Um lugar onde as obras de arte vêm primeiro
Quando imaginou o "novo" Museu de Évora, Raul Hestnes Ferreira quis que os visitantes do antigo paço arquiepiscopal - que alberga as principais colecções do museu desde, pelo menos, 1929 - visualizassem o retábulo flamengo monumental que retrata a vida da Virgem, numa orientação próxima à que tinha ocupado originalmente, até ao século XVIII, na Sé da cidade. Quis também que a sala onde fosse instalado ganhasse uma escala apropriada à sua condição primitiva, quando fora o elemento central da velha capela-mor, demolida durante o reinado de D. João V.
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Quando imaginou o "novo" Museu de Évora, Raul Hestnes Ferreira quis que os visitantes do antigo paço arquiepiscopal - que alberga as principais colecções do museu desde, pelo menos, 1929 - visualizassem o retábulo flamengo monumental que retrata a vida da Virgem, numa orientação próxima à que tinha ocupado originalmente, até ao século XVIII, na Sé da cidade. Quis também que a sala onde fosse instalado ganhasse uma escala apropriada à sua condição primitiva, quando fora o elemento central da velha capela-mor, demolida durante o reinado de D. João V.
Um dos objectivos era expor de forma unitária os diversos painéis que compõem o retábulo, dentro de um princípio de não fragmentação da obra. A nova sala do retábulo, orientada a nordeste, a mesma direcção da cabeceira da Sé, revestida a madeira para se diferenciar, com o piso rebaixado para respeitar a dimensão da peça e iluminada zenitalmente por uma clarabóia, acabou por funcionar como "pedra fundadora" da requalificação do museu. Claramente aqui, a arquitectura teria que estar "ao serviço" de um programa museológico exigente e há muito consolidado. Hestnes Ferreira interpretou desta forma o projecto de remodelação cujo concurso por convites ganhou, ainda durante os anos 90 do século passado.
A opção por encontrar uma fórmula de contextualização do retábulo, a mais importante peça dentro de um conjunto de pintura luso-flamenga que é também considerado um dos mais significativos no âmbito das colecções portuguesas, explica igualmente outras directrizes seguidas na reforma do edifício. Hestnes Ferreira partiu de uma leitura muito informada sobre a evolução do edifício, que, erguendo-se sobre o fórum romano e tendo várias camadas edificadas, terá estabilizado na sua forma mais regular por volta do final do século XVI. Ocupando um lugar estratégico na cidade desde a sua fundação, o edifício implanta-se sobre uma série de sedimentos e usos históricos que tornam o seu subsolo um espaço excepcional para a prática arqueológica. Reminiscências de diversas épocas (romana, islâmica, medieval) têm sido encontradas igualmente em paredes, muros e fundações.
O arquitecto serviu-se da estrutura actualmente dominante, construída em torno de um pátio central de planta quadrangular, para reforçar um percurso museológico circular. Dava assim expressão a uma promenade inspirada na organização dos velhos museus que começaram a ser tipificados na Europa a partir de Oitocentos, como lugares de educação e memória.
Espírito "clássico"
No Museu de Évora privilegiou-se a estrutura em galeria, limpando o espaço de qualquer compartimentação e fazendo prevalecer uma circulação contínua que serve uma montagem linear e sequencial das obras, de acordo com um espírito "clássico" que fixou genericamente a exposição de peças artísticas produzidas até finais do século XIX.
Segue-se igualmente uma lógica temática de distribuição por pisos, que permite dispor no andar semienterrado infra-estruturas técnicas, instalações sanitárias ou oficinas de restauro, mas também áreas destinadas a exposições temporárias; no nível da entrada, para lá das bilheteiras e da cafetaria, incluíram-se as salas de escultura medieval e renascentista, na sua maioria motivos escultóricos de vocação arquitectónica mas também pedras tumulares, e deixou-se à vista uma parte reduzida das escavações entretanto realizadas; no último pavimento acessível ao público instalou-se a famosa colecção de pintura flamenga. Os serviços administrativos e a biblioteca introduziram-se nas águas-furtadas, maximizando assim a área de exposição nos andares "nobres", tendo sempre em conta a impossibilidade de expansão do edifício existente.
O domínio do plano museológico sobre outras perspectivas e objectivos é aqui inequívoco. Depois de décadas de intervenções, principalmente durante os séculos XIX e XX, desde que passou a propriedade do Estado, o carácter residencial e original do palácio, por exemplo, assim como a sua função representativa e simbólica, tornaram-se praticamente irreconhecíveis (talvez com a excepção do vestíbulo de revestimento azulejar que inicia o percurso da pintura no 2.º piso); tal como o uso parcial das suas caves como calabouços, entre outras funções que foi acumulando.
O edifício revela na pele, aliás, como é difícil conciliar exigências de autenticidade arqueológica, com necessidades expositivas. Neste quadro é bastante revelador a integração de elementos arquitectónicos retirados de outras edificações eborenses, cuja colocação no palácio obedece a princípios museológicos e não de reconstrução arquitectónica.
Espaço solene
Este processo culmina no "restauro" da Sala Mário Chicó. Nela mantêm-se materiais de revestimento (tijoleira no pavimento, por exemplo, em contraste com o granito do piso térreo e o carvalho-americano nos andares superiores) e a estrutura museológica introduzida pelo historiador alentejano, que morreu em 1966. Procurou-se assim recriar um ambiente espacial - ou, mais precisamente, museológico -, inovador à época em Portugal, onde elementos arquitectónicos descontextualizados - túmulos, frisos, capitéis ou colunas, etc... - eram dignificados como peças de arte. Outra sala representativa é a dedicada ao espólio de Frei Manuel do Cenáculo, onde se reproduz, através da interpretação (contemporânea) de um gabinete de raridades, o gosto coleccionador e ecléctico deste clérigo (também próprio do tempo), que foi arcebispo de Évora no início do século XIX, tendo aqui instalado a primeira biblioteca pública da cidade. Estas salas constituem estruturas cénicas que fortalecem ainda mais os conteúdos museológicos.
Todo o desenho "novo", desde os materiais de acabamento aos perfis metálicos que assinalam as molduras dos vãos interiores, passando pelos sistemas de iluminação natural e artificial, comunica a "solenidade" de um espaço expositivo. Existe uma neutralidade na construção do espaço que dirige a atenção para as peças de arte (onde deve estar), desviando-a da arquitectura. Num tempo em que as práticas de requalificação de edifícios preexistentes passam muitas vezes pela museologização da própria arquitectura, expondo os diferentes tempos que compõem essas construções, Hestnes Ferreira preferiu introduzir uma marca de unidade assumindo sempre que se tratava de fazer um museu.