foi crítico literário. Quando ele era muito jovem, tinha 20 anos, foi correspondente no Rio de Janeiro da revista “Klaxon”, criada pelos modernistas de São Paulo como veículo de divulgação de seu movimento. Era amigo de Mário de Andrade, daquela gente toda. E a vocação dele era literária. Foi para a Alemanha nos anos 30, lá entrevistou o Thomas Mann, trouxe da Alemanha informações sobre autores que eram pouquíssimo conhecidos no Brasil. Talvez tenha sido a primeira pessoa a escrever sobre Kafka e Joyce. Então a minha biblioteca de formação eram os livros que estavam na estante de meu pai. Interessava-me, um pouco, talvez porque eu me quisesse aproximar do meu pai por esse intermédio da literatura. E eu não me lembro de Machado de Assis na estante do meu pai.
E?
Depois perguntei a pessoas próximas, professores que o conheceram, se sabiam da ligação de meu pai com Machado de Assis. Disseram-me que respeitavam mas que não era um apaixonado por Machado de Assis. Porque o movimento modernista, em 1922, precisou esconder Machado de Assis para se afirmar como uma nova literatura no Brasil. E essa era a literatura que interessava mais a meu pai. Então estudei, li Machado de Assis, como li Eça de Queirós na escola. Eu li “Dom Casmurro”, “O Alienista”. Não li “Memórias Póstumas de Brás Cubas” [risos] e têm citado muito ele.
Eu sou um leitor muito indisciplinado, leio muito e sem uma direcção determinada. Não tenho tempo de ler tudo o que quero, evidentemente. O ano passado foi um ano em que se falou muito de Machado de Assis por causa do centenário. Não li literatura enquanto estava escrevendo, mas claro que os jornais eu lia. E Machado esteve muito presente. O facto de ter lido o Machado nos meus 15, 16 anos, isso conta muito. Foi lido lá atrás, na nossa adolescência. De alguma forma percorre algum caminho e pode transparecer na escrita. Não recuso isso, não. Pode ser que seja muito mais forte do que eu possa imaginar. E talvez a leitura dos jornais sobre Machado, sobre “Dom Casmurro”, tenha reavivado no meu inconsciente a presença de Machado de Assis. Agora é claro que quando a gente fala do Rio, o livro puxa pela história do Rio. Nem só a história, como a geografia. O urbanismo, as mudanças arquitectónicas que algumas eu acompanhei, outras são memórias emprestadas. Passa até pelo tempo, fim do século XIX, o tempo de Machado: as relações sociais de parte do meu livro são mais ou menos aquelas que estão na obra de Machado. O meu livro passa pelo tempo de Machado de Assis.
Queria que esta personagem e o seu discurso representassem a decadência do Rio de Janeiro como centro político, económico e cultural? Pensou nisso?
Bom, há a decadência da própria família, daquela família que foi influente na passagem do século XIX para o século XX até ao ano de 1929/30, que é o fim da Velha República, que significava toda a riqueza, todo o fausto, todo o poder da família do meu velho, a família Assumpção. A decadência começa a partir daí e a decadência do Rio acompanha isso. O Rio como centro de decisão política já vinha sendo ameaçado desde o fim da Velha República. É a chamada República Café-com-leite porque havia alternância entre São Paulo e Minas Gerais. A partir de 1930 chega uma gente de fora que são os gaúchos que se instalam aqui no Rio. Agora a riqueza e mesmo a importância do Rio de Janeiro como cidade em termos de urbanismo e de arquitectura prossegue até à mudança da capital para Brasília. Vai-se modificando, saem os chalés, entram os arranha-céus, os altos prédios com influência do Art Déco francês. Isso eu vi, está presente aí, alguma coisa do que restava. Ainda há exemplos desse tipo de chalé que eu menciono no livro em alguns bairros do Rio. Enfim, arquitectonicamente passa daí, vai para os prédios Art Déco e da arquitectura modernista por influência de Le Corbusier, Oscar Niemeyer e muitos outros.
Havia alguma intenção, programa, com a escrita deste livro, ao abordar temas como a corrupção, o racismo, etc.
É evidente que sobretudo na Velha República nem sequer se falava em corrupção. Era natural naquelas poucas famílias, na oligarquia que mandava no Brasil, naquelas poucas famílias que dividiam o poder, a prática de nepotismo, o tráfego de influências, a confusão entre público e privado; o que hoje é um escândalo nacional era tratado com a maior naturalidade. Eu quis que esse meu velho visse as coisas assim. Para ele era um país herdado, que ele foi perdendo. Mas que para ele, desde a sua infância, do que ele viu e ouviu falar dos seus antepassados, era natural. Era natural que ele herdasse aquela casa, era natural que herdasse o poder que acabou perdendo. Era natural que se perpetuasse como membro de uma família poderosa. E ele perde esse poder, perde essa riqueza, mas não perde a pose, se julga ainda um membro da oligarquia.
Mas no fim do livro ele fica muito perto do crime, há as favelas, os evangélicos, é um retrato duro.
Não é um retrato nobre, mas ele mantém-se à margem disso. Isso é um pouco do pensamento da classe dominante que ainda existe hoje. Evidentemente que o narcotráfico não é bem visto, mas se é o meu neto que é traficante dá-se um desconto, porque foi um desvio, foram as más companhias [risos]. Então, esse sentido de família nele permanece, é uma coisa que vem lá de trás e evidentemente já virou um delírio. Mas ele pensa assim. Eu não quero ter um olhar de fora para com o meu narrador. Eu tenho que ver com simpatia. Não quero sequer ter uma piscadela de olho para dizer, olha como sou corrupto, olha como sou a-ético. Não. Pretendo que isso seja dito com a cabeça dele, com a mentalidade dele. Ele acha tudo isso natural, os maiores desastres do tataraneto ser traficante são contingências mas tudo vai voltar ao normal. O normal está lá atrás no status social dele, que se perdeu mas que para ele está vivo.
Já confundiram o discurso deste narrador com o do autor?
Sem dúvida essa confusão entre narrador e autor é recorrente. Eu acho que não tenho nada a ver com ele mas enquanto autor procuro olhar com o olho dele. Não quero que o autor se descole do narrador a ponto de dizer: “Olha, esse narrador é um crápula”. Eu não preciso disso, acho que é evidente, o autor não é o narrador.
Samuel Titan Jr., moderador na mesa em Paraty, lembrou que Roberto Schwarz tinha dito que aqui existe uma figura feminina poderosa feita de quase nada. Como é que construiu esta Matilde? E as mulheres que escutam este homem numa cama de hospital?
Ele se dirige quase que o tempo todo a mulheres (mas também fala com o médico e com os carregadores). Tem a enfermeira que seria a namorada dele, tem a enfermeira-chefe, é tudo vago. Tem a filha que às vezes ele confunde com a mãe. E Matilde, a mulher, eu até pensei mas não consegui. Tem coisas que você pretende fazer e que depois a escrita se recusa a fazer. Cheguei a imaginar ele se dirigindo à mulher como se ela estivesse viva. Mas não coube, era impossível porque a ausência dela é muito presente no livro inteiro. A ausência dela é muito determinante na história toda.
Há mesmo quem diga que ela é a personagem principal deste romance.
A história toda gira em torno dela. É a obsessão do velho. Ele dá voltas e voltas e cai nela, volta para ela. E é feito de quase nada porque é muito breve a existência dela. A convivência dela com ele é breve, seria um ano e meio, e ela é feita de quase nada porque é feita das lembranças dele. E as lembranças dele não são confiáveis. Quando se trata da mulher dele, ele volta, repete sempre as mesmas coisas, mas sempre de uma forma diferente. O ciúme que ele sentia dela aparece várias vezes no livro contado de formas distintas. O desaparecimento dela é narrado de várias formas diferentes, há várias versões que ele passa geralmente para a filha.
A sua editora brasileira, Maria Emília Bender, contou que durante muito tempo o Chico não lhe enviou nada deste romance. Mas que, a meio da escrita, lhe disse qual era o título.
Eu não consegui mandar o livro antes de ficar pronto.
Acontece-lhe sempre isso?
O primeiro livro, “Estorvo”, escrevi por estímulo, quase provocação de Rubem Fonseca e de Luiz Schwarcz, o meu editor [da Companhia das Letras]. Comecei a escrever, tinha dez páginas, não tinha ideia da minha capacidade de escrever um romance. Então, submeti o início do livro ao editor. Que me disse: “Vai em frente”. Mostrei ao Rubem Fonseca uma coisa ou outra durante a escrita. Quando terminei “Estorvo”, mandei para o Rubem Fonseca que fez algumas observações. Umas eu aceitei, outras não. Houve essa partilha. Já depois, não. Os livros entrego prontos. Existe um certo pudor.
Voltando ao título, “Leite Derramado”.
Durante a escrita isso começou a atormentar-me um pouquinho. Apareceu a cena do leite derramado na pia, eu acho curioso isso de usar uma expressão batida - leite derramado, chorar sobre leite derramado -, mas o leite derramado, literalmente, está ali na pia. Quando escrevi aquela cena - eu falo cena como se fosse um filme - achei interessante utilizar esse título. Eu gostava e não gostava. É um título que parece um cliché, um pouco vulgar. Até hoje penso um pouquinho: “Parece título de livro ruim!” [risos]. Depois pensei: “Mas Chico também é um nome de escritor ruim” [mais risos].
Ninguém lhe chama Francisco?
Ninguém me chama Francisco. Quando foi publicado “Budapeste” em Espanha, o meu editor espanhol sugeriu que se usasse o meu nome Francisco. Lá, além de mais, Chico tem sentido de pequeno. Ninguém pode levar a sério um sujeito chamado Chico [risos]. Mas eu acho um pouquinho afectado usar o outro nome para o escritor. Como se eu considerasse o escritor um sujeito mais sério que o compositor de músicas. Isso faço questão de não pensar, essa ideia bastante disseminada de que a literatura está acima, num patamar superior à música popular. Isso no Brasil acho que não faz nenhum sentido.
Cenas à volta do que é dar de mamar são recorrentes no livro. É engraçado ser um homem a escrever com tanto pormenor sobre amamentação.
Eu consultava minhas filhas. E quando o livro saiu elas perguntaram qual era o título e quando eu falei “Leite Derramado” elas riram muito. Foi escrito por um homem com três filhas.
"Leite Derramado” está nas listas dos livros mais vendidos no Brasil. Aliás, nos livros de ficção, você é o único autor brasileiro de ficção a estar nos tops.
Eu já reparei que tem uns escritores que estão na minha frente. São todos estrangeiros.
Sendo o Chico Buarque, é privilegiado pela crítica ou é vítima da crítica?
As duas coisas. Não posso me queixar. Tive críticas muito boas mas há uma reacção a essas críticas. O cuidado que procuro tomar... esta é a primeira entrevista que eu estou a dar.
Porque é que não deu outras antes desta que está a dar para sair em Portugal?
Tento não ocupar um espaço que não é legítimo para um escritor. Eu não quero sobrepor-me ao livro. Porque uma entrevista que se faça comigo aqui no Brasil, ela vai abordar música popular, política nacional e em último lugar literatura. Vou ter um espaço que não é o espaço do meu livro. Vou ganhar páginas do jornal que não se devem ao lançamento do livro. Então prefiro que o livro caminhe sozinho, que fale por mim. Mesmo assim o espaço que ele vai ganhar no jornal, eu sei disso, já é maior do que o espaço de um outro escritor.
Como ignorar Chico Buarque, não é? Não se pode ignorar Chico Buarque.
Sim porque há um interesse por parte de um público que não lê livros também. Eu procuro evitar a confusão entre a figura pública e o livro. Como já lhe disse não quero ser o Francisco, o escritor, e o Chico, o compositor. Mas para mim são dois trabalhos bastantes diferentes.
As pessoas olham para si como um artista perfeito. Como se a avaliação que fazem de si nunca fosse...
... isenta. E para cada um que me julga um artista perfeito, há dois que me odeiam com a mesma intensidade. É normal isso, é natural.
Como é que lida com esta ideia de no Brasil ser uma espécie de herói? Alguém que até se admite que pode ter falhas, que se desculpa, mas que é visto como um herói de qualquer maneira?
Não estou interessado na imagem do artista, interesso-me pelo meu trabalho. O resto não me diz respeito. Se estou a caminhar na praia e vem um fotógrafo tira fotografias e depois diz que eu estou barrigudo, que eu estou bem, que eu estou jovem, que estou velho. É claro que se me dizem ‘saiu uma foto sua horrorosa’, é chato, que pena. ‘Saiu uma foto sua bonita’, óptimo, que bom, me faz bem. Mas parou aí. Eu só me interesso pelo meu trabalho. O que eu gosto mesmo é de trabalhar. Passei um ano e meio escrevendo esse livro. Só fazia isso. Claro que eu saía para jogar futebol, para passear, porque não posso passar o dia trancado. Mas a minha cabeça estava nisso. O que eu queria escrever era esse livro, agora acabou o livro, eu me desligo. Eu termino o livro, como qualquer canção, eu termino e digo eu dei o melhor de mim, fiz o melhor que pude, isso está muito bom, está óptimo, irretocável, fecho.
E consegue mesmo fazer isso?
As primeiras reacções, do meu editor, mexem muito comigo. Passei um ano e meio no trabalho e estou muito sensível. Quando o livro está na livraria, já me desliguei. Não é que não goste mais do livro, eu me desinteressei. Existe quase uma repulsa. Não quero saber. É uma defesa do criador porque se ele achar que já fez tudo, fez o melhor que podia fazer, não faz mais nada. Então me despojo do livro como de qualquer canção. Vou fazer outra melhor. Quando quiser escrever outro livro não vou ler o que se falou bem ou mal do anterior. Tenho que estar livre do que se fala de mim. Se ficar pensando nisso, fico maluco. Eu não fico procurando, não vou na Internet saber o que se fala. Não é falta de vaidade. Vaidosos todos somos, acho óptimo que haja a Festa Literária de Paraty para os escritores levarem a vaidade a passear. Porque a vaidade de escritor é fechada dentro do quarto [risos]. Agora no meu caso, não. A minha vaidade já está bastante rodada.
No tempo da ditadura você teve um pseudónimo, o Julinho da Adelaide, para conseguir ultrapassar a censura. Nunca pensou escrever os livros sob pseudónimo, para ninguém saber que eram de Chico Buarque?
Pensei. No “Estorvo” cheguei a pensar. Falo um pouco sobre isso no “Budapeste”. Seria insuportável depois permanecer anónimo. Haveria algum momento em que eu teria que dizer: ‘Sou eu! Sou eu!’ [gargalhadas]. Eu me trairia, entende? É uma coisa muito difícil de carregar. Seria doentio. Mas pensei. Cogitei.
Para se libertar deste velho foi difícil e até partiu uma perna. Lembrou-se de Guimarães Rosa e de “A Fazedora de Velas”. Conte-nos essa história.
No livro “Tutaméia (Terceiras estórias)”, João Guimarães Rosa afirma que por formação não acredita muito em fenómenos paranormais. Porém cita vários exemplos de contos que foram sonhados, quase que soprados. Conta também que a meio da escrita do romance “A Fazedora de Velas” foi tomado pela tristeza daquele livro e guardou-o numa gaveta. Mas essa personagem ficou rondando na sua cabeça e meses depois Guimarães Rosa ficou doente com uma doença que imitava, ponto por ponto, a do narrador do seu livro. Lembrei disso antes de escrever “Leite Derramado”. Achei que não deveria tomar esse velho como narrador, um velho de 100 anos. Pensei: “Me vai fazer mal”. Isso me perseguiu o tempo todo. Escrever é sofrido. Quando alguma coisa me sai com facilidade, eu desconfio. Eu escrevo pelo prazer de ler; quando se passa do pensamento para o papel, alguma coisa sempre se perde. Durante alguns momentos de crise na escrita, eu disse: “Maldita a hora em que eu fui escolher escrever sobre este velho!” E aí me lembrava da história de Guimarães Rosa e dizia: “Este velho vai-me envelhecer. Este velho vai-me fazer mal. Eu vou sair desse livro mais velho do que sou!” E o que aconteceu até foi pequeno. Não quebrei o fémur, mas quebrei a fíbula, antigo perónio, mudou de nome.
Por falar em mudar de nome, teve a preocupação de entregar o livro à sua editora já seguindo as regras do novo acordo ortográfico, não foi?
Na hora de entregar comunicaram-me que sairia na nova ortografia. A minha primeira reacção foi de renegar. Ideia e geleia sem acento? Mas depois eu mesmo fiz as correcções. Era fácil. Eu fiz e procurei me acostumar. Ainda não entendi até agora qual foi a utilidade dessa reforma ortográfica. Mas a gente se acostuma, como a tudo.