Morreu a coreógrafa Pina Bausch
Filha do proprietário de um restaurante e hospedaria na pequena cidade alemã de Solingen, onde nasceu em 1940, Philippine Bausch, que o mundo conhece como Pina Bausch, começou a ter aulas de ballet ainda em criança. Mas não é certo que, para o que veio a ser o seu percurso artístico, esses anos em que aprendeu a dançar em pontas tenham sido mais relevantes do que as muitas horas diárias que passava, segundo depois contará, a observar os fregueses da pensão paterna. “O que faço não é uma arte nem uma ciência, é a vida”, disse um dia a bailarina e coreógrafa, quando o seu trabalho já era admirado em todo o mundo e ela própria tinha recebido todos os prémios e distinções possíveis, incluindo a Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada, que o Governo português lhe atribuiu em 1994.
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Filha do proprietário de um restaurante e hospedaria na pequena cidade alemã de Solingen, onde nasceu em 1940, Philippine Bausch, que o mundo conhece como Pina Bausch, começou a ter aulas de ballet ainda em criança. Mas não é certo que, para o que veio a ser o seu percurso artístico, esses anos em que aprendeu a dançar em pontas tenham sido mais relevantes do que as muitas horas diárias que passava, segundo depois contará, a observar os fregueses da pensão paterna. “O que faço não é uma arte nem uma ciência, é a vida”, disse um dia a bailarina e coreógrafa, quando o seu trabalho já era admirado em todo o mundo e ela própria tinha recebido todos os prémios e distinções possíveis, incluindo a Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada, que o Governo português lhe atribuiu em 1994.
Aos 15 anos, Bausch vai estudar dança na escola Folkwang, em Essen, fundada pelo coreógrafo Kurt Joos, que irá ser o seu grande mentor. Terminado o curso, segue para os Estados Unidos com uma bolsa que lhe permite prosseguir a sua formação na prestigiada Juilliard School of Music, em Nova Iorque, onde terá como professores, entre muitos outros, José Limón e Antony Tudor.
A pedido de Kurt Joos, regressa à Alemanha em 1962 para dançar como solista no grupo de dança da Folkwang que o coreógrafo acabara de criar. Nos anos seguintes será sobretudo uma bailarina, mas, em 1968, estreia-se como coreógrafa com a peça Fragment, assumindo pouco depois as funções de directora artística e coreógrafa da companhia.
Um momento decisivo da sua carreira chega em 1973, quando é convidada a dirigir a Companhia de Bailado do Teatro de Wuppertal. Foram anos cruciais, mas também difíceis. Pina Bausch chocou o público, a crítica, e até os próprios intérpretes – “muitos abandonaram-na”, lembra o coreógrafo português Paulo Ribeiro –, com peças onde os bailarinos podiam correr pelo palco, falar, gritar, ou repetir até à exaustão o mesmo movimento. Os espectadores deixavam a sala e a crítica vociferava que aquilo não era dança.
Para Paulo Ribeiro, um dos aspectos mais admiráveis da coreógrafa é a sua “determinação”, que a levou a nunca desistir da sua linguagem, mesmo quando esta foi quase unanimemente rejeitada. E essa coragem e integridade acabaram por ser recompensadas. Bausch tornou-se um dos nomes mais respeitados da dança contemporânea, e também uma artista de grande público, que enchia as salas nas muitas cidades do mundo onde apresentou os seus trabalhos.
Pina Bausch fazia muitas digressões, mas nunca abandonou Wuppertal, uma pequena cidade não muito cativante na região mais industrializada da Alemanha. Essa sua vida rotineira, a par da extrema timidez que a caracterizava, leva Paulo Ribeiro a pensar em Fernando Pessoa. Mas, ao contrário do poeta, Bausch ainda viveu o suficiente para ver reconhecida a qualidade do seu trabalho.
Nos coreógrafos da geração de Pina Bausch, Ribeiro não vê ninguém que tenha operado uma ruptura tão forte. No entanto, se os estranhos e incómodos trabalhos de Bausch chocaram um mundo que, nos anos 70, vivia uma época de razoável optimismo, já a sua obra mais recente – produzida num tempo francamente depressivo – mostra uma coreógrafa mais suavizada, autora de peças de grande beleza e dimensão lírica. “E até mais convencionais”, sugere Paulo Ribeiro, notando que Bausch “trabalhou sempre em contraciclo”. Sabia mostrar a violência e o conflito com o mesmo rigor e intensidade com que dava a ver um gesto terno e subtil. Era sempre absoluta, mesmo quando não parecia.
Em Portugal, apresentou-se pela primeira vez em 1989, nos Encontros Acarte, com "Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört" (Ouviu-se um grito vindo dos montes). Regressou em 1994, quando Lisboa foi Capital da Cultura, com "Café Müller", "A Sagração da Primavera", "Kontakthof", "1980" e "Viktor".
Em 1998, na Expo, Mega Ferreira convidou-a a realizar uma residência artística, que acabaria por culminar com a criação de uma peça sobre Lisboa, "Masurca Fogo".
Voltou ainda várias vezes a Portugal: em 2003 trouxe "Água", em 2005 apresentou "Nelken" (Cravos) e "Ten Chi", e em 2007 levou ao Teatro Camões a peça "For the Children of Yesterday and Tomorrow". A atenção que a coreógrafa sempre dispensou ao público português foi retribuída em 2008 com a realização de um Festival Pina Bausch, co-organizado pelo Centro Cultural de Belém e pelo Teatro S. Luiz, que deu a ver "Nefés" e permitiu rever – se o verbo pode aplicar-se aos work in progress de Bausch – "Masurca Fogo" e "Café Müller".
Como todas as figuras absolutamente singulares, Pina Bausch resiste às definições. Mas Fellini, que lhe deu um papel em "O Navio", deixou-nos uma bela tentativa: “Uma monja com um gelado, uma santa com patins, um rosto de rainha no exílio, de fundadora de ordem religiosa, de juíza de um tribunal metafísico, que de repente nos pisca o olho...”
Notícia actualizada às 23h43