Michael Jackson: A crítica do concerto de Alvalade em 1992

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Jackson apresentou a “Dangerous Tour” em Alvalade, em Lisboa. Foi a primeira e única vez que o "rei da pop" esteve em Portugal Luísa Ferreira (arquivo)

Qualquer artista pop que se preze dirá que o gozo das digressões reside em todos os concertos serem diferentes. Mas Michael Jackson é o maior e, se calhar por isso, as actuações desta sua “Dangerous Tour” são tiradas a fotocópia, sem que isso implique a mínima perda de espectacularidade.

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Qualquer artista pop que se preze dirá que o gozo das digressões reside em todos os concertos serem diferentes. Mas Michael Jackson é o maior e, se calhar por isso, as actuações desta sua “Dangerous Tour” são tiradas a fotocópia, sem que isso implique a mínima perda de espectacularidade.

Vimos o concerto em Barcelona, lemos as reportagens nos principais jornais europeus, do britânico “Melody Maker” ao espanhol “El País”. Depois fomos a Alvalade para concluir que esta digressão é como um “rodeo”: quando se viu um “show”, viram-se todos. E se houve alguma diferença, veio do público, não do artista.

Ninguém manda em nós

Em Lisboa apontou-se para uma assistência a rondar os 60 mil espectadores, mas havia mais espaço livre que ocupado na relva e a bancada frente ao palco estava vazia. De resto, cá fora, uma boa dezena de pessoas procuravam em desespero vender bilhetes ao preço de ocasião de 2 mil escudos (outro saldo eram duas “t-shirts” por 1500 escudos sob o pregão “sempre pode servir para tiro ao alvo”). Típico do concerto português foi a chuva e a descida da temperatura, o consequente domínio do amarelo-oleado a combinar com o azul-ganga, em efeitos muito apropriados ao espírito “united colors” do evento.

A pretexto da gravação do espectáculo para a televisão norte-americana, o concerto de Alvalade contou também com a original aparição em palco, escassos minutos antes da entrada da estrela, de um apresentador decidido a “aquecer” a malta. Para domador de massas não tinha grande talento e o povo acabou por fazer mais barulho a assobiá-lo quando saiu, do que quando ele pediu repetidamente para se gritar “Michael” em coro. De qualquer modo, a quem interessa que os “yankees” fiquem como retrato de um mar de cabeças e chapéus-de-chuva portugueses?

A festa nas bancadas começou, justamente, depois do dito animador desistir de a forçar, quando o estádio inteiro se afoitou no tradicional passatempo de levantar os braços para fazer a onda. Esta irreverência do público português, de só entrarem cegadas quando lhe dá para isso, foi mesmo uma das constantes agradáveis do espectáculo de Alvalade. Chegou ao ponto da assistência não dar grande troco quando Michael pediu coro, mas de cantar afinado “We are the world” sem ninguém lhe pedir, ainda que o arranjo da versão instrumental fosse bastante diferente do original.

O mais estranho humanismo

As iniciativas de espontaneidade colectiva contrastaram comum programa repetido, dos traços largos aos mínimos pormenores. Um preâmbulo paramilitar: sons de “Carmina Burana” com imagens de multidão, entrecruzadas com planos da vedeta numa montagem vertiginosa. Uma primeira parte variada: “Jam” para Michael inaugurar as suas habilidades dançantes, “Startin’ something”, para se afagar entre as pernas; “Human nature”, para mostrar que também canta; “Smooth criminal” para reconstituir o vídeo em palco.

Um segundo andamento meloso de nostalgia dos Jacksons; depois a festa aparatosa dos hits audiovisuais com recriações das coreografias dos telediscos de “Thriller”, “Billy Jean” “Beat It”, e a canção “Work day and Nnight” colada a uma citação do seu clip masturbatório, para acentuar a dialéctica actuação/teledisco. Uma quarta fase de humanismo infantil e panglobal: as baladas “Will you be there” e “Heal the world”, gospel, crianças, beijos para a plateia, e globos terrestres por toda a parte. E o remate “2001” com Jackson — ou o sósia — a sair em voo sobre a plateia, depois de cantar “Man in the mirror”.

O mesmo alinhamento sem tirar nem pôr, as mesmas paragens para recuperar fôlego e criar “suspense” no interior das canções, os mesmos efeitos especiais em momentos cruciais do “show”. Desde Junho até agora — e a digressão não vai ficar por aqui —, cidade após cidade, hotel após hotel, estádio após estádio. Com todas as medidas de segurança, os mil e um expedientes conhecidos ou secretos para fintara curiosidade pública e garantir que a estrela não é importunada.

É, convenhamos, uma insólita modalidade de aumentar a conta bancária. Claro que há gente que morre de fome, pessoas que vivem dilaceradas por dramas pragmáticos ou psicológicos mil vezes pior, mas será possível ter prazer e ser feliz assim? A ironia parece residir nessa dieta: o artista que oferece mais prazer, que mais entretém e maravilha as massas é o que se afasta dos outros e que se recusa a ter o tipo de gozo que provoca.

E um paradoxo, de acordo, mas porquê repetir sempre o mesmo “show”? Seria diferente sim, se avariasse o trampolim usado para entrar em palco, ou se encravasse o “zip” do fato de astronauta para sair dele, mas aí faria rir e não maravilhar. A alternativa consistiria em prescindir das atracções especiais, caso em que a actuação seguiria os parâmetros convencionais e o alinhamento poderia mudar cada noite. Michael teria talvez mais gozo, mas quem se arrisca a dizer o mesmo dos seus fãs?