Uma questão de fé

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Há nestes corpos uma dimensão sexual explícita: foi-lhes pedido que “tivessem desejo pela vida”

"E o verbo fez-se carne", grita, de um interior profundo, o bailarino Romeu Runa, logo no início do espectáculo. Reconhecemos naquela fileira de intérpretes o mesmo dispositivo que víramos em "Wolf"(2003), mas "pitié!", garante-nos Alain Platel ao telefone, não é sobre uma geração em particular, nem é um manifesto sobre religião, temas que, atendendo ao contexto em que vivemos, poderiam impedir a peça de alcançar territórios hoje mais caros ao coreógrafo belga.

"pitié!" adapta a "Paixão Segundo São Mateus", de Bach, seguindo a linha de "vsprs" (2006) que também trabalhava uma partitura já existente, com cantores de ópera, bailarinos e orquestra ao vivo. Mas desta vez o coreógrafo está mais interessado "na ambiguidade da peça". "O que me tocou foi a história", diz-nos, antes de nos revelar que "são poucas as oportunidades para trabalhar temas tão densos e ambíguos como a compaixão, a piedade e a moralidade". "São pirosos", ri-se...

Quando começou a ensaiar, pediu aos intérpretes que improvisassem a partir desses conceitos. Houve quem lhe dissesse que eram irrepresentáveis. E Platel fez disso a força da peça que já se apresentou mais de 180 vezes, datas marcadas a maior parte delas antes da estreia oficial na Primavera de 2008. Chega a Portugal agora: hoje e amanhã está no CCB, em Lisboa, terça e quarta vai ao Teatro Nacional S. João, no Porto, a pretexto do Dancem!09.

"Um coreógrafo cria peças para as pessoas que vivem aqui e agora, num contexto contemporâneo", diz-nos. Não se incomoda que lhe perguntemos se é católico. Não é. Mas para trabalhar a partir da "Paixão Segundo São Mateus" "não é necessário sê-lo". No Japão, onde a peça foi apresentada, não foi sobre catolicismo que se falou. "Os japoneses não são de mostrar as emoções em público e, no entanto, a evidente emoção deles vinha de uma outra capacidade de identificação". A Paixão, resume, é "uma extraordinária obra sobre factos horríveis. E isso toca a todos".

Há muito, continua, que deixou de fazer sentido construir peças que insistissem sobre uma leitura contemporânea dos acontecimentos mundiais ou que fizessem comentários à realidade. "Nunca me preocupei com isso, mas sempre quis que as minhas peças se relacionassem com a realidade. Agora já não". E a distância que vai entre esta afirmação e a vontade de continuar a trabalhar para as pessoas que "vivem aqui e agora" encontra fundamento na própria religião, definida por ele próprio como "uma procura das razões por que se está aqui". Cita Fellini: "Sou um ateu profundo. Acho que Deus é... uma belíssima história". "pitié!" é uma belíssima história.

Celebração da vida

Desde a imagem inicial aos solos que os vários intérpretes vão fazendo, Platel vai abrindo espaço para questionarmos o que significam esses valores, compaixão, piedade, moralidade. "Os cantores carregam a tristeza, são eles que carregam a história. Os bailarinos têm o seu percurso. E os músicos outro". A forma como tudo isto se orquestra, nunca parecendo que estamos a assistir a linhas diferentes, é o que identifica "pitié!" como uma das obras mais bem sucedidas da carreira do coreógrafo belga.

É uma peça de uma crueza rara em Platel, autor cuja obra tem estado mais habituada à metaforização, à exploração do efeito plástico do movimento. O esgotamento evidente nos intérpretes ao fim de duas horas de espectáculo também o sentimos enquanto espectadores. "Gosto de mostrar cansaço, porque mostra como não é possível controlar tudo".
Aos intérpretes foi-lhes pedido que "tivessem desejo pela vida". E é por isso que há quem tenha lido nestes corpos uma dimensão sexual explícita. Jean-Marc Adolphe, director da revista francesa de artes performativas "Mouvement", chegou a escrever que "existe sexo nas vozes. É essa 'encarnação', se assim lhe podemos chamar, que dá o tom de toda a linha emocional, e dramatúrgica, que guia a coreografia de Alain Platel". A peça, continua, "poderia também ter-se intitulado, simplesmente, 'Love!'. Pois, no fundo, é apenas disso que se trata, das múltiplas vozes do amor, quer se trate de fraternidade, quer, mais trivialmente, de animalidade 'coital'".

Sentimos, naquele grito inicial e nos solos dos intérpretes, uma ambição de exploração do indivíduo e da sua capacidade de reacção aos impulsos. "pitié!" constrói-se a partir da tradução coreográfica de valores que não podem ser reduzidos à sua dimensão religiosa: a moralidade, a compaixão e a piedade ocupam o centro dramatúrgico de uma peça que explora, sem cedências, um desejo de transcendência material.

A nova criação de Platel aproveita o caminho aberto pela exposição da violência de "Nine Finger" (peça co-assinada pelo perfomer Benjamin Verdonk e pela bailarina Fumiyo Ikeda), mas o que essa obra tinha de urgente, "pitié!" tem de apaziguado. Aqui a dor é-nos passada, como catarse, por uma série de corpos, indistintamente da sua origem. E é essa transversalidade dorida que faz da peça uma manifestação celebratória em vez de lamento. A dor aqui está consumada e a morte de Cristo confronta os homens com a possibilidade de se evadirem de si mesmos.

Multiculturalidade

Para esse desejo de evasão muito contribui a multiculturalidade do elenco - e as várias ideias que os "performers" tinham sobre religião e as diferentes religiões a que pertenciam -, bem como a partitura. Fabrizio Cassol criou "um contexto musical onde pudesse surgir a música de Bach, tal como a palavra de Cristo num contexto onde esta não fosse estrangeira ou parecesse 'nova'", explica-se no programa. Platel sublinha que a peça deve ser vivida como "experiência". "Uma experiência ambiciosa", reconhece. Enche o palco de intérpretes que se metamorfoseiam permanentemente. Nunca abandonando a cena, vemo-los num crescendo emocional que levará ao esgotamento. Da mesma forma, cantores e músicos percorrem uma paleta emocional diversa, até se encontrarem para um final que é tudo menos apoteótico.

A força de "pitié!" reside, por isso e sobretudo, numa gestão discreta das emoções, seja através da explosão coreográfica que parece invadir o corpo dos intérpretes - entregues a uma visceralidade animal -, seja na limpeza cenográfica que percorre o palco. Este constante duelo (ou dueto) entre o excesso e o vazio, entre o abraço e o abandono, são, para Platel, "um percurso de aprendizagem sobre a relativização".

Ao longo dos anos Platel diz que percebeu que não era suficiente o virtuosismo dos intérpretes. E, sobretudo, que não era fundamental uma sobreposição de intenções. Agora - "que estou mais velho" - não se esquece "de viver". E, assim, "pitié!" é, também e estranhamente, uma peça sobre a vida. "Sobre os que cá ficam. E sobre os que querem partir".
Esse apaziguamento dá a "pitié!" um outro tipo de crueza, mais interior, individual e íntima. O corpo tem, por isso, papel fundamental. "Muitas das tarefas que pedi aos intérpretes eram puramente físicas. Como usar a pele, como tocar na pele, na sua ou na do outro". O que daí surgiu não é tanto uma coreografia onde o movimento tem um papel determinista na acção, mas uma coreografia onde o corpo, enquanto entidade material e espiritual, é explorado pela sua capacidade de memorizar acções e acontecimentos.

Festa pagã

Os corpos desenhados por Platel, onde se incluem os dos cantores, existem numa dimensão híbrida, dir-se-iam até presos a um limbo identitário. É o equivalente à música interpretada ao vivo por Fabrizio Cassol que, ao aprofundar a construção emocionalmente rígida da partitura de Bach, a reveste de sonoridades pagãs, muitas delas vindas de África. Usando instrumentos que parecem brincar com a música, dá-lhe um tom de festa pagã e traduz para um mundo global a universalidade de Bach. São os instrumentos que usa, em diálogo com os corpos multiculturais dos intérpretes, que fundamentam esse desejo de olhar para lá da religião e de querer dar a ver uma história sobre um homem que morreu e aqueles que aqui ficaram a chorar a sua morte.

A leitura que Platel e Cassol sugerem da "Paixão Segundo São Mateus" é, por isso, simultaneamente profana e devota. É pobre visualmente: nos seus figurinos mal tratados e nos seus adereços de improviso. Mas é determinada na redução ao essencial: dos movimentos - gritados, agrestes, impulsivos quando a solo; de uma depuração estilística quando em grupo; de uma complementaridade quando passados dos bailarinos para os cantores - e das palavras que expressam os valores de compaixão, piedade, misericórdia. Mas é no modo como são lidos esses valores que a obra ganha em dimensão contemporânea: Platel deixou "que os intérpretes encontrassem 'a sua verdade'", cada movimento parece adequado àquele corpo. Há uma afirmação da singularidade dos discursos.

Cada movimento interpretado até à exaustão e cada ária cantada como um lamento ampliam a noção de fim em "pitié!". Quando a peça acaba, depois de várias ameaças - e sobretudo depois de várias desistências dos espectadores -, a imagem que nos fica não é nem de celebração, nem de contentamento - antes pelo contrário. Abandonados que ficámos no nosso julgamento, demoramos a sair desse entorpecimento e a reconhecer a nossa responsabilidade na gestão atenta do que nos foi sendo dado.
Platel, porque assiste a todas as apresentações, está interessado nas pessoas que se têm ido embora durante o espectáculo. Porque é que se vão embora ele não sabe. Mas crê que isso tem a ver com a adoração da dor. Quer saber o que as faz desistir. E trabalha, a cada nova apresentação, esses momentos de corte com o espectador. "As pessoas acreditam nestes valores sem lhes darem uma forma. E por isso não conseguem lidar com o que lhes é mostrado em palco". Razão pela qual, e ao contrário de outras peças, não se preocupa em dizer-nos o que devemos retirar. Quer, antes, saber o que nos tocou e, com isso, "evoluir". Já não lhe chega nem a virtuosismo dos intérpretes, nem a dimensão simbólica das imagens, nem a ficcionalização da história. Hoje o que Platel nos pergunta é: para que serve o sofrimento? "Para intensificar a misericórdia, a compaixão".
Paulo Ribeiro, comissário do ciclo Dancem!09, utiliza uma expressão feliz para descrever alguns dos espectáculos que, percorrendo um circuito internacional institucionalizado, dão conta de um estado de espírito da criação contemporânea. O também coreógrafo chama-lhe "mainstream qualificado". E se é verdade que nos habituámos a ver o nome de Platel nesse circuito, muitas vezes perguntando-nos se era o homem que alimentava a máquina ou o contrário, a verdade é que o percurso do belga tem sido marcado por um inconformismo e uma maturação que deixa bastante longe da meta outros nomes que se lhe seguiram, como Sidi Larbi Cherkaoui ou o colectivo Peeping Tom (que abriu o ciclo no Teatro Nacional S. João).
Platel, ao contrário de Jan Lauwers ou Wim Vandekeybus, da mesma geração, caminhou para uma depuração não só estilística como dramatúrgica. Confessa-nos que, ao longo dos anos, se apercebeu que "caiu num sectarismo temático" e que, agora, ambiciona a "comunhão". Alain Platel, coreógrafo fundamental para a história da dança contemporânea europeia, encontra em "pitié!" uma possibilidade de ascensão. Resta-nos agora chorar a morte do cínico e abraçar a chegada do homem que, nas suas próprias palavras, "aprendeu a viver".

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"E o verbo fez-se carne", grita, de um interior profundo, o bailarino Romeu Runa, logo no início do espectáculo. Reconhecemos naquela fileira de intérpretes o mesmo dispositivo que víramos em "Wolf"(2003), mas "pitié!", garante-nos Alain Platel ao telefone, não é sobre uma geração em particular, nem é um manifesto sobre religião, temas que, atendendo ao contexto em que vivemos, poderiam impedir a peça de alcançar territórios hoje mais caros ao coreógrafo belga.

"pitié!" adapta a "Paixão Segundo São Mateus", de Bach, seguindo a linha de "vsprs" (2006) que também trabalhava uma partitura já existente, com cantores de ópera, bailarinos e orquestra ao vivo. Mas desta vez o coreógrafo está mais interessado "na ambiguidade da peça". "O que me tocou foi a história", diz-nos, antes de nos revelar que "são poucas as oportunidades para trabalhar temas tão densos e ambíguos como a compaixão, a piedade e a moralidade". "São pirosos", ri-se...

Quando começou a ensaiar, pediu aos intérpretes que improvisassem a partir desses conceitos. Houve quem lhe dissesse que eram irrepresentáveis. E Platel fez disso a força da peça que já se apresentou mais de 180 vezes, datas marcadas a maior parte delas antes da estreia oficial na Primavera de 2008. Chega a Portugal agora: hoje e amanhã está no CCB, em Lisboa, terça e quarta vai ao Teatro Nacional S. João, no Porto, a pretexto do Dancem!09.

"Um coreógrafo cria peças para as pessoas que vivem aqui e agora, num contexto contemporâneo", diz-nos. Não se incomoda que lhe perguntemos se é católico. Não é. Mas para trabalhar a partir da "Paixão Segundo São Mateus" "não é necessário sê-lo". No Japão, onde a peça foi apresentada, não foi sobre catolicismo que se falou. "Os japoneses não são de mostrar as emoções em público e, no entanto, a evidente emoção deles vinha de uma outra capacidade de identificação". A Paixão, resume, é "uma extraordinária obra sobre factos horríveis. E isso toca a todos".

Há muito, continua, que deixou de fazer sentido construir peças que insistissem sobre uma leitura contemporânea dos acontecimentos mundiais ou que fizessem comentários à realidade. "Nunca me preocupei com isso, mas sempre quis que as minhas peças se relacionassem com a realidade. Agora já não". E a distância que vai entre esta afirmação e a vontade de continuar a trabalhar para as pessoas que "vivem aqui e agora" encontra fundamento na própria religião, definida por ele próprio como "uma procura das razões por que se está aqui". Cita Fellini: "Sou um ateu profundo. Acho que Deus é... uma belíssima história". "pitié!" é uma belíssima história.

Celebração da vida

Desde a imagem inicial aos solos que os vários intérpretes vão fazendo, Platel vai abrindo espaço para questionarmos o que significam esses valores, compaixão, piedade, moralidade. "Os cantores carregam a tristeza, são eles que carregam a história. Os bailarinos têm o seu percurso. E os músicos outro". A forma como tudo isto se orquestra, nunca parecendo que estamos a assistir a linhas diferentes, é o que identifica "pitié!" como uma das obras mais bem sucedidas da carreira do coreógrafo belga.

É uma peça de uma crueza rara em Platel, autor cuja obra tem estado mais habituada à metaforização, à exploração do efeito plástico do movimento. O esgotamento evidente nos intérpretes ao fim de duas horas de espectáculo também o sentimos enquanto espectadores. "Gosto de mostrar cansaço, porque mostra como não é possível controlar tudo".
Aos intérpretes foi-lhes pedido que "tivessem desejo pela vida". E é por isso que há quem tenha lido nestes corpos uma dimensão sexual explícita. Jean-Marc Adolphe, director da revista francesa de artes performativas "Mouvement", chegou a escrever que "existe sexo nas vozes. É essa 'encarnação', se assim lhe podemos chamar, que dá o tom de toda a linha emocional, e dramatúrgica, que guia a coreografia de Alain Platel". A peça, continua, "poderia também ter-se intitulado, simplesmente, 'Love!'. Pois, no fundo, é apenas disso que se trata, das múltiplas vozes do amor, quer se trate de fraternidade, quer, mais trivialmente, de animalidade 'coital'".

Sentimos, naquele grito inicial e nos solos dos intérpretes, uma ambição de exploração do indivíduo e da sua capacidade de reacção aos impulsos. "pitié!" constrói-se a partir da tradução coreográfica de valores que não podem ser reduzidos à sua dimensão religiosa: a moralidade, a compaixão e a piedade ocupam o centro dramatúrgico de uma peça que explora, sem cedências, um desejo de transcendência material.

A nova criação de Platel aproveita o caminho aberto pela exposição da violência de "Nine Finger" (peça co-assinada pelo perfomer Benjamin Verdonk e pela bailarina Fumiyo Ikeda), mas o que essa obra tinha de urgente, "pitié!" tem de apaziguado. Aqui a dor é-nos passada, como catarse, por uma série de corpos, indistintamente da sua origem. E é essa transversalidade dorida que faz da peça uma manifestação celebratória em vez de lamento. A dor aqui está consumada e a morte de Cristo confronta os homens com a possibilidade de se evadirem de si mesmos.

Multiculturalidade

Para esse desejo de evasão muito contribui a multiculturalidade do elenco - e as várias ideias que os "performers" tinham sobre religião e as diferentes religiões a que pertenciam -, bem como a partitura. Fabrizio Cassol criou "um contexto musical onde pudesse surgir a música de Bach, tal como a palavra de Cristo num contexto onde esta não fosse estrangeira ou parecesse 'nova'", explica-se no programa. Platel sublinha que a peça deve ser vivida como "experiência". "Uma experiência ambiciosa", reconhece. Enche o palco de intérpretes que se metamorfoseiam permanentemente. Nunca abandonando a cena, vemo-los num crescendo emocional que levará ao esgotamento. Da mesma forma, cantores e músicos percorrem uma paleta emocional diversa, até se encontrarem para um final que é tudo menos apoteótico.

A força de "pitié!" reside, por isso e sobretudo, numa gestão discreta das emoções, seja através da explosão coreográfica que parece invadir o corpo dos intérpretes - entregues a uma visceralidade animal -, seja na limpeza cenográfica que percorre o palco. Este constante duelo (ou dueto) entre o excesso e o vazio, entre o abraço e o abandono, são, para Platel, "um percurso de aprendizagem sobre a relativização".

Ao longo dos anos Platel diz que percebeu que não era suficiente o virtuosismo dos intérpretes. E, sobretudo, que não era fundamental uma sobreposição de intenções. Agora - "que estou mais velho" - não se esquece "de viver". E, assim, "pitié!" é, também e estranhamente, uma peça sobre a vida. "Sobre os que cá ficam. E sobre os que querem partir".
Esse apaziguamento dá a "pitié!" um outro tipo de crueza, mais interior, individual e íntima. O corpo tem, por isso, papel fundamental. "Muitas das tarefas que pedi aos intérpretes eram puramente físicas. Como usar a pele, como tocar na pele, na sua ou na do outro". O que daí surgiu não é tanto uma coreografia onde o movimento tem um papel determinista na acção, mas uma coreografia onde o corpo, enquanto entidade material e espiritual, é explorado pela sua capacidade de memorizar acções e acontecimentos.

Festa pagã

Os corpos desenhados por Platel, onde se incluem os dos cantores, existem numa dimensão híbrida, dir-se-iam até presos a um limbo identitário. É o equivalente à música interpretada ao vivo por Fabrizio Cassol que, ao aprofundar a construção emocionalmente rígida da partitura de Bach, a reveste de sonoridades pagãs, muitas delas vindas de África. Usando instrumentos que parecem brincar com a música, dá-lhe um tom de festa pagã e traduz para um mundo global a universalidade de Bach. São os instrumentos que usa, em diálogo com os corpos multiculturais dos intérpretes, que fundamentam esse desejo de olhar para lá da religião e de querer dar a ver uma história sobre um homem que morreu e aqueles que aqui ficaram a chorar a sua morte.

A leitura que Platel e Cassol sugerem da "Paixão Segundo São Mateus" é, por isso, simultaneamente profana e devota. É pobre visualmente: nos seus figurinos mal tratados e nos seus adereços de improviso. Mas é determinada na redução ao essencial: dos movimentos - gritados, agrestes, impulsivos quando a solo; de uma depuração estilística quando em grupo; de uma complementaridade quando passados dos bailarinos para os cantores - e das palavras que expressam os valores de compaixão, piedade, misericórdia. Mas é no modo como são lidos esses valores que a obra ganha em dimensão contemporânea: Platel deixou "que os intérpretes encontrassem 'a sua verdade'", cada movimento parece adequado àquele corpo. Há uma afirmação da singularidade dos discursos.

Cada movimento interpretado até à exaustão e cada ária cantada como um lamento ampliam a noção de fim em "pitié!". Quando a peça acaba, depois de várias ameaças - e sobretudo depois de várias desistências dos espectadores -, a imagem que nos fica não é nem de celebração, nem de contentamento - antes pelo contrário. Abandonados que ficámos no nosso julgamento, demoramos a sair desse entorpecimento e a reconhecer a nossa responsabilidade na gestão atenta do que nos foi sendo dado.
Platel, porque assiste a todas as apresentações, está interessado nas pessoas que se têm ido embora durante o espectáculo. Porque é que se vão embora ele não sabe. Mas crê que isso tem a ver com a adoração da dor. Quer saber o que as faz desistir. E trabalha, a cada nova apresentação, esses momentos de corte com o espectador. "As pessoas acreditam nestes valores sem lhes darem uma forma. E por isso não conseguem lidar com o que lhes é mostrado em palco". Razão pela qual, e ao contrário de outras peças, não se preocupa em dizer-nos o que devemos retirar. Quer, antes, saber o que nos tocou e, com isso, "evoluir". Já não lhe chega nem a virtuosismo dos intérpretes, nem a dimensão simbólica das imagens, nem a ficcionalização da história. Hoje o que Platel nos pergunta é: para que serve o sofrimento? "Para intensificar a misericórdia, a compaixão".
Paulo Ribeiro, comissário do ciclo Dancem!09, utiliza uma expressão feliz para descrever alguns dos espectáculos que, percorrendo um circuito internacional institucionalizado, dão conta de um estado de espírito da criação contemporânea. O também coreógrafo chama-lhe "mainstream qualificado". E se é verdade que nos habituámos a ver o nome de Platel nesse circuito, muitas vezes perguntando-nos se era o homem que alimentava a máquina ou o contrário, a verdade é que o percurso do belga tem sido marcado por um inconformismo e uma maturação que deixa bastante longe da meta outros nomes que se lhe seguiram, como Sidi Larbi Cherkaoui ou o colectivo Peeping Tom (que abriu o ciclo no Teatro Nacional S. João).
Platel, ao contrário de Jan Lauwers ou Wim Vandekeybus, da mesma geração, caminhou para uma depuração não só estilística como dramatúrgica. Confessa-nos que, ao longo dos anos, se apercebeu que "caiu num sectarismo temático" e que, agora, ambiciona a "comunhão". Alain Platel, coreógrafo fundamental para a história da dança contemporânea europeia, encontra em "pitié!" uma possibilidade de ascensão. Resta-nos agora chorar a morte do cínico e abraçar a chegada do homem que, nas suas próprias palavras, "aprendeu a viver".