Vamos pôr um crocodilo no telhado?
Há uma casa "morta por uma revolução", o que é uma pena "porque aquela casa destinava-se a existir - era uma casa escultórica, onde cada fachada tinha caras nas janelas e nas portas".
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Há uma casa "morta por uma revolução", o que é uma pena "porque aquela casa destinava-se a existir - era uma casa escultórica, onde cada fachada tinha caras nas janelas e nas portas".
Há uma outra que foi desenhada para um dentista, que "tinha uma senhora muito pinoca" que um dia declara que "a casa assim é uma maluquice e que quer uma casa quadrada, como é costume, uma caixa". O arquitecto baptizou o projecto como Mulher Habitável, lamenta que só tenha sido construída "até aos joelhos", e diz que estas e muitas outras casas que desenhou e construiu "causaram todas grande perturbação nas cidadezinhas onde eram construídas". E até "os colegas arquitectos ficavam muito aflitos porque estas casas mostravam que a arquitectura podia ser muito mais do que caixotes".
O arquitecto chama-se Amâncio d'Alpoim Miranda Guedes, mais conhecido como Pancho Guedes, nasceu em Lisboa em 1925, mudou-se muito pequeno para África, onde passou grande parte da vida, e tem agora a sua primeira - e muito aguardada, por aqueles que ao longo dos anos o foram "descobrindo" - retrospectiva em Portugal, no Museu Berardo, em Lisboa. Quase no final da visita guiada que faz pela exposição, Pancho volta-se para nós: "Está a ver como a arquitectura não tem que ser chata?"
Tínhamos acabado de percorrer grande parte das suas vidas e dos seus mundos. "Tudo depende do que se sonha", declara o arquitecto que diz ter 25 estilos - há, no Museu Berardo, exemplos do seu Stiloguedes, o mais carismático, mas também dos Espaços Torcidos e Revirados, da Elegante Arte de Curvar o Espaço, do estilo Américo-Egípcio, de Torres Temporárias e Fatias de Rua, de Escapadelas Neoclássicas, Palhotas e Palácios de Capim, Pedaços de Aldeia, Palácios Euclidianos, Pechinchas num Estilo Mato Tropical, e até de Caixotes de Prateleiras Habitáveis.
Pancho fez de tudo, sem se impor limites. "Nós não somos aquilo que se diz. Esta nossa civilização racional, lógica, matemática, não tem nada a ver connosco." Por isso, com Pancho cada edifício tem uma história, que ultrapassa em muito a arquitectura e que ele conta como se fosse uma brincadeira de crianças.
O Leão que Ri, por exemplo. O edifício, construído em 1958 na então Lourenço Marques (hoje Maputo), Moçambique, tornou-se o mais emblemático da obra de Pancho e ele próprio o assume como um momento especial. "Os meus desenhos e pinturas recentes no Stiloguedes tornaram-se autobiográficos, e sobretudo este edifício em particular, cujo corte pintei várias vezes, que identifico como sendo a minha casa, o meu túmulo, como sendo eu mesmo", escreve.
E, no entanto, no mesmo texto dessacraliza completamente a obra: "O desenho é do meu filho Pedro [Pedro Guedes, arquitecto e comissário desta exposição], quando era um rapazinho de seis anos. Viu-me desenhar o Leão que Ri e disse: 'Dada, não estás a fazer isso como deve ser. É assim que deve ser.' O desenho é realmente uma ideia para um edifício muito mais solto do que o que eu consegui fazer".
Tudo começou sempre com um desenho, conta o mesmo Pedro noutro texto do catálogo: "O desenho é o prisma através do qual Pancho percebe e cria os seus mundos [...] Quando era pequeno, achava esta maneira de trabalhar perfeitamente natural, uma vez que o escritório e o atelier de Pancho eram em casa e ele estava sempre a desenhar e a fazer a sua magia no papel para projectos que em breve ser tornariam noutra coisa, que iriam ocupar um lote de terreno na cidade, uma prateleira na nossa casa ou no jardim, ou se transformariam em mais um quadro pendurado numa das nossas paredes já preenchidas".
Machel devora a casa
Pancho sempre quis ser pintor. Tornou-se arquitecto, casou com Dori [Dorothy Ann Phillips], com quem viria a ter quatro filhos - "na universidade tive muitas namoradas, até que houve uma que me disse a verdade e casei com ela" - mas continuou sempre a pintar.
Estamos agora a passar em frente a um quadro em que [o antigo Presidente moçambicano] Samora Machel devora a casa em que Pancho e Dori viviam em Lourenço Marques - "já trincou o quarto da Dori e o atelier, e eu estou aqui a deitar-lhe a língua de fora". Mais à frente, noutro quadro, estamos dentro do carro com os dois, a caminho da aldeia de Eugaria, em Sintra, onde compraram duas casas, e vemos, pelo retrovisor lateral, a casa de Lourenço Marques e pelo central a de Joanesburgo (cidade onde viveram depois de deixaram Moçambique).
Pancho construiu muitas centenas de edifícios - casas, escolas, hospitais, bancos, igrejas - mas diz que desenhou muito mais do que construiu. "Esta é a cidade com sarampo [aponta para um mapa de Lourenço Marques cheio de pontinhos vermelhos], com todos os projectos que fiz, os que foram construídos e os que não foram, que são sempre os melhores."
Alguns dos seus projectos eram de tal maneira arrojados que assustavam os clientes (mas também tem tido "clientes estupendos, que são aqueles que fazem o que eu quero, mas que julgam que eu estou a fazer o que eles querem"). A certa altura, começou a ser reconhecido pelo Stiloguedes. "Não fui eu que inventei o nome. Foram as pessoas, que me diziam 'sabemos que o senhor faz umas plantas estupendas, mas não faça tanto estilo Guedes'. Eu peguei logo no nome."
Hoje considera como a sua "família real" esta "bizarra e fantástica família de edifícios com bicos e dentes, com vigas rasgando os espaços em redor, inventados como se algumas das partes estivessem prestes a separar-se e a estatelar-se no chão, com paredes convulsivas e luzes encastradas".
Mas, enquanto em África a obra de Pancho despertava paixões (e desde o início dos anos 60 na Europa também, sobretudo em Londres), em Portugal, onde vive actualmente, o arquitecto permaneceria praticamente ignorado ainda durante algumas décadas. "Aqui uma pessoa pode ser anónima. É estupendo funcionar num país em que sou o Guedes, o senhor Guedes."
O amigo Malangatana
"Nos anos 80 Pancho Guedes foi bastante apropriado pelos pós-modernistas", explica o arquitecto Pedro Gadanho, autor de um documentário sobre Pancho e comissário de uma exposição que esteve em 2007 no Museu de Arquitectura da Suíça, em Basileia. Foi nessa década (em 1985) que a revista "Arquitectura Portuguesa", dirigida por José Lamas, lhe dedicou um primeiro grande trabalho, intitulado "Vitruvius Mozambicanus: as vinte e cinco arquitecturas do excelente, bizarro e extraordinário Amâncio Guedes", e dois anos depois, em 87, a galeria lisboeta Cómicos convidou-o para apresentar uma exposição, "Da Invenção dos Templos e Outras Artes". "Mas a tendência que se veio a afirmar na arquitectura portuguesa foi avessa a uma figura como Pancho Guedes, que explorou outros caminhos e construiu em contra-corrente", explica Gadanho.
Claramente influenciado por Le Corbusier, Pancho é "modernista antes dos modernistas". Mas o que o torna especial é o facto de "explorar um estilo em função de cada circunstância". Além disso, sublinha ainda Gadanho, "Pancho liga-se a um imaginário local africano" - que, aliás, invade toda a exposição, onde a arquitectura surge no meio de referências tão importantes para ele como as cruzes Mbali, que recolheu em cemitérios abandonados, as portas Zambeze ou as máscaras Lomue, feitas pelo maior grupo étnico de Moçambique.
Foi esta paixão pela arte africana que o levou também a descobrir aquele que se tornou um dos seus melhores amigos, o pintor Malangatana. "Ele era o criado do bar do clube da elite em Moçambique [o Clube de Lourenço Marques]", conta Pancho. Um dia viu uma pintura dele, e perguntou-lhe se lhe vendia um quadro por mês e se aceitaria ir viver para casa dele.
A amizade dura até hoje e é para o amigo que Pancho projecta em 2002 a Fundação Malangatana, em Matelane. No topo do prédio, um crocodilo. "O Malangatana quando o viu queria fazer um clube nocturno, de forma que depois vamos fazer um cá em baixo, também em forma de crocodilo."
Actualmente, este é o único projecto que Pancho tem em vias de ser construído.
De resto, conta com o seu humor desconcertante, vive num arquipélago utópico, a Ecléctica, onde existe a ilha Petrolia (onde foi descoberto petróleo), a ilha Bancária (onde estão todos os bancos), e a ilha "onde vivem os filhos de família que foram estudar arte para Paris" e que é um sítio onde "só há pastelarias estupendas, e onde os bolos são construídos por arquitectos". É aí que habita, junto a uma cidade, Ruinata, em que cada arquitecto pode construir aquilo com que sonha - isto quando não está a desenhar bolos, claro.