A pegada humana
"As Aventuras de Robinson Crusoe" é um daqueles romances que toda a gente "conhece", ainda que o não tenha lido. Daniel Defoe (1660?-1731) não inventou a "ilha deserta", mas para o "cânone ocidental" é como se o tivesse feito, tal a perene e universal popularidade que o seu romance alcançou. Esta glória (as inumeráveis glosas do tema na cultura popular) acaba, aliás, por jogar contra o livro: é como se já não fosse necessário lê-lo.
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"As Aventuras de Robinson Crusoe" é um daqueles romances que toda a gente "conhece", ainda que o não tenha lido. Daniel Defoe (1660?-1731) não inventou a "ilha deserta", mas para o "cânone ocidental" é como se o tivesse feito, tal a perene e universal popularidade que o seu romance alcançou. Esta glória (as inumeráveis glosas do tema na cultura popular) acaba, aliás, por jogar contra o livro: é como se já não fosse necessário lê-lo.
Defoe - cuja vida na Grã-Bretanha se revelou ser menos segura e estável que a do seu herói na distante ilha deserta das Caraíbas - escreveu muito mas foi um romancista tardio. Teria já 58 anos quando começou a escrever "As Aventuras de Robinson Crusoe", que publicou em 1719. "Moll Flanders", o outro romance que deu a Defoe um lugar cativo na história literária inglesa, é de 1722. Isto devia sossegar os jovens e apressados romancistas de hoje. Quando "Robinson Crusoe" foi pela primeira vez publicado não existia ainda, propriamente, aquilo a que hoje se chama "literatura juvenil", e menos ainda existia a "juventude" como alvo de mercado. Mas foi enquanto "clássico juvenil" que o ocidente o canonizou e é nessa qualidade que surge agora, em nova tradução, a inaugurar a "Biblioteca Juvenil" das Edições Nelson de Matos. Quem sabe se não haverá nisto um subversivo (e talvez involuntário) elogio da desobediência? Conveniente é recordar que as aventuras e desventuras em que se mete Crusoe radicam na sua recusa em seguir os "valores" paternos, que se resumem na defesa de uma "áurea mediocridade" segura e agradecida (a previsibilidade burguesa, o conforto da classe média, dir-se-ia hoje); e que essa recusa, para lá das inúmeras tribulações que origina, será recompensada por um final feliz.
A pergunta que agora se poderá fazer é esta: o livro de Defoe suporta hoje uma leitura que, simultaneamente, nem o confine na categoria "romance juvenil" nem o sujeite a interpretações e censuras extraliterárias (a história de Crusoe, como é sabido, tem hoje aspectos política e culturalmente "incorrectos", que têm que ver com o olhar eurocêntrico do protagonista sobre o 'outro', o colonizado, os povos africanos e americanos)? A resposta é claramente afirmativa. Recordemos o argumento: um homem jovem escapa a um naufrágio e alcança uma ilha deserta, na qual sobreviverá um quarto de século absolutamente sozinho (se exceptuarmos o cão que ele resgata do navio naufragado e o papagaio que ele domestica na ilha e cuja voz será a única, além da própria, que Crusoe terá o prazer de ouvir durante todo esse tempo, até surgir Sexta-Feira, o "bom selvagem"). A tarefa parece pouco prometedora para um romancista que deve entreter a audiência a partir de tão parcos elementos: um espaço fechado e um herói sem antagonistas. Ainda por cima, a "corrente de consciência" não estava na moda. Mas Daniel Defoe saiu-se bem. Muito bem.
O truque é digno de Hitchcock. Defoe envolve-nos de tal maneira com a narração minuciosa, lenta e "realista" do modo como Crusoe redesenha a sua vida a partir do "zero" (isto é: a partir dos salvados que resgata do navio encalhado e dos salvados, também, da sua educação europeia e "civilizada") que, a determinada altura, esquecemo-nos, tal como o protagonista, da restante humanidade. E eis que, quinze anos passados na ilha, Crusoe descobre uma "pegada humana" na areia da praia. Uma pegada que não é sua.
Se Defoe (como o Shakespeare de "A Tempestade") pode ser hoje vítima do seu olhar culturalmente determinado pelos valores do emergente colonialismo europeu (a coisa pode ter outros nomes: expansão ultramarina, início da gloablaização económica, etc.), creditemos-lhe então qualidades que a seu favor desequilibram a balança: a crítica dos métodos predatórios e genocidas da colonização espanhola das Américas, a consciência da relatividade dos seus próprios padrões culturais e civilizacionais, a reflexão mais geral, e que diríamos 'ecológica', feita acerca da relação do homem com a restante natureza. Citemos apenas a conclusão que tira Crusoe depois de muitas voltas dar à cabeça e às mãos para garantir o seu sustento: "Pode dizer-se, em toda a verdade, que estava agora a trabalhar pelo meu pão. Parecia-me de certo modo maravilhoso, e creio que poucas pessoas pensam muito nisso, ou seja, na estranha e imensa variedade de preparativos e coisas necessárias para se conseguir fazer um único pão." Finalmente, diga-se que "As Aventuras de Robinson Crusoe" pode ser um romance juvenil mas não é necessariamente um romance jovial. Crusoe passa vinte e cinco anos sem falar com outro ser da sua espécie, mas raramente (e só lá para o fim) o lamenta.