Konono traz sujeira aos 15 anos da ZDB
É uma adolescente em idade de descobrir o pecado, a Galeria Zé dos Bois. Amanhã faz quinze anos e comemora-os ao ar livre, junto ao Museu Nacional de História Natural, ao lado Jardim Botânico, com uma trupe não negligenciável de músicos que, garantidamente, nunca entrarão num top: Pocahaunted e Sun Araw em estreia europeia, o melhor dos músicos guineenses a viver em Lisboa (Kimi Djabaté, Galissá, Maio Coope e a esperança N'Dara Sumano) e, directamente dos confins do Congo, os magníficos Konono Nº1.
Dos guineenses pode-se esperar muita harpa (a kora) e muita dança, dos Sun Araw música espacial, dos Pocahaunted muita guitarra a bradar. Mas os reis da festa são os Konono, trupe do Congo que até há quatro anos ninguém conhecia. De certa forma personificam um ideal que a ZDB procura alcançar. A sua música é suja e baseada no ritmo, e levam o Do It Yourself, que é apanágio da ZDB, a limites desconhecidos dos ocidentais: tocam likembés, um cordofone, espécie de piano que se toca com os polegares a percutir lamelas de metal, com microfones feitos com partes de carros. Há três tipos de likembés na banda: uns fazem linhas de baixo, os médios e os de "treble" criam melodias e harmonias. Ao vivo são um comboio de suor. A sua música está longe de ser domesticada, é simultaneamente apelativa aos públicos do rock, da electrónica e das vanguardas, mesmo que apenas por acaso.
A saga
A história dos Konono, que também actuam no Festival do Almonda, em Torres Novas, é tão boa quanto a música. Ao telefone de Bruxelas, onde a editora dos Konono, a Crammed, está sediada, Michel Winter (responsável da Crammed) contou ao Ípsilon a saga "Konono". Segundo Winter, o amor pelos Konono é antigo, e membros da editora andavam "à procura deles desde o final dos anos 70". A tarefa de os encontrar foi dificultada pelo facto de até então os Konono nunca terem gravado, tendo a banda sido "dissolvida ou dispersado algures nos anos 70".
Quando encontraram o fundador do grupo, Mingiedi, este estava "em casa sem fazer nada, porque estava desempregado" - não o encontraram em casa, na verdade, mas "numa igreja local que ele frequentava, porque o padre o ajudava com as refeições".
O homem que perseguiu Mingiedi anos a fio foi Vincent Kenis, o produtor da Crammed Records e responsável por discos das Zap Mamma e Taraf de Haïdouks - a este currículo assinale-se uma colaboração com o grande Aksak Maboul. Além de encontrar Mingiedi, Kenis convenceu-o a reunir de novo uma banda (sem os restantes membros, impossíveis de localizar), gravar um disco e depois partir em digressão. Nada disto foi tão fácil quanto parece escrito em papel, devido ao som muito próprio dos Konono, que Kenis não queria domesticar.
Vincent Kenis tinha ouvido os Konono Nº1 pela primeira vez nos anos 70: "Ele estava a conduzir quando ouviu um som estranhíssimo, muito sujo, com um ritmo muito poderoso, num programa de uma rádio francesa", conta Winter. "Descobriu que era uma gravação ao vivo que um etnomusicólogo tinha gravado numa viagem a Kinshasa [capital do Congo]". Vincent, diz Winter, é e já era então "grande especialista de música congolesa, especialmente da rumba congolesa". Já na altura tinha contactos com alguns locais e posteriormente "veio a conhecer todos os músicos da região", graças a "constantes viagens ao Congo, não só em trabalho como também por curiosidade".
"Ele sempre viajou para o Congo à procura de música e à procura de músicos com quem tocar e aprender", explica Winter. Foi a essa gente que Kenis recorreu à procura de localizar esse grupo. Não encontrou nem disco - que não havia - nem músicos. "Perguntou a todos os músicos que conhecia, mas os Konono não eram propriamente estrelas da cena musical. Na realidade, eles nem sequer faziam parte da cena musical. Ninguém sabia deles". Por isso Vincent demorou "muitos anos a encontrar Mingiedi desde que começou a viajar para o Congo".
Bricolage
De acordo com Winter "não há grande diferença entre a música que os Konono fizeram agora" e foi editada pela Crammed "e aquela que Mingiedi fazia antigamente e Kenis ouviu pela primeira vez na rádio". Esta é "música de rituais, de trance Bazombo, que se toca para toda uma comunidade". É música tradicional da etnia Kikongo.
Winter usa um epíteto que não imaginávamos colado aos Konono: "Isto é fundamentalmente 'bricolage'". Por norma usa-se o epíteto "bricolage" para descrever música que cola diferentes géneros, que salta de estilo em estilo. Mas Winter tem uma visão diferente.
"A região do Congo donde Minguedi vem faz fronteira com Angola e os músicos usavam instrumentos tradicionais da zona, que se encontravam na natureza. Mas ele foi para Kinshasa muito novo, nos anos 60. Fazia música em funerais e casamentos, mas como Kinshasa é uma metrópole muito grande, com grande tráfego e muito barulho, a música que ele fazia não se conseguia ouvir - um likémbe de bambu não se conseguia sobrepor ao ruído dos carros".
Mingiedi, conta Winter, não tinha dinheiro. "Nem para amplificadores, nem para microfones e material eléctrico de amplificação sério". Por isso fabricou o seu próprio sistema de som: "substituiu o bambu por lamelas em metal e usou um alternador de automóvel para transformar a energia mecânica dos likembes em energia eléctrica passível de ser usada em amplificadores que ele também reconstruiu".
Mingiedi, diga-se, "conseguiu as peças que precisava no ferro-velho ou através de um sistema de trocas". Depois da dissolução da banda nos anos 70, "foi músico, agricultor, condutor de camiões, passou por todo o tipo de empregos, passou por tudo na vida".
Segundo Winter "os fãs de rock'n'roll e de música electrónica experimental demonstraram muito interesse neles" devido ao som sujo, quase industrial da banda. Mas Mingiedi "não estava contente" com o som que criou por acaso, pois este, mesmo sendo forte e fazendo-se ouvir, "tinha demasiada distorção". "As lamelas têm um som muito particular. O som é um acidente, não é fruto de uma pesquisa nem de uma vontade. Fizeram o som que encontraram com os materiais que tinham à mão".
Quando Kenis o encontrou e lhe propôs gravar um disco, Mingiedi imaginou um som claro. Foi Kenis que o convenceu a gravar "à antiga" (aspas nossas). Três anos e tal depois, ganharam prémios da Radio 3 da BBC, gravaram com Bjork a convite desta e actuaram em festivais de música electrónica como o Sonar, ou de world, como o de Sines. E como uma ida ao Youtube pode comprovar, quanto mais sujos melhor.
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É uma adolescente em idade de descobrir o pecado, a Galeria Zé dos Bois. Amanhã faz quinze anos e comemora-os ao ar livre, junto ao Museu Nacional de História Natural, ao lado Jardim Botânico, com uma trupe não negligenciável de músicos que, garantidamente, nunca entrarão num top: Pocahaunted e Sun Araw em estreia europeia, o melhor dos músicos guineenses a viver em Lisboa (Kimi Djabaté, Galissá, Maio Coope e a esperança N'Dara Sumano) e, directamente dos confins do Congo, os magníficos Konono Nº1.
Dos guineenses pode-se esperar muita harpa (a kora) e muita dança, dos Sun Araw música espacial, dos Pocahaunted muita guitarra a bradar. Mas os reis da festa são os Konono, trupe do Congo que até há quatro anos ninguém conhecia. De certa forma personificam um ideal que a ZDB procura alcançar. A sua música é suja e baseada no ritmo, e levam o Do It Yourself, que é apanágio da ZDB, a limites desconhecidos dos ocidentais: tocam likembés, um cordofone, espécie de piano que se toca com os polegares a percutir lamelas de metal, com microfones feitos com partes de carros. Há três tipos de likembés na banda: uns fazem linhas de baixo, os médios e os de "treble" criam melodias e harmonias. Ao vivo são um comboio de suor. A sua música está longe de ser domesticada, é simultaneamente apelativa aos públicos do rock, da electrónica e das vanguardas, mesmo que apenas por acaso.
A saga
A história dos Konono, que também actuam no Festival do Almonda, em Torres Novas, é tão boa quanto a música. Ao telefone de Bruxelas, onde a editora dos Konono, a Crammed, está sediada, Michel Winter (responsável da Crammed) contou ao Ípsilon a saga "Konono". Segundo Winter, o amor pelos Konono é antigo, e membros da editora andavam "à procura deles desde o final dos anos 70". A tarefa de os encontrar foi dificultada pelo facto de até então os Konono nunca terem gravado, tendo a banda sido "dissolvida ou dispersado algures nos anos 70".
Quando encontraram o fundador do grupo, Mingiedi, este estava "em casa sem fazer nada, porque estava desempregado" - não o encontraram em casa, na verdade, mas "numa igreja local que ele frequentava, porque o padre o ajudava com as refeições".
O homem que perseguiu Mingiedi anos a fio foi Vincent Kenis, o produtor da Crammed Records e responsável por discos das Zap Mamma e Taraf de Haïdouks - a este currículo assinale-se uma colaboração com o grande Aksak Maboul. Além de encontrar Mingiedi, Kenis convenceu-o a reunir de novo uma banda (sem os restantes membros, impossíveis de localizar), gravar um disco e depois partir em digressão. Nada disto foi tão fácil quanto parece escrito em papel, devido ao som muito próprio dos Konono, que Kenis não queria domesticar.
Vincent Kenis tinha ouvido os Konono Nº1 pela primeira vez nos anos 70: "Ele estava a conduzir quando ouviu um som estranhíssimo, muito sujo, com um ritmo muito poderoso, num programa de uma rádio francesa", conta Winter. "Descobriu que era uma gravação ao vivo que um etnomusicólogo tinha gravado numa viagem a Kinshasa [capital do Congo]". Vincent, diz Winter, é e já era então "grande especialista de música congolesa, especialmente da rumba congolesa". Já na altura tinha contactos com alguns locais e posteriormente "veio a conhecer todos os músicos da região", graças a "constantes viagens ao Congo, não só em trabalho como também por curiosidade".
"Ele sempre viajou para o Congo à procura de música e à procura de músicos com quem tocar e aprender", explica Winter. Foi a essa gente que Kenis recorreu à procura de localizar esse grupo. Não encontrou nem disco - que não havia - nem músicos. "Perguntou a todos os músicos que conhecia, mas os Konono não eram propriamente estrelas da cena musical. Na realidade, eles nem sequer faziam parte da cena musical. Ninguém sabia deles". Por isso Vincent demorou "muitos anos a encontrar Mingiedi desde que começou a viajar para o Congo".
Bricolage
De acordo com Winter "não há grande diferença entre a música que os Konono fizeram agora" e foi editada pela Crammed "e aquela que Mingiedi fazia antigamente e Kenis ouviu pela primeira vez na rádio". Esta é "música de rituais, de trance Bazombo, que se toca para toda uma comunidade". É música tradicional da etnia Kikongo.
Winter usa um epíteto que não imaginávamos colado aos Konono: "Isto é fundamentalmente 'bricolage'". Por norma usa-se o epíteto "bricolage" para descrever música que cola diferentes géneros, que salta de estilo em estilo. Mas Winter tem uma visão diferente.
"A região do Congo donde Minguedi vem faz fronteira com Angola e os músicos usavam instrumentos tradicionais da zona, que se encontravam na natureza. Mas ele foi para Kinshasa muito novo, nos anos 60. Fazia música em funerais e casamentos, mas como Kinshasa é uma metrópole muito grande, com grande tráfego e muito barulho, a música que ele fazia não se conseguia ouvir - um likémbe de bambu não se conseguia sobrepor ao ruído dos carros".
Mingiedi, conta Winter, não tinha dinheiro. "Nem para amplificadores, nem para microfones e material eléctrico de amplificação sério". Por isso fabricou o seu próprio sistema de som: "substituiu o bambu por lamelas em metal e usou um alternador de automóvel para transformar a energia mecânica dos likembes em energia eléctrica passível de ser usada em amplificadores que ele também reconstruiu".
Mingiedi, diga-se, "conseguiu as peças que precisava no ferro-velho ou através de um sistema de trocas". Depois da dissolução da banda nos anos 70, "foi músico, agricultor, condutor de camiões, passou por todo o tipo de empregos, passou por tudo na vida".
Segundo Winter "os fãs de rock'n'roll e de música electrónica experimental demonstraram muito interesse neles" devido ao som sujo, quase industrial da banda. Mas Mingiedi "não estava contente" com o som que criou por acaso, pois este, mesmo sendo forte e fazendo-se ouvir, "tinha demasiada distorção". "As lamelas têm um som muito particular. O som é um acidente, não é fruto de uma pesquisa nem de uma vontade. Fizeram o som que encontraram com os materiais que tinham à mão".
Quando Kenis o encontrou e lhe propôs gravar um disco, Mingiedi imaginou um som claro. Foi Kenis que o convenceu a gravar "à antiga" (aspas nossas). Três anos e tal depois, ganharam prémios da Radio 3 da BBC, gravaram com Bjork a convite desta e actuaram em festivais de música electrónica como o Sonar, ou de world, como o de Sines. E como uma ida ao Youtube pode comprovar, quanto mais sujos melhor.