O paraíso nunca chega
"Esta é uma história para se ler na cama, numa velha casa, numa noite de chuva", assim começa este curto romance publicado em 1982, que cem páginas depois termina: "Mas isso é outra história e, como disse no começo, está é uma história para ser lida na cama, numa velha casa, numa noite de chuva." Talvez este principio e fim mostrem que aqui a narrativa é menos importante do que o tom, elegíaco e algo hermético, e com algumas e inesperadas epifanias.
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"Esta é uma história para se ler na cama, numa velha casa, numa noite de chuva", assim começa este curto romance publicado em 1982, que cem páginas depois termina: "Mas isso é outra história e, como disse no começo, está é uma história para ser lida na cama, numa velha casa, numa noite de chuva." Talvez este principio e fim mostrem que aqui a narrativa é menos importante do que o tom, elegíaco e algo hermético, e com algumas e inesperadas epifanias.
Num escritor tão pessimista como John Cheever (1912-1982), tendemos a entender a palavra "paraíso", ainda por cima na sua forma exclamativa ("Oh What a Paradise It Seems", no original), como uma amarga ironia. Essa ideia não é exacta. O romance apresenta várias figurações possíveis do paraíso, embora de facto nunca seja um paraíso metafísico nem mental.
Esse paraíso que Cheever convoca faz-se da banalidade do quotidiano, às vezes muito pouco paradisíaca na superfície mas que, em dados momentos, permite uma felicidade sem motivo: compras em supermercados, idas à praia em família, viagens na auto-estrada, gente a fazer "jogging" para esquecer os seus males, estranhas reuniões paroquiais. Brilhante cronista dos "subúrbios" (que no contexto americano designam os locais de residência da classe média e média-alta), Cheever quase abdica da concepção tradicional de "felicidade", concentrando-se em sensações e evocações que mantém as personagens à tona de água.
Amor propriamente dito é um sentimento quase ausente. Os casais continuam juntos por comodismo, o sexo é uma compulsão ou um divertimento, e até os laços familiares não contam pouco. Assim, um pai mantém com a filha "uma relação altamente prática, caracterizada principalmente pelo cepticismo", o protagonista tem experiências bissexuais que incomodam a sua identidade mas não a sua ética, e no enlevo apaixonado temos, por exemplo, uma amante que "uma vez tirou o meu pénis da boca só para me dizer que eu não percebia nada de mulheres". Até uma descrição anatómica, quase burlesca, é tudo menos sensual: "Sears era um homem amável e não havia aqui descaramento nem arrogância. Parecia, no entanto, desfrutar de uma espécie de autoridade, como se este órgão tão comum, possuído por todos os homens do planeta, fosse um tesouro especial; como a caneta com que se assinou o Tratado de Versailles, roubando a Macedónia à Bulgária, dando à Grécia a sua costa do Egeu, criando várias novas nações conflituosas nos Balcãs, expatriando e deixando sem abrigo populações, oferecendo à Polónia um corredor para o Báltico e espalhando as sementes para discórdias futuras e para a guerra. Ao pôr os órgãos genitais nas calças, Sears parecia pensar que estava a manipular a história" (págs. 45-46).
Tudo então é triste, tudo incoerente, envelhecido, neurótico. Mesmo quando aparece um psicanalista (aqui chamado "alienista"), ele pouco mais oferece como conselho do que: "Se tem assim tantos amigos mande-me alguns para eu tratar." As personagens têm o que se chama densidade psicológica, mas é uma densidade fragmentada, estão perdidas, vivem vidas irreais. A técnica narrativa, herdeira do conto, não é sequencial mas faz-se por lampejos e elipses, intensidades.
O "paraíso" propriamente dito é um lago, o Lago Beasley, que agora está a ser usado como lixeira, entulho em vez de águas calmas e patinagem no gelo. Impossível fugir à metáfora: "Sears falava com o entusiasmo nascido do facto de ter encontrado semelhança na busca do amor e na busca da água potável. A pureza do Lago de Beasley parecia ter libertado a sua consciência da crença de que a sua própria libidinosidade era uma profunda contaminação" (pág. 102). É dessa contaminação que Cheever fala, tal como Yates ou Brodkey, outros escritores notáveis já traduzidos em português.Haverá paraíso que escape a essa contaminação, ou seja, é possível que o lago se salve, apesar dos cidadãos preocupados? Aparentemente não, porque os dirigentes locais têm outras prioridades, são outra gente: "Pareciam nomes daquele passado rural em que as famílias partilhavam o nome com ruas, lagos, pauis e às vezes montanhas. O presidente da junta, que segundo Chisholm era um fantoche da oposição, chamava-se Chaunchey Upjohn e os seus lugar-tenentes eram Copley Townsend e Harrison Porter" (pág. 88). Toda esta gente é corrupta, contaminada, ninguém tem a "luminosidade" que Sears procura nas pessoas, só existem castas, crápulas, homens que mentem enquanto olham para as unhas. Toda a gente, como se diz, vive nuns "Balcãs do Espírito", uma terra desolada.
Em "Parece Mesmo o Paraíso", o futuro parece não ter futuro, por mais premonições e linguagem esperançosamente técnica que enxameiem o texto. Há tragédias pequenas (um cão abatido), rádios com música atroz, tragédias enormes (um bebé perdido), casas de sereno isolamento e a chuva em algerozes defeituosos. Há um falso final feliz e um paraíso que nunca chega. No seu último texto, John Cheever refere-se várias vezes à "época sobre a qual escrevo". Que época é essa? É agora.