O mundo não acaba no Castro
O que representa contar uma vida "presa por pastilhas elásticas e arames", ou seja, à custa de um combinado de nevirapina, lamivudina e zidovudina? É isso que faz, com fina ironia, passe o absurdo, o escritor americano Armistead Maupin (n. 1944), famoso pelas suas histórias de São Francisco - "Tales of the City", seis volumes publicados entre 1978 e 1989, os quatro primeiros traduzidos em Portugal -, que deram origem à premiada série de televisão de Alastair Reid. Essas histórias retratam a mudança de paradigma da cidade que foi o símbolo da revolução sexual dos anos 1970, por efeito da devastação provocada a partir de 1981 pela pandemia do HIV.
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O que representa contar uma vida "presa por pastilhas elásticas e arames", ou seja, à custa de um combinado de nevirapina, lamivudina e zidovudina? É isso que faz, com fina ironia, passe o absurdo, o escritor americano Armistead Maupin (n. 1944), famoso pelas suas histórias de São Francisco - "Tales of the City", seis volumes publicados entre 1978 e 1989, os quatro primeiros traduzidos em Portugal -, que deram origem à premiada série de televisão de Alastair Reid. Essas histórias retratam a mudança de paradigma da cidade que foi o símbolo da revolução sexual dos anos 1970, por efeito da devastação provocada a partir de 1981 pela pandemia do HIV.
Armistead Maupin é um escritor e jornalista laureado, combateu no Vietname (1967-70) como fuzileiro naval, assumiu publicamente a sua homossexualidade em 1974 e, em 2007, casou com o fotógrafo Christopher Turner. "Michael Tolliver está vivo", o seu mais recente romance, chegou às livrarias portuguesas numa tradução irrepreensível de Duarte Sousa Tavares.
Michael Tolliver não é uma personagem nova no universo de Maupin. Quem tenha lido os livros anteriores recorda as suas divertidas incursões no National Gay Rodeo, um evento improvável, mas se há coisa de que Maupin não pode ser acusado é de previsibilidade. Um dia (daqui a 10 anos?, menos?), historiadores, antropólogos e sociólogos não vão poder ignorar que o leitmotiv da ficção anglo-americana pós-1980 foram as consequências da identificação do HIV, com toda a carga moral que os anos Reagan associaram à doença. Nesse particular, os livros de Maupin estão na primeira linha do enfoque. Porque se há uma diferença brutal entre a ficção, apesar de tudo "macia" (e alusiva), de escritores como Edmund White ou David Leavitt, e a crueza da vida como ela é, essa diferença é peremptória nos relatos desapiedados de Maupin, mais próximos dos testemunhos de Andrew Holleran ou Dennis Cooper. Como se estivéssemos a comparar António Lobo Antunes e Mário Cláudio (o exemplo tem como única utilidade dar um contraponto nacional facilmente perceptível por toda a gente). Maupin não generaliza, nem reduz a brutalidade da doença ou o "glamour" mediático de certos sectores da comunidade gay a episódios de vituosismo narrativo, como faz, por exemplo (e de forma superlativa), Augusten Burroughs.
Logo na segunda página de "Michael Tolliver está vivo", a propósito de um encontro fortuito num supermercado (uma das personagens não se lemba das circunstâncias em que conheceu a outra), a súbita lembrança de certo pormenor anatómico marca o tom da assertividade como, no mundo de língua inglesa, o quotidiano das pessoas comuns se transforma em literatura. Decerto não por acaso, o realismo mágico (uma forma como qualquer outra de iludir a realidade) é uma invenção latino-americana.
A crítica tem-se dividido entre os que consideram "Michael Tolliver está vivo" como sendo o 7.º volume das histórias de São Francisco. Não é. Muita coisa mudou desde 1989 (a casa de Barbary Lane desapareceu), e o Michael Tolliver de agora é um homem mais velho, que reflecte na passagem do tempo. Contra todas as probabilidades, sobreviveu à doença. E o Viagra abriu-lhe novas possibilidades. "Michael Tolliver está vivo" integra o núcleo dos romances autónomos, entre eles o muito apreciado "The Night Listener" (2000), adaptado ao cinema por Patrick Stettner, com Robin Williams no protagonista. Diferença desde logo decisiva, o facto de Michael ter agora um amante 20 anos mais novo do que ele.Por falar em amantes, um aspecto determinante deste novo livro tem a ver com o facto de o narrador falar do seu "marido", por oposição à fórmula tradicional do "companheiro". Opção que traduz, sem rodeios, o quadro legal dos últimos anos, em que cinco Estados norte-americanos legalizaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo: "Sumter, entretanto, tinha ficado imediatamente fascinado pelo meu marido, espalhando os fantoches a seus pés como se fossem ofertas a um deus loiro."
As mulheres são importantes em "Michael Tolliver está vivo", isso não é novidade na obra do autor. Enganam-se os que possam supor que o livro é sobre saunas e bares de engate. Afinal, São Francisco não é só o Castro. Um leitor sem preconceito pode lê-lo com o mesmo prazer (nas descrições da vida de bairro, das pequenas profissões, das querelas familiares, etc.) como lê Jane Austen ou Saul Bellow. Maupin nunca doura a pílula. Mas também não vê o mundo a preto e branco. A tonalidade e as harmónicas da sua escrita permitem-nos sonhar com os pés assentes na terra.