Fazer um download é roubar?

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Miguel Madeira (arquivo)

Tiago não tem problemas em ser considerado um "pequeno pirata". Só compra filmes e séries nos casos raros em que o preço é convidativo ou quando os extras do DVD compensam o gasto. Na maior parte das vezes, a escolha cai no manancial de conteúdo gratuito disponível online. A Tiago as questões legais e morais não pesam na consciência: "Sinceramente, estou-me a borrifar para as leis."

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Tiago não tem problemas em ser considerado um "pequeno pirata". Só compra filmes e séries nos casos raros em que o preço é convidativo ou quando os extras do DVD compensam o gasto. Na maior parte das vezes, a escolha cai no manancial de conteúdo gratuito disponível online. A Tiago as questões legais e morais não pesam na consciência: "Sinceramente, estou-me a borrifar para as leis."

Não falta quem defenda que a Internet devia ser um espaço de mais liberdade: nestas eleições europeias, o Partido Pirata, da Suécia, conquistou sete por cento dos votos naquele país e conseguiu um lugar no Parlamento Europeu. A agenda política do partido consiste apenas em tentar alterar as leis relativas aos direitos de autor, promover uma menor vigilância da Internet e abolir o sistema de patentes (a Suécia é também o país de origem dos criadores do Pirate Bay, o mais conhecido site do mundo para partilha de ficheiros online).

Mesmo depois de a Internet ter deixado o nicho académico onde nasceu e de se ter massificado, o mundo online - no qual o anonimato é relativamente fácil e a sensação de impunidade é grande - ainda é muitas vezes visto como um espaço de liberdade radical. Talvez por isso Alexandre (o nome é fictício) não hesite em dizer que está a cometer um crime. "Sei que é ilegal e por isso sei que sou criminoso quando descarrego."

Este estudante de Engenharia, contudo, faz uma ressalva de consciência: "Não descarrego por motivos comerciais. Descarregar algo ilegalmente é como um test-drive. Se o produto for bom, vai sempre haver quem o compre, mesmo já o tendo descarregado ilegalmente. Façam boa música e bons filmes e o pessoal vai sempre comprar."

Nestes caso da pirataria online, em que o objectivo é apenas o consumo pessoal, o problema é a falta de consciencialização individual, diagnostica o professor da Universidade de Coimbra Joaquim Ramos de Carvalho, que se dedica às áreas da computação e humanidades: "Mais do que falta de autoridade ou de repressão, o que caracteriza a Internet é a falha dos mecanismos internos de autocontrolo das pessoas."

O investigador observa que, em muitos outros casos, já foi criado este tipo de mecanismos e, por isso, determinados comportamentos - por exemplo, gastar demasiada água ou não fazer reciclagem - tornaram-se socialmente reprováveis. Mas os downloads não têm este estatuto. Para isso, seria preciso "um misto de educação constante e precoce com sistemas de incentivos e com punições para os casos mais graves". A falha, considera, é que "nada disto existe, ou existe de forma muito incipiente, no que toca a propriedade intelectual na Internet".

Questão de interpretação

Do cinema à música, as indústrias de produção de conteúdos não hesitam em equiparar um download sem consentimento dos autores a um roubo. Nas salas de cinema portuguesas, por exemplo, já foram exibidos pequenos vídeos que comparavam o download ilegal ao furto numa loja. Mas há quem note haver uma diferença grande: quando alguém descarrega uma música ou filme, é feita uma cópia e ninguém fica privado do produto original.

Também a interpretação da lei portuguesa não é consensual. A legislação permite a reprodução de uma obra para fins privados (e um download pode caber neste definição) - mas a autorização só serve quando não seja "atingida a exploração normal da obra", nem seja causado "prejuízo injustificado dos interesses legítimos dos autores". E é aqui que as opiniões divergem. Enquanto de um lado se acena com os números do declínio das vendas de música e filmes registados desde a massificação da banda larga, do outro citam-se estudos académicos que apontam não haver uma ligação directa entre o download e as vendas. Um exemplo frequente é o do autor brasileiro Paulo Coelho, cujas vendas de livros subiram depois de o próprio ter colocado (sem o conhecimento da editora) parte da sua obra na Internet.

Miguel Carreta, director da Audiogest (associação que gere direitos de autor de artistas musicais), é dos que não têm dúvidas em considerar o download sem autorização como um "acto ilícito", dado que "afecta a utilização normal da obra e causa um prejuízo ao autor". Em Portugal, por exemplo, a indústria fonográfica viu a facturação cair para menos de metade nos últimos oito anos.

Carreta sublinha, no entanto, que há uma grande diferença entre fazer um download e colocar um ficheiro à disposição na Internet, tal como há diferenças entre descarregar para uso pessoal ou para obter ganho financeiro.

Foi a pensar nestes diferentes graus de pirataria online que o Parlamento francês aprovou recentemente uma lei que permite cortar, sem recurso aos tribunais, o acesso à Internet a quem seja suspeito de estar a fazer downloads ilegais. A medida foi desde o início fortemente criticada e acabou por ser ontem chumbada pelo Tribunal Constitucional francês.

Em Portugal, os representantes de artistas já se mostraram a favor de uma solução semelhante à francesa. Mas o ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, disse que o modelo não serviria a Portugal e criou um grupo de trabalho para tentar encontrar uma solução para a pirataria.

Há ainda quem argumente que descarregar ficheiros é uma opção que deve ser deixada à consciência de cada um. É o caso de Miguel Caetano, mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação e autor do blogue Remixtures, especializado no mundo da música na era digital. "[A Internet] dá a cada pessoa a liberdade de fazer conscientemente as suas próprias escolhas sem ser constrangido. Não me cabe a mim, nem a ninguém, julgar o que os outros fazem com a sua ligação, desde que não cometam crimes que possam lesar manifestamente outrem", argumenta.

Falta de alternativas

O professor da Universidade de Coimbra Joaquim Ramos de Carvalho discorda desta linha de argumentação: "Existe uma tendência que procura teorizar, ou legitimar ideologicamente, o desrespeito da propriedade intelectual com argumentos falaciosos: 'quem pirateia não compra', 'os autores de qualquer modo não recebem quase nada', 'o CD é meu, faço com ele o que quiser'."

Também Miguel Carreta observa que se tenta legitimar o uso de redes peer-to-peer (onde cada um, por norma, descarrega ficheiros ao mesmo tempo que torna os seus próprios ficheiros acessíveis a outros) remetendo esta prática para o conceito de partilha de conteúdos: "Socialmente, a partilha é um acto moralmente nobre. Mas, nestes casos [e contrariamente a bens físicos], quem partilha não perde nada do que tem. Não há nobreza nenhuma no acto."

João trabalha numa empresa de software (um dos sectores muito afectados pela pirataria). Não quer revelar o nome verdadeiro quando fala das séries televisivas que descarrega ilegalmente - e são várias, todas as semanas. João tem aquilo que admite ser uma desculpa para piratear: "As editoras e distribuidoras ainda não se conseguiram adaptar aos novos meios. É difícil ver as séries nos horários das televisões. Assim, tenho a vantagem de ver quando quero, onde quero."

Joaquim Ramos de Carvalho concorda que há um atraso por parte de quem produz os conteúdos: "Os detentores de direitos têm sido incapazes de fornecer aos consumidores alternativas convenientes e razoáveis para aceder legitimamente aos conteúdos, sobretudo no que toca a cinema e séries de televisão, onde o melhor serviço digital que hoje se consegue é de facto por via da pirataria."

João até admite que seria capaz de comprar as séries que actualmente pirateia: "Se os DVD fossem mais baratos, ou houvesse download legal, seguiria essa via sem dúvida. Até porque me recuso a sacar e ver coisas sem qualidade." Já Tiago, que se está "a borrifar para as leis", não vê outra alternativa que não a pirataria. E mesmo que Portugal siga o caminho da França e tente uma solução para controlar os downloads ilegais, a solução de Tiago é simples: "Arranjava uma forma de contornar o sistema e, logo que arranjasse essa forma, continuava a sacar."