Percussões (mais e menos) acutilantes

A "Semana de percussão" do CCB juntou a comemoração dos 10 anos de actividade do Drumming - Grupo de Percussão e a segunda edição de uma "maratona Bang, Crash, Splash" proposta pelo percussionista Pedro Carneiro. Entre 24 e 30 de Maio a percussão esteve ali em destaque. Houve o lado "educativo", com uma oficina e concertos com intuitos pedagógicos. Mas havia também propostas cativantes de obras pouco (ou nunca) tocadas entre nós. A primeira delas foi a peça de Steve Reich que dá o nome ao Grupo de Percussão de Miquel Bernat - Drumming, precisamente, é o seu nome: uma composição marcante do minimalismo, estreada em 1971 depois de uma viagem de Steve Reich a África.

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A "Semana de percussão" do CCB juntou a comemoração dos 10 anos de actividade do Drumming - Grupo de Percussão e a segunda edição de uma "maratona Bang, Crash, Splash" proposta pelo percussionista Pedro Carneiro. Entre 24 e 30 de Maio a percussão esteve ali em destaque. Houve o lado "educativo", com uma oficina e concertos com intuitos pedagógicos. Mas havia também propostas cativantes de obras pouco (ou nunca) tocadas entre nós. A primeira delas foi a peça de Steve Reich que dá o nome ao Grupo de Percussão de Miquel Bernat - Drumming, precisamente, é o seu nome: uma composição marcante do minimalismo, estreada em 1971 depois de uma viagem de Steve Reich a África.


A interpretação do Drumming foi muito cativante, num dos concertos mais concorridos da semana (estavam cerca de 150 pessoas). Quase quarenta anos depois da sua criação, algo de inquietante surge ainda da repetição desfasada de pequenas células numa pulsação regular neste Drumming, que força o espectador a "entrar" no transe (distanciar-se, partir, alienar-se) e a ouvir as pequenas transformações sucessivas que saltam da repetição. Um transe sem dança e sem drogas, longe de África e perto de uma qualquer África imaginária. Mas o ritual foi transposto para um concerto "sério" e ocidental, para uma experiência "pura" de uma nova percepção dos sons. A estimulante interpretação do Drumming não deixou cair Drumming na sonolência - manteve os ouvidos vivos.

Já aqui se falou, de outro ponto de vista (P2 de 31 de Maio), de Open Scores, uma curiosa experiência de improvisação com a dança a partir de In C (Em dó) de Terry Riley, outro clássico do minimalismo, interpretado com "liberdade relativa", mas sem partir a loiça toda. Na altura em que foi composto, em 1964, era uma provocação dirigida às vanguardas mais rígidas - Riley propunha uma composição tonal e parcialmente aleatória para um número indefinido de instrumentos, e ainda por cima "em dó".

Para além das presenças do japonês Kunihiko Komori e Jeremy Fitzsimons, em dois bons recitais (sobretudo o do japonês), devemos destacar no último dia da semana de percussão o concerto de encerramento. Pedro Carneiro brilhou com Natália Monteiro (flauta) na bela peça Formas del Viento, do argentino Alejandro Viñao. A fechar a semana, novamente uma peça de Steve Reich (Sextet), mas desta vez tocada (com sucesso) por Komori, Fitzsimons, Miquel Bernat, Nuno Aroso, Pedro Carneiro (todos nas percussões) e dois pianistas (Cândido Fernandes e Ian Mikirtoumov).No dia 28 tinha acontecido o espectáculo Trifásico, uma das propostas mais discutíveis da semana, e que propositadamente deixamos para um comentário final.

Este espectáculo em três partes cruzava a música com outras artes. Na primeira parte, uma peça extraordinária e bem humorada de Georges Asperghis (Les guetteurs de sons) que obrigava os músicos a tornarem-se verdadeiros actores. O que se vê não é o que se ouve: os intérpretes esperam o momento oportuno para as suas intervenções, hesitam, falam, fazem gestos sem correspondência sonora, outras vezes fazem com os pés o que as mãos apenas sugerem (mas só os vemos do tronco para cima). Na segunda parte, uma bela homenagem a Eadweard Muybridge, o fotógrafo inglês do século XIX que estudou intensamente o movimento, feita com a peça do americano Edmund Campion, A different kind of measure: estudos de movimento (musical) em tensão com imagens de Muybridge sobrepostas, alteradas e projectadas na tela ao fundo.

Duas obras que apontam dois caminhos fascinantes e exaltantes para a relação entre as artes (música/teatro; música/vídeo) - exactamente o oposto da terceira parte de Trifásico, a "ópera" Sol de Inverno de David del Puerto, cujo fulcro - a ligação da percussão e de um texto (um excerto de Espectros, de Ibsen) é completamente falhada. Esta quase-ópera anacrónica e aborrecida é uma superficial composição com os tiques da vanguarda conservadora, neo-schoenberguiana mas sem engenho nem arte nem zás! Os intérpretes estiveram muito bem, o que só nos fez ver e ouvir melhor a desgraça estética que resulta de quem quer restaurar a velha ópera sem ideias novas - nem cénicas, nem musicais. Felizmente a percussão contemporânea encontrou nesta semana propostas bem mais transformadoras e acutilantes.