Chris Blackwell O homem que inventou uma ilha
Em Maio de 1959, depois de uma temporada imerso na fervilhante cena jazz nova-iorquina, Chris Blackwell estava de regresso ao seu país, a Jamaica. Filho da aristocracia colonial, Blackwell, então com 21 anos, vivia como um dandy pouco dado a seguir regras de etiqueta. Em Londres, fora convidado a abandonar o exclusivo colégio Harrow, onde estudava, depois de montar um "pequeno negócio". Vendia cigarros e álcool aos colegas e os directores enviaram uma carta aos pais: "Pensamos que o Christopher estaria mais feliz noutro sítio".
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Em Maio de 1959, depois de uma temporada imerso na fervilhante cena jazz nova-iorquina, Chris Blackwell estava de regresso ao seu país, a Jamaica. Filho da aristocracia colonial, Blackwell, então com 21 anos, vivia como um dandy pouco dado a seguir regras de etiqueta. Em Londres, fora convidado a abandonar o exclusivo colégio Harrow, onde estudava, depois de montar um "pequeno negócio". Vendia cigarros e álcool aos colegas e os directores enviaram uma carta aos pais: "Pensamos que o Christopher estaria mais feliz noutro sítio".
A música, principalmente o jazz e o r&b americanos, eram a sua paixão. De volta à Jamaica, dizíamos, mantinha um quotidiano pouco convencional. Era assessor do governador do país caribenho, à altura ainda parte do império britânico - "abria-lhe a porta do carro e coisas do género", explicou em tempos -, e movia-se com à vontade no meio artístico - em 1962, seria contratado, por recomendação de Ian Fleming, para fazer a repérage para Dr. No, o primeiro filme da série 007.
Blackwell era também instrutor de esqui aquático no hotel Half Moon. Aí ouviu pela primeira vez Lance Haywood, um pianista das Bermudas com residência diária no bar. Achou-o uma versão "cocktail" de Oscar Peterson e decidiu gravá-lo. Fez uma edição de 250 cópias: "Tive muitas em stock durante muito tempo", recordou recentemente ao Times: "Mas sentia-me no paraíso - era aquilo que queria fazer".
Nesse mesmo ano, 1959, nascia a Island Records. Aquilo que começou como uma pequena editora apostada em dar a emergente música jamaicana aos jamaicanos transformar-se-ia, nas décadas de 1960 e 1970, no paradigma de editora independente, uma das mais influentes e reconhecidas mundialmente. É esse legado que se celebra este ano, durante o mês de Maio.
"Keep On Running - The Story Of Island Records", o livro comemorativo, foi agora editado no Reino Unido. "The Island Life Exhibition" está patente, na Vinyl Factory, em Londres, até 17 de Junho. E nestes últimos dias do mês o Sheperd's Bush Empire acolhe uma série de concertos, reunindo nomes do passado e do presente da editora, ou seja, antes e depois de Blackwell: Sly & Robbie, Paul Weller, Tom Tom Club, Cat Stevens, Grace Jones ou as I-Three, o trio de vocalistas que acompanhavam Bob Marley em palco. Amy Winehouse, outro dos nomes anunciado, cancelou entretanto a sua participação.
Um espólio riquíssimo
Em 1962, quando mudou a sede da Island da Jamaica para Londres, Blackwell guiava o seu Mini Cooper pelos bairros suburbanos onde se concentrava a imigração jamaicana, transformando o porta-bagagens em loja ambulante. Vinte e sete anos depois, quando vendeu a Island à multinacional Polygram, tinha construído um catálogo ecléctico e progressista, um espólio riquíssimo na história da música popular urbana. Não só revelara o reggae ao mundo e transformara Bob Marley em estrela global - considera-o o seu maior feito - como, com notável "faro" musical, assinara e apoiara uma série de nomes tidos hoje como indispensáveis. A lista é extensa. Do psicadelismo dos Traffic ao rock progressivo dos King Crimson. Das revoluções folk de John Martyn, Nick Drake ou Fairport Convention à marca autoral única de John Cale e Nico. Dos Sparks aos B52, do blues-rock dos Free ao glam dos Roxy Music. De Tom Waits ou Cat Stevens ao pós-punk das Slits.
Personagem de um tempo em que os editores eram, antes de tudo o mais, melómanos, Blackwell, em artigo publicado recentemente na revista Interview, resumiu da seguinte forma a sua ética e atitude: "Não estou na indústria musical. O negócio não é mais importante que o corpo de trabalho que um artista criará. Penso que essa era a diferença na forma como abordávamos a criação de uma editora discográfica". Nesta visão, como se depreende, o lucro imediato não era uma prioridade. Blackwell descobria os músicos em que acreditava e apoiava-os mesmo quando os resultados comerciais não eram os mais favoráveis.
Sempre na sombra, sempre presente. Dava-lhes total liberdade artística, mas seguia de perto todas as movimentações - por exemplo, Steve Winwood, vocalista dos Traffic, que descobrira, jovem de 15 anos, no Spencer Davis Group, exigia que Blackwell estivesse sempre presente nas digressões da banda.
Foi isso que permitiu que tenhamos hoje acesso à obra inigualável de Nick Drake, foi isso que permitiu a uma desconhecida banda de Dublin, recusada em finais de 1970 por todas as outras editoras, crescer e ser, actualmente, a mais popular mundialmente. Falamos, claro está, dos U2. Blackwell à Interview: "Vi-os, gostei muito deles e assinei-os. Mas não tive qualquer influência neles, não tive qualquer relação com as suas gravações, a sua arte gráfica, as suas digressões. [...] O que fiz pelos U2 foi dar-lhes a 'plataforma' da Island Records, porque disse na editora: 'Estes tipos é que mandam'".
Blackwell e Marley
Apesar de, desde muito cedo, se ter mostrado atenta e interessada naquilo que de mais progressista se criava no cenário rock, a Island manteve sempre uma ligação próxima à música a que primeiro se dedicou, a jamaicana. De resto, foram os seis milhões de cópias vendidas de My boy lollipop, versão açucarada de ska, cantada pela adolescente Millie, que permitiu a Blackwell destacar-se definitivamente no meio: "Aconteceu ao mesmo tempo que os Beatles apareciam e que este novo mundo explodia", explicou também ao Times. "Este êxito maciço significou que eu pertencia ao clube." Logo aí, a vontade de transformar o ska e o reggae, no mundo ocidental, em algo mais que curiosidade circunscrita à diáspora jamaicana.
Chris Blackwell já contou a história vezes sem conta. Em 1972, "The Harder They Come, um filme blaxploitation com centro em Kingston e com um dos nomes grandes do reggae, Jimmy Cliff, como protagonista, tornou-se um inusitado êxito de bilheteira. Blackwell sabia o que fazer em seguida. Apoiado nesse sucesso, bastaria "arrancar" Cliff à tela e atirar a personagem que interpretava, talentosa, trágica e insubmissa, para os palcos. Cliff, contudo, não quis esperar que o plano se concretizasse. Abandonou a Island e assinou pela EMI.
Dez dias depois, Blackwell deixou de lamentar a fuga. De passagem por Londres, um músico, já com carreira firmada na Jamaica mas desconhecido no exterior, entrava nos seus escritórios. Era "the real thing". Era Bob Marley. Conhecia a fama e o prestígio da Island e procurava nela uma casa estável para a carreira dos seus Wailers. Blackwell, por seu lado, viu em Marley o homem que conseguiria levar o reggae ao mundo. No próprio dia, ofereceu-lhe quatro mil libras para a gravação de um álbum. Na Island, julgaram que enlouquecera. Os Wailers tinham fama de rebeldes incontroláveis e a opinião geral era que fugiriam com o dinheiro.
Três meses depois, Blackwell estava na Jamaica para ouvir os resultados. Quando Bob Marley e os Wailers o conduziram ao estúdio, ouviu os primeiros segundos de Slave driver e entusiasmou-se. Antes de mais, porque Marley tinha realmente gravado um álbum. Depois, por sentir que seria aquela banda, liderada por aquele homem, a concretizar aquilo que ambicionava. Pegou nas fitas de gravação e levou-as até Inglaterra. Aí, juntamente com Bob Marley, acrescentou às canções os teclados e os solos de guitarra que, conhecedor profundo do cenário musical americano e britânico, julgava indispensáveis para que o público sintonizado no rock aderisse ao reggae - uma excepção à sua política de total liberdade criativa, fruto do seu empenhamento na carreira daquele que sabia poder tornar-se "uma estrela negra tão grande quanto Hendrix".
Mudar o mundo
Depois de um início de carreira internacional titubeante - fracas vendas mas sucesso crítico e uma resposta tremenda aos concertos -, Bob Marley transformar-se-ia na "primeira estrela pop do terceiro mundo", como foi então classificado, uma voz da consciência negra que iniciou a ascensão do reggae a expressão universal. Foi o músico que mais discos vendeu na história da Island.
Marley foi tão marcante no seu percurso que, na supracitada entrevista à Interview, Blackwell confessa que, após a morte daquele, em 1980, perdeu muito do seu interesse no trabalho. "Havia algo de muito excitante em Bob Marley, porque sabia que não era apenas sobre tabelas de vendas. Era, literalmente, sobre mudar o mundo novamente. E era incrivelmente excitante participar nisso, vê-lo acontecer e ajudar a conduzi-lo."
O Buick de PJ Harvey
Blackwell pode ter perdido muito do interesse, mas, como se sabe, manteve-se deveras activo. Depois da venda da Island à Polygram, continuou a trabalhar como executivo da empresa, assinando, por exemplo, os Pulp ou PJ Harvey. Esta, na última edição da revista musical britânica Word, conta uma história que atesta a relação particular de Chris Blackwell com os seus artistas.
Em 1995, durante uma temporada de afazeres promocionais a To bring you my love em Los Angeles, foi conduzida pela cidade num Buick Electra, modelo de 1962. PJ não perdia uma oportunidade para dizer o quanto adorava o automóvel, que pertencia a Blackwell. De regresso a Inglaterra, no dia do seu 25.º aniversário, os pais chamam-na ao jardim. "Há algo que acho que tens de ver." Lá estava, enviado de Los Angeles, o modelo de 1962. "De tempos a tempos - conta Polly Jean - envio-lhe [a Chris Blackwell] uma fotografia comigo no Buick, em Dorset, conduzindo pelas ruas."
Com 72 anos e afastado da indústria musical desde 1997 - "tornou-se demasiado corporativa", acusa -, Blackwell dedica-se ao desenvolvimento de resorts e instalações hoteleiras - um deles, um dos mais exclusivos da Jamaica, é o Goldeneye, criado na antiga mansão de Ian Fleming. Distinguido a 8 Abril pela Music Week, a revista da indústria musical britânica, como o mais influente executivo britânico dos últimos 50 anos, sente orgulho naquilo que a Island é e representa. Mas, relativamente às festividades anunciadas, confessou ao El País que, "na verdade, preferia que fossem mais íntimas e modestas". Chris Blackwell, recorde-se, não gostava de aparecer: todos os holofotes deviam recair exclusivamente sobre os artistas.
Num dos seus hotéis nas montanhas jamaicanas, o bar está decorado com os discos de ouro e platina que a Island acumulou ao longo dos anos. O objecto a que dá mais valor, contudo, é a pequena reprodução de uma foto. Mostra dois homens sorrindo e é a única que tem com Bob Marley.