Ela já não dança nas cidades
Luminosidade, harmonia, leveza e prazer eram as "propostas para o próximo milénio" que Pina Bausch e os bailarinos do Tanztheater Wuppertal escreviam em Masurca Fogo, a obra que a 11 de Maio de 1998 estreava no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Nela, ganhavam preponderância sobre os coros e a teatralidade os solos de dança virtuoso e orgânicos, interpretados por bailarinos que se precipitavam da rocha aveludada que constituía o cenário, ou que dançavam fundidos nas imagens do mar. Nela, a relação de incomunicabilidade e de conflitualidade entre os homens e as mulheres, que se tornara num motivo temático e coreográfico-teatral bauschiano, dava também lugar a encontros harmoniosos e serenos, expressos nos pares de dança que ao som de uma morna serpenteavam pelo palco - imagens de felicidade com que o realizador Pedro Almodóvar termina o seu Fala com Ela -, ou que ocupavam os corredores da plateia com o seu lento rodopiar, embalando-nos também a nós, espectadores.
Foi com um espectáculo em que, simultaneamente, as representações do mundo e os elementos coreográficos se transformaram que Bausch respondeu ao convite que lhe foi feito pela Expo-98 para a criação de uma obra original a partir de imagens e movimentos captados por si e pelos seus bailarinos em Lisboa, durante uma residência e um workshop (Lissabon/Wuppertal/Lisboa, de Fernando Lopes, é um poético registo desta estada). A coreógrafa seguia assim um modelo de criação que tinha iniciado em Roma, com Viktor (1986). Projectos semelhantes concretizaram-se na Sicília (Palermo, Palermo, 1989-91), em Madrid (Tanzabend II, 1991), no Brasil (Água, 2001) e em muitos outros lugares.
Philippina Bausch nasceu em 1940 e cresceu em Solingen, em Ruhr, na Alemanha, onde os pais tinham um restaurante - as suas memórias de parte da infância passada neste lugar são evocadas em Café Müller (1978), uma obra-prima em que os corpos, cegos, abandonados e trôpegos, são a pungente expressão da solidão. Estudou dança com o importante coreógrafo Kurt Jooss, partindo mais tarde para Nova Iorque para estudar com pioneiros da modern dance, como José Limón e Paul Taylor. No regresso, ingressa no Folkwang Tanz Studio, grupo que viria a dirigir, em 1969, e para o qual cria as primeiras coreografias.
Em 1973, foi convidada a dirigir o Ballet de Wuppertal, tornando-se, sob a sua direcção, uma companhia autónoma e de autor, o Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. Com ela apresenta novas versões de O Castelo do Barba Azul (1977), de Orfeu e Eurídice (1975), e a extraordinária A Sagração da Primavera (1975). A originalidade do trabalho de Bausch, que resultava, ao nível coreográfico, de uma articulação singular das linguagens da dança de expressão alemã e das técnicas da dança moderna americana, e, ao nível temático, da expressão da conflitualidade entre homens e mulheres, da solidão, do medo, do desespero, e do seu envolvimento crítico com formas de exibicionismo e de mercantilização dos corpos, era bem evidente nestas obras. Em 1976, cria Os Sete Pecados Mortais, com música de Kurt Weill e texto de Bertolt Brecht. Esta é uma obra paradigmática das novas visões do mundo que Bausch trouxe para o palco da dança, mas também da nova linguagem da coreógrafa, pois aqui os bailarinos dançam, cantam e falam.
Bausch inventou um reportório coreográfico de movimentos e gestos, ampliados pela utilização da voz, aptos a traduzir para o palco constelações de experiências humanas. A partir de 1976, abandonou também a composição coreográfica tradicional e construiu as suas peças acumulando sequências descontínuas, segundo um procedimento próximo do da montagem cinematográfica, de que obras como Kontakthof (1978) ou 1980, Uma peça de Pina Bausch são magistrais exemplos.
As inovações de Bausch estenderam-se ao processos de criação (baseado na improvisação), integrando as representações das experiências dos bailarinos nas próprias obras. A coreógrafa construiu, assim, peças ancoradas nas experiências humanas, restituindo aos bailarinos os espaços reais dessas vivências. Montanhas de rosas vermelhas, tapetes de cravos, de relva ou de terra, rochedos, fossos cercados de colinas, uma rua ou uma sala de cinema, um café repleto de cadeiras, muros que se desmoronam são alguns dos exemplos dos cenários construídos por Rolf Borzik e, a partir de 1980, por Peter Pabst.
A bailarina e coreógrafa, que também participou no filme E la nave va (1983), de Fellini, no papel de uma lúcida cega, introduziu, nos finais dos anos 1970, um novo paradigma na história da dança ocidental, aquele que fez de uma renovada relação entre a dança e o teatro um imenso campo de possibilidades de expressão da experiências humanas. Fundamental na condução desta revolução foi a sua motivação artística: "Interesso-me não pela forma como as pessoas se movem, mas por aquilo que as faz mover", como afirmou tantas vezes e materializou, sempre, em cada obra, independentemente das expressões que encontrou para o fazer. Teórica da dança
Nelken (Cravos), uma das peças mais aclamadas de Pina Bausch, foi apresentada no Teatro S. Luiz, em Lisboa, em 2005
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Luminosidade, harmonia, leveza e prazer eram as "propostas para o próximo milénio" que Pina Bausch e os bailarinos do Tanztheater Wuppertal escreviam em Masurca Fogo, a obra que a 11 de Maio de 1998 estreava no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Nela, ganhavam preponderância sobre os coros e a teatralidade os solos de dança virtuoso e orgânicos, interpretados por bailarinos que se precipitavam da rocha aveludada que constituía o cenário, ou que dançavam fundidos nas imagens do mar. Nela, a relação de incomunicabilidade e de conflitualidade entre os homens e as mulheres, que se tornara num motivo temático e coreográfico-teatral bauschiano, dava também lugar a encontros harmoniosos e serenos, expressos nos pares de dança que ao som de uma morna serpenteavam pelo palco - imagens de felicidade com que o realizador Pedro Almodóvar termina o seu Fala com Ela -, ou que ocupavam os corredores da plateia com o seu lento rodopiar, embalando-nos também a nós, espectadores.
Foi com um espectáculo em que, simultaneamente, as representações do mundo e os elementos coreográficos se transformaram que Bausch respondeu ao convite que lhe foi feito pela Expo-98 para a criação de uma obra original a partir de imagens e movimentos captados por si e pelos seus bailarinos em Lisboa, durante uma residência e um workshop (Lissabon/Wuppertal/Lisboa, de Fernando Lopes, é um poético registo desta estada). A coreógrafa seguia assim um modelo de criação que tinha iniciado em Roma, com Viktor (1986). Projectos semelhantes concretizaram-se na Sicília (Palermo, Palermo, 1989-91), em Madrid (Tanzabend II, 1991), no Brasil (Água, 2001) e em muitos outros lugares.
Philippina Bausch nasceu em 1940 e cresceu em Solingen, em Ruhr, na Alemanha, onde os pais tinham um restaurante - as suas memórias de parte da infância passada neste lugar são evocadas em Café Müller (1978), uma obra-prima em que os corpos, cegos, abandonados e trôpegos, são a pungente expressão da solidão. Estudou dança com o importante coreógrafo Kurt Jooss, partindo mais tarde para Nova Iorque para estudar com pioneiros da modern dance, como José Limón e Paul Taylor. No regresso, ingressa no Folkwang Tanz Studio, grupo que viria a dirigir, em 1969, e para o qual cria as primeiras coreografias.
Em 1973, foi convidada a dirigir o Ballet de Wuppertal, tornando-se, sob a sua direcção, uma companhia autónoma e de autor, o Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. Com ela apresenta novas versões de O Castelo do Barba Azul (1977), de Orfeu e Eurídice (1975), e a extraordinária A Sagração da Primavera (1975). A originalidade do trabalho de Bausch, que resultava, ao nível coreográfico, de uma articulação singular das linguagens da dança de expressão alemã e das técnicas da dança moderna americana, e, ao nível temático, da expressão da conflitualidade entre homens e mulheres, da solidão, do medo, do desespero, e do seu envolvimento crítico com formas de exibicionismo e de mercantilização dos corpos, era bem evidente nestas obras. Em 1976, cria Os Sete Pecados Mortais, com música de Kurt Weill e texto de Bertolt Brecht. Esta é uma obra paradigmática das novas visões do mundo que Bausch trouxe para o palco da dança, mas também da nova linguagem da coreógrafa, pois aqui os bailarinos dançam, cantam e falam.
Bausch inventou um reportório coreográfico de movimentos e gestos, ampliados pela utilização da voz, aptos a traduzir para o palco constelações de experiências humanas. A partir de 1976, abandonou também a composição coreográfica tradicional e construiu as suas peças acumulando sequências descontínuas, segundo um procedimento próximo do da montagem cinematográfica, de que obras como Kontakthof (1978) ou 1980, Uma peça de Pina Bausch são magistrais exemplos.
As inovações de Bausch estenderam-se ao processos de criação (baseado na improvisação), integrando as representações das experiências dos bailarinos nas próprias obras. A coreógrafa construiu, assim, peças ancoradas nas experiências humanas, restituindo aos bailarinos os espaços reais dessas vivências. Montanhas de rosas vermelhas, tapetes de cravos, de relva ou de terra, rochedos, fossos cercados de colinas, uma rua ou uma sala de cinema, um café repleto de cadeiras, muros que se desmoronam são alguns dos exemplos dos cenários construídos por Rolf Borzik e, a partir de 1980, por Peter Pabst.
A bailarina e coreógrafa, que também participou no filme E la nave va (1983), de Fellini, no papel de uma lúcida cega, introduziu, nos finais dos anos 1970, um novo paradigma na história da dança ocidental, aquele que fez de uma renovada relação entre a dança e o teatro um imenso campo de possibilidades de expressão da experiências humanas. Fundamental na condução desta revolução foi a sua motivação artística: "Interesso-me não pela forma como as pessoas se movem, mas por aquilo que as faz mover", como afirmou tantas vezes e materializou, sempre, em cada obra, independentemente das expressões que encontrou para o fazer. Teórica da dança
Nelken (Cravos), uma das peças mais aclamadas de Pina Bausch, foi apresentada no Teatro S. Luiz, em Lisboa, em 2005