João Bénard da Costa: Esta vida não acabou aqui

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João Bénard da Costa Miguel Madeira (arquivo)

Num dos muitos textos que escreveu para transmitir a paixão - por Rosselini, Mozart, Marlene, Marilyn, a Arrábida, Florença, Ticiano ou Proust -, João Bénard da Costa descreve Gary Cooper como o "homem com qualidades".

Mas talvez nenhuma outra expressão descreva melhor o próprio Bénard.
Antítese do homem indistinto, amoral e neutro, João Bénard da Costa foi, ao longo do último meio século, um homem de qualidades transbordantes, com a paixão dos que querem converter os outros.
Nascido num meio burguês católico, confortável e conservador, soube cedo que lado era o seu: o da oposição não comunista a Salazar. Mas ser convictamente não comunista não o impediu de lembrar o comunista Mário Dionísio como um primeiro mestre, nem de nos anos 60 ter ido a uma reunião clandestina na Borgonha para ouvir Álvaro Cunhal, arriscando a pele.

De resto - antes de O Tempo e o Modo, da secção de cinema da Gulbenkian e da direcção da Cinemateca Portuguesa terem feito dele uma referência vital para sucessivas gerações -, deu aulas no liceu, porque a ditadura o vetou para assistente da faculdade.
Em John Ford há "essas mortes serenas, essas mortes de homens que acreditavam totalmente na vida, no homem e em Deus", disse João Bénard da Costa em 1991, quando morreu Luís de Pina, então director da Cinemateca.

Como também ele, Bénard, acreditava "totalmente na vida, no homem e em Deus", vê-se no que fez, no que isso fez aos outros, e em tudo o que escreveu num português vintage de frase lançada, tão sumptuosa como ágil e cantabile.
Foi uma das qualidades melhor praticadas por este renascentista do século XX, a língua.
Se tivesse que viver uma vida além da sua, escolheria a de Federico de Montefeltro, senhor de Urbino e príncipe das humanidades, retratado de perfil e em carmim por Piero della Francesca.

Férias grandes

"Somos crianças feitas para grandes férias", escreveu Ruy Belo, que Bénard citava até quando parecia não dar por isso.
Nascido a 7 de Fevereiro de 1935 em Lisboa, João Pedro Bénard da Costa cresceu entre a casa lisboeta da Avenida António Augusto de Aguiar - que era o Inverno - e a casa que o seu avô paterno mandara construir para um filho tuberculoso, a Vila Raul, na Arrábida - que era o Verão.
Numa das suas crónicas "em busca do tempo perdido", conta Bénard: "A Arrábida aconteceu antes de eu acontecer. Não me lembro de mim sem me lembrar dela e vice-versa." Estava na história da família: "Meus tetravós tiveram irmãos que foram guardiãos do convento. Bisavós desciam do Barreiro, onde viviam, para lá passear, avós e pais passaram lá a lua-de-mel, quando, até fins dos anos 40, nenhuma estrada dava acesso à serra, só atingível a pé, de burro ou mula, ou, por mar."
E lá dentro eram matas de medronheiros, urzes e carvalhos, que ele se lembra de enfrentar, levado ao colo, na retirada das férias.

Quando o avô fizera a casa, só havia mais sete na serra e dez no Portinho, e durante a infância de Bénard pouco mudou. "Puxadas as redes, à noite, os pescadores vinham vender salmonetes e linguados vivos." Dos Casais chegavam as mulheres "com os figos ainda molhados", maçãs reinetas, correio, jornal e o pão fresco "com que no dia seguinte se faziam as melhores torradas do mundo". Havia "a guerra no mundo e a descalma suave na Arrábida".

E "não havia luz eléctrica (não a houve até aos anos 80), não havia água canalizada (não a houve até ao ano 2000)". Parecia ser essa a forma de estar na Arrábida: "Alumiávamo-nos a petróleo e a estearina, bebíamos água das cisternas."
Isto, a 40 quilómetros de Lisboa. "O melhor peixe do mundo, as lapas profundas e escuras, na serra e no mar, capelas e fontes, atalhos infindáveis, caminhos de cabras e de raros conhecedores." O tempo passava como se "nada de mal" lhes pudesse acontecer, a ele e aos próximos, "todos seguros da amizade dos rochedos e das matas, das ermidas e dos túmulos jacentes".
E, "ao fim de dois meses de férias, ia tudo de volta" à cidade e à luz eléctrica, gente, tapetes, pratas e os filmes contados durante o jejum cinematográfico, que na casa da serra nada havia. Tudo o que lá ficava era "o cheiro único da madeira molhada e da roupa engomada".

Vista de Lisboa, a II Guerra começou por ser uma "angústia horrorosa", em que Bénard "chorava todos os dias", julgando que podia não ver mais a mãe (entrevista à revista Pública, 2001). Isto, porque o pai achou que Hitler ia invadir a Península e mandou-o com os três irmãos para um tio em Portimão.
Já de regresso à capital, houve o dia em que o pai - um anglófono - o acordou, porque os ingleses afinal iam ganhar. E houve o dia em que ganharam mesmo: "Grandes manifestações em Lisboa, toda a gente com as bandeirinhas americanas, inglesas. Lembro-me que nesse dia apanhei o primeiro pifo da minha vida." Graças a uns polacos eufóricos que lhe deram de beber.

Durante a primária, João Bénard da Costa "passava a vida nos museus, sabia imenso de História, não sei quantos poemas de cor", "adorava conversar com adultos" e, aos 11, 12 anos, começou a ir várias vezes por semana ao cinema, com cadernos para tomar notas.
Já no liceu, era bom aluno em letras, mas "péssimo em ciências" e "uma coisa horrorosa" em desenho. "Até ao quinto ano foi uma desgraça e no quinto ano chumbei. Foi o pior ano de toda a minha vida. Passei em letras, tive que repetir ciências. E voltei a chumbar, com dois valores em Desenho. Foi o desespero total."
Tiveram que pedir anulação da prova de Desenho ao ministro.

Amigos para a vida

Mas a partir do 6º e 7º anos tornou-se mais que bom aluno e acabou o liceu com média de 18. "Uma mudança total, era outra pessoa."
Lia muito, incluindo a Vértice, onde escreviam Mário Dionísio e Óscar Lopes, estudava filosofia, ouvia ópera. Chegou a tentar Direito três meses, mas detestou. Mudou-se para Histórico-Filosóficas, o que "foi muito mal recebido na família, um choque".

Os seus primeiros grandes amigos vêm deste tempo: Pedro Tamen, Nuno Bragança, M. S. Lourenço, José Escada, Alberto Vaz da Silva. "Um grupo muito ligado, com uma grande mística das grandes amizades, para a vida e para a morte. Víamo-nos todos os dias."
Juntos estarão também no Centro Cultural de Cinema, o cineclube que Bénard dirige entre 1957 e 1960, e além deles Nuno Portas, Manuel de Lucena, Francisco Sarsfield Cabral ou Paulo Rocha. Faziam as sessões no Jardim Cinema e no Roma, as grandes paixões eram Rosselini e Bresson - e, ao mesmo tempo, Bénard ainda dirigia a Juventude Universitária Católica.

1958 é o ano em que casa com Ana Maria Toscano (em breve será pai do primeiro de quatro filhos), começa a ir a Paris (onde verá os Pasolinis, Buñuels e Eisensteins proibidos), se empenha na campanha de Humberto Delgado (durante a qual D. António Ferreira Gomes denuncia a violência do regime) e assina manifestos católicos como "uma carta ao Salazar sobre as torturas da PIDE" (e por isso ficará persona non grata para a via académica).
Termina a licenciatura em 1959, com uma tese sobre o filósofo católico Emmanuel Mounier, crítico do poder colonial e da ortodoxia, que dirigia a revista Esprit e inspirava muitos daqueles crentes inquietos.
"Éramos, notoriamente, filhos incomodados da burguesia católica nacional que, ao mesmo tempo, nos tinha dado os meios para viver comodamente e os ideais para que isso fosse uma incomodidade", lembrou António Alçada Baptista (O Independente, 1990).

Foi quando Bénard conheceu Alçada que surgiu a ideia de uma revista e até de viver em comunidade. "Estava tudo tratado, fizemos solenemente esse pacto, chamava-se mesmo 'Pacto'. Chegámos a ter um terreno para construir casas. Tudo inventado pelo Alçada. A ideia era vivermos todos da mesma coisa, de uma editora - a Livraria Moraes - e da revista."
E em 1963 sai o primeiro número de O Tempo e o Modo, com Alçada director, Bénard chefe de redacção, e textos de Jorge Sampaio e Mário Soares.

Mas para isso acontecer, houve debates inspirados por orações sobre se deveriam acolher socialistas e contestários estudantis de 1962. E "foi com uma ave-maria que entrou o Mário Soares", contou Bénard (DNa, 1997).
Mas as grandes discussões "eram artísticas". Bénard tinha de lutar por Agustina, considerada reaccionária, já para não falar de Pound e Céline.
Reuniam-se em casa de João Paes - António Pedro Vasconcelos, Gérard Castello-Lopes, Nuno Bragança, João Bénard - e passavam uma noite a discutir Les Parapluies de Cherbourg, para depois reproduzirem a gravação em O Tempo e o Modo.
E ao núcleo duro da revista veio juntar-se, como subchefe de redacção, Vasco Pulido Valente, que Bénard conhecera em 1963, e de quem ficou amigo para a vida.

Os 101

Fortalecidos pela doutrina de João XXIII na encíclica Pacem in Terris, 101 católicos portugueses assinam em 1965 um manifesto a contestar a guerra colonial. Perguntam ao regime por que "se recusa a confrontar, a dialogar e responde com a afirmação do ódio, o insulto e a repressão aos que ousam expor soluções diversas". Entre eles estão Francisco Sousa Tavares, Sophia de Mello Breyner, Gonçalo Ribeiro Telles, Lindley Cintra, Ruy Belo, Alçada Baptista e João Bénard.
"A partir daí, qualquer emprego público foi-me recusado", contou Bénard (DNa, 1997).

E em Maio de 68 saiu da Igreja Católica. Não gostou de "ver o Papa e Salazar na televisão, guardados por tipos da PIDE" (Pública, 2001), e essa imagem juntava-se a todo um processo. Acreditara numa comunidade em movimento e a Igreja era a imobilidade. "Um pensamento institucional, uma obediência ou ter que dizer o que me era soprado de cima, não."
Institucional e obediente não era certamente a edição de O Tempo e o Modo sobre o casamento, com textos a favor do amor livre e citações de Sade. Ou a edição sobre Deus, onde escreveram Eduardo Lourenço, Nuno Brederode Santos, Jaime Gama, Alfredo Barroso.

Em 1969, Bénard candidata-se a deputado pela lista da CDE, com Jorge Sampaio e Lindley Cintra. É a altura em que está mais à esquerda e aceita ir ao encontro clandestino organizado pelo PCP na Borgonha - onde, com repulsa, ouve Álvaro Cunhal aprovar a invasão da Checoslováquia. "Se se soubesse cá que eu tinha estado numa reunião com o Cunhal no exílio, eram uns aninhos de cadeia e de tortura" (Pública, 2001). "Vivi com esse espectro durante muito tempo, a ideia de que se tocassem às seis da manhã não era o leiteiro de certeza."
Sabia que "no dia em que houvesse democracia deixaria a actividade política", mas até lá tinha que "estar na luta". Não para ganhar eleições, mas para mostrar que não havia medo de falar.

Entretanto, Alçada perdia dinheiro na Moraes e O Tempo e o Modo era uma "amante cara". Bénard propôs uma sociedade por quotas, ficou como director e abriu mais à esquerda, a embriões do MRPP. Passaram-se "seis meses bons" e depois começaram as discussões. A ruptura deu-se quando os maoístas, liderados por Amadeu Lopes Sabino, quiseram arrasar um livro de António José Saraiva sobre o Maio de 68. Bénard opôs-se, foram a votos, ele perdeu e saiu.
Muitos anos depois ainda dirá que lhe custou "muito".
A boa notícia é que o regime vacilava. Numa das suas surtidas parisienses, Bénard lê no Monde que Salazar caiu da cadeira. E tão incrédulo fica que compra outro exemplar do jornal para ter a certeza de que é verdade.

Chegado o 25 de Abril de 1974, integra o Movimento de Esquerda Socialista (MES), com Jorge Sampaio, César de Oliveira, Nuno Portas. Depois, votou PS e fez parte de campanhas, mas nunca teve cartão.
Não tinha paciência.
Quando em 1995 lhe perguntaram que político mais admirava, escolheu Nelson Mandela.

Música ao longe
E cinema?

Claro que João Bénard da Costa foi sempre um cinefils, um filho do cinema. Os pais iam ver filmes todos os sábados, uma prima anotava-os, toda a gente lhe contava enredos, e ele próprio começou cedo a ir sozinho.
Mas a "cinefilia aguda" só se desenvolve a partir de 1969. "O cinema, até entrar para a Gulbenkian, não tem um lugar muito importante na minha vida. É uma coisa de que gosto muito, como de literatura, pintura ou música, sobre a qual escrevo ocasionalmente, mas não é exclusiva - até é relativamente marginal nos anos 60, uma música ao longe."
O que acontece em 1969 é que Bénard vai organizar a secção de cinema no serviço de belas-artes da Gulbenkian, com ciclos que hão-de marcar milhares de espectadores.

Que os havia, e muitos, nesse Portugal de interditos, provou-se logo na primeira sessão, em 1973, com Roma, Cidade Aberta apresentada pelo próprio Rosselini. Em cima da hora a censura ainda quis actuar, mas conteve-se por o realizador já estar em Lisboa. Tendo dormido e até ressonado na sessão - porque detestava rever os próprios filmes -, Rosselini acordou com uma ovação de dez minutos, entre gritos de "Abaixo o fascismo!" e "Liberdade! Liberdade!" Henri Langlois, o mítico director da Cinemateca Francesa, estava lá, e viu nessa explosão a emergência do 25 de Abril.

Foi também nesse ano que João Bénard começou a ensinar Cinema no Conservatório. Só deixou de dar aulas em 1980, quando - a convite de Vasco Pulido Valente, então secretário de Estado da Cultura - entrou para a Cinemateca Portuguesa como subdirector. Em 1991, sucedeu a Luís de Pina na direcção, até hoje.
Ao todo são quase 30 anos de trabalho que, além de criarem o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, fizeram da casa lisboeta uma parceira de Paris, Bruxelas, Madrid, Lausanne ou Helsínquia em inúmeros ciclos, capaz de trazer cineastas como Claude Chabrol ou Jean-Marie Straub e de cruzar na programação actores, fotógrafos, artistas plásticos ou escritores.

O que Bénard escreveu em livros, catálogos e incontáveis "folhas-de-sala" - sobre Buñuel, Lang, Sternberg, Hawks, Ray, Hitchcock, Mizoguchi, Dreyer, Renoir, Oliveira, Buñuel, Capra, Godard, Bergman, Lynch, Cronenberg ou César Monteiro - representou para muita gente toda uma nova possibilidade de ver cinema, e dentro dele a infinita possibilidade humana.
Depois, nos anos 90 de O Independente, esse universo fundiu-se com a própria vida de Bénard em crónicas que alternavam Os Meus Filmes da Vida com Os Filmes da Minha Vida.

Quem, entre os que o leram, não sabe como se apaixonou por Esther Williams ou Alida Valli (e Gene Tierney?, e Anna Karina?, e a Isabella que Ingrid Bergman teve com Rosselini?)
Quem consegue pensar em Johnny Guitar sem pensar em João Johnny Bénard (que sobre este filme mil vezes disse "Porque era ele, porque sou eu")?
Como Godard, Bénard acreditava que não há o mais belo dos filmes, porque 100, 300 ou 500 são, naquele momento, o mais belo dos filmes.
E amou carnalmente os actores, aqueles que fazem acontecer o inexplicável de cada vez que aparecem, e cuja existência "não se parece com a de mais ninguém".
Foi ele próprio actor, sob o pseudónimo de Duarte de Almeida e a direcção sobretudo de Oliveira, mesmo sabendo "desde o princípio" que "não era actor".
Em 2001 contava já 21 filmes, e não ficaria por aí.

Educar o gosto

Talvez só um crente possa criar êxtase, e foi assim que João Bénard da Costa escreveu sobre o tudo e tanto que sabia em permanente jogo omnívoro - não como um crítico, que sempre disse não ser -, mas como quem amava a arte porque amava a vida. Queria ser arrebatado, saber e deixar de saber.
Acreditava em dar "testemunho do que vai durar contra o que parece que está para durar". Acreditava em convencer "quem eu quero que goste tanto como eu gosto" e, "se possível, goste como eu gosto". E parecia-lhe perda de tempo escrever sobre aquilo de que convictamente não gostava - "o mundo do audiovidual" ou "a arte para o público", Orozco ou Rivera, cinema inglês género Stephen Frears ou o eixo contemporâneo Hong Kong-Taiwan.

Sendo assim "uma pessoa muito apaixonada e extrema", era inevitável que o conflito surgisse "mais tarde ou mais cedo" (entrevista ao DNa). Como se viu por algumas reacções, quando lhe foi atribuído o Prémio Pessoa, em 2001.
"E ele aceitou?", foi a pergunta do realizador José Fonseca e Costa, que considerou o "galardão demasiado importante para quem tão pouco fez". António-Pedro Vasconcelos aproveitou a ocasião para dizer que Bénard era o "arauto de uma visão nefasta do cinema". E nos últimos tempos foram-se manifestando incompatibilidades na Cinemateca.
Em 2005, José Manuel Costa - um histórico da casa, grande especialista em preservação do património cinematográfico e o organizador do ANIM (Arquivo Nacional das Imagens em Movimento) - demitiu-se de membro da direcção.

Dois anos antes, o programador Nuno Sena - hoje director do festival Indie Lisboa - demitira-se por achar que não havia espaço para o que queria fazer.
A Cinemateca é "excessivamente conservadora" e tem de ser "refrescada", defendeu Sena no Ípsilon, a propósito dos 50 anos da instituição, em 2008, considerando que não só "é possível mostrar filmes velhos de uma maneira nova", como "falta uma atenção à contemporaneidade e um cruzamento do cinema com as outras expressões artísticas".
Entrevistado no mesmo número, Bénard admitiu esse seu "dirigismo" como parte de "uma certa educação de gosto", mas recusou que a insistência em filmes antigos fosse um problema: "Ninguém considera Bach muito antigo. Ou Dante, Homero." E deu exemplos de cineastas "seus" nas últimas décadas: Lynch, Scorsese, Coppola, Malick, Kiarostami, Shyamalan, Sokurov.

Já estava então com 73 anos, no prolongamento de uma licença especial para continuar na Cinemateca além da idade da reforma.
Em Abril de 2006, três meses antes dessa licença expirar, João Bénard da Costa disse que corria o risco de "ser abatido no activo", e começou a circular um abaixo-assinado pela sua continuação encabeçado por Pedro Costa, que ao fim do primeiro dia já tinha 300 assinaturas. A então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, acabou por recuar, renovando a licença especial.
Quando José António Pinto Ribeiro a substituiu, a primeira nomeação que fez foi a de Pedro Mexia, o subdirector que João Bénard da Costa quis, e foi buscar fora.
Depois, a criação de um pólo da Cinemateca no Porto deu origem a uma discórdia. Bénard era contra, o ministro era a favor - e decidiu em conformidade.

Vida e morte

A "cinefilia aguda" não afastou João Bénard da Costa de todas as outras formas que lhe eram vitais. Está tudo lá, literatura, arte, música, no que escreveu, e na forma como falava dos filmes - como os via.
Porque a criação humana era "uma forma de nos defendermos contra a morte e uma forma de compensação diante do terror que a vida inspira" (DN, 2005).
Em 1976 ouviu todo o Mozart por ordem cronológica. Foi a seguir a isso que viu o irrepetível Saló de Pasolini, e por isso viu nele o que mais ninguém viu.

Quantas vezes citou Proust? Tantas que já não o identificava. As frases apareciam como lhe tinham ficado na cabeça, Proust, Proust e Proust, porque "tudo o que há para aprender se aprende com ele".
Mas nos seus textos também vão e vêm Ruy Belo e Sophia, poetas do seu tempo e "muito lá de casa". Outros tão diferentes como Nemésio ou Cesariny - a propósito, imagine-se, de Cyd Charisse. Ou Emily Brontë a propósito de James Mason, "a voz".

E já depois dos 70 anos ainda se deixou fascinar por Cristina Campo, essa italiana "heteronímica", que terá uma arca "tão vasta como a de Pessoa", escreveu nas crónicas do PÚBLICO.
Muitos destes textos mais recentes foram peregrinações pelo seu cânone de pintores (Ticiano, Rubens, Piero della Francesca, Fragonard, Van der Weyden, Matisse, Rafael). Pelos lugares eleitos ("em Florença devia ter nascido, em Nova Iorque devia ter vivido, na Arrábida nasci e vivi"). Ou por Bolonha, onde costumava passar a primeira semana de Julho, cidade de Bentivoglios e Bevilacquas, menosprezada por turistas, apesar dos frescos, dos oratórios, das piazzas e da gastronomia. Um sossego.
Comia bem, fumava três maços de SG Gigante por dia (nos últimos tempos, Marlboro lights) e nunca deixou de rezar. Durante muito tempo achou que ia morrer no ano 2000, aos 65 anos. Sabia que não havia céu com anjos de nuvem em nuvem ou caldeirões com diabos a picarem. "Mas acredito que esta vida não pode acabar aqui: nada faria sentido, para mim, se assim fosse."

Quando lhe perguntaram qual era a sua maior esperança para o futuro, respondeu: "Conhecer Deus." Assim seja.

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Num dos muitos textos que escreveu para transmitir a paixão - por Rosselini, Mozart, Marlene, Marilyn, a Arrábida, Florença, Ticiano ou Proust -, João Bénard da Costa descreve Gary Cooper como o "homem com qualidades".

Mas talvez nenhuma outra expressão descreva melhor o próprio Bénard.
Antítese do homem indistinto, amoral e neutro, João Bénard da Costa foi, ao longo do último meio século, um homem de qualidades transbordantes, com a paixão dos que querem converter os outros.
Nascido num meio burguês católico, confortável e conservador, soube cedo que lado era o seu: o da oposição não comunista a Salazar. Mas ser convictamente não comunista não o impediu de lembrar o comunista Mário Dionísio como um primeiro mestre, nem de nos anos 60 ter ido a uma reunião clandestina na Borgonha para ouvir Álvaro Cunhal, arriscando a pele.

De resto - antes de O Tempo e o Modo, da secção de cinema da Gulbenkian e da direcção da Cinemateca Portuguesa terem feito dele uma referência vital para sucessivas gerações -, deu aulas no liceu, porque a ditadura o vetou para assistente da faculdade.
Em John Ford há "essas mortes serenas, essas mortes de homens que acreditavam totalmente na vida, no homem e em Deus", disse João Bénard da Costa em 1991, quando morreu Luís de Pina, então director da Cinemateca.

Como também ele, Bénard, acreditava "totalmente na vida, no homem e em Deus", vê-se no que fez, no que isso fez aos outros, e em tudo o que escreveu num português vintage de frase lançada, tão sumptuosa como ágil e cantabile.
Foi uma das qualidades melhor praticadas por este renascentista do século XX, a língua.
Se tivesse que viver uma vida além da sua, escolheria a de Federico de Montefeltro, senhor de Urbino e príncipe das humanidades, retratado de perfil e em carmim por Piero della Francesca.

Férias grandes

"Somos crianças feitas para grandes férias", escreveu Ruy Belo, que Bénard citava até quando parecia não dar por isso.
Nascido a 7 de Fevereiro de 1935 em Lisboa, João Pedro Bénard da Costa cresceu entre a casa lisboeta da Avenida António Augusto de Aguiar - que era o Inverno - e a casa que o seu avô paterno mandara construir para um filho tuberculoso, a Vila Raul, na Arrábida - que era o Verão.
Numa das suas crónicas "em busca do tempo perdido", conta Bénard: "A Arrábida aconteceu antes de eu acontecer. Não me lembro de mim sem me lembrar dela e vice-versa." Estava na história da família: "Meus tetravós tiveram irmãos que foram guardiãos do convento. Bisavós desciam do Barreiro, onde viviam, para lá passear, avós e pais passaram lá a lua-de-mel, quando, até fins dos anos 40, nenhuma estrada dava acesso à serra, só atingível a pé, de burro ou mula, ou, por mar."
E lá dentro eram matas de medronheiros, urzes e carvalhos, que ele se lembra de enfrentar, levado ao colo, na retirada das férias.

Quando o avô fizera a casa, só havia mais sete na serra e dez no Portinho, e durante a infância de Bénard pouco mudou. "Puxadas as redes, à noite, os pescadores vinham vender salmonetes e linguados vivos." Dos Casais chegavam as mulheres "com os figos ainda molhados", maçãs reinetas, correio, jornal e o pão fresco "com que no dia seguinte se faziam as melhores torradas do mundo". Havia "a guerra no mundo e a descalma suave na Arrábida".

E "não havia luz eléctrica (não a houve até aos anos 80), não havia água canalizada (não a houve até ao ano 2000)". Parecia ser essa a forma de estar na Arrábida: "Alumiávamo-nos a petróleo e a estearina, bebíamos água das cisternas."
Isto, a 40 quilómetros de Lisboa. "O melhor peixe do mundo, as lapas profundas e escuras, na serra e no mar, capelas e fontes, atalhos infindáveis, caminhos de cabras e de raros conhecedores." O tempo passava como se "nada de mal" lhes pudesse acontecer, a ele e aos próximos, "todos seguros da amizade dos rochedos e das matas, das ermidas e dos túmulos jacentes".
E, "ao fim de dois meses de férias, ia tudo de volta" à cidade e à luz eléctrica, gente, tapetes, pratas e os filmes contados durante o jejum cinematográfico, que na casa da serra nada havia. Tudo o que lá ficava era "o cheiro único da madeira molhada e da roupa engomada".

Vista de Lisboa, a II Guerra começou por ser uma "angústia horrorosa", em que Bénard "chorava todos os dias", julgando que podia não ver mais a mãe (entrevista à revista Pública, 2001). Isto, porque o pai achou que Hitler ia invadir a Península e mandou-o com os três irmãos para um tio em Portimão.
Já de regresso à capital, houve o dia em que o pai - um anglófono - o acordou, porque os ingleses afinal iam ganhar. E houve o dia em que ganharam mesmo: "Grandes manifestações em Lisboa, toda a gente com as bandeirinhas americanas, inglesas. Lembro-me que nesse dia apanhei o primeiro pifo da minha vida." Graças a uns polacos eufóricos que lhe deram de beber.

Durante a primária, João Bénard da Costa "passava a vida nos museus, sabia imenso de História, não sei quantos poemas de cor", "adorava conversar com adultos" e, aos 11, 12 anos, começou a ir várias vezes por semana ao cinema, com cadernos para tomar notas.
Já no liceu, era bom aluno em letras, mas "péssimo em ciências" e "uma coisa horrorosa" em desenho. "Até ao quinto ano foi uma desgraça e no quinto ano chumbei. Foi o pior ano de toda a minha vida. Passei em letras, tive que repetir ciências. E voltei a chumbar, com dois valores em Desenho. Foi o desespero total."
Tiveram que pedir anulação da prova de Desenho ao ministro.

Amigos para a vida

Mas a partir do 6º e 7º anos tornou-se mais que bom aluno e acabou o liceu com média de 18. "Uma mudança total, era outra pessoa."
Lia muito, incluindo a Vértice, onde escreviam Mário Dionísio e Óscar Lopes, estudava filosofia, ouvia ópera. Chegou a tentar Direito três meses, mas detestou. Mudou-se para Histórico-Filosóficas, o que "foi muito mal recebido na família, um choque".

Os seus primeiros grandes amigos vêm deste tempo: Pedro Tamen, Nuno Bragança, M. S. Lourenço, José Escada, Alberto Vaz da Silva. "Um grupo muito ligado, com uma grande mística das grandes amizades, para a vida e para a morte. Víamo-nos todos os dias."
Juntos estarão também no Centro Cultural de Cinema, o cineclube que Bénard dirige entre 1957 e 1960, e além deles Nuno Portas, Manuel de Lucena, Francisco Sarsfield Cabral ou Paulo Rocha. Faziam as sessões no Jardim Cinema e no Roma, as grandes paixões eram Rosselini e Bresson - e, ao mesmo tempo, Bénard ainda dirigia a Juventude Universitária Católica.

1958 é o ano em que casa com Ana Maria Toscano (em breve será pai do primeiro de quatro filhos), começa a ir a Paris (onde verá os Pasolinis, Buñuels e Eisensteins proibidos), se empenha na campanha de Humberto Delgado (durante a qual D. António Ferreira Gomes denuncia a violência do regime) e assina manifestos católicos como "uma carta ao Salazar sobre as torturas da PIDE" (e por isso ficará persona non grata para a via académica).
Termina a licenciatura em 1959, com uma tese sobre o filósofo católico Emmanuel Mounier, crítico do poder colonial e da ortodoxia, que dirigia a revista Esprit e inspirava muitos daqueles crentes inquietos.
"Éramos, notoriamente, filhos incomodados da burguesia católica nacional que, ao mesmo tempo, nos tinha dado os meios para viver comodamente e os ideais para que isso fosse uma incomodidade", lembrou António Alçada Baptista (O Independente, 1990).

Foi quando Bénard conheceu Alçada que surgiu a ideia de uma revista e até de viver em comunidade. "Estava tudo tratado, fizemos solenemente esse pacto, chamava-se mesmo 'Pacto'. Chegámos a ter um terreno para construir casas. Tudo inventado pelo Alçada. A ideia era vivermos todos da mesma coisa, de uma editora - a Livraria Moraes - e da revista."
E em 1963 sai o primeiro número de O Tempo e o Modo, com Alçada director, Bénard chefe de redacção, e textos de Jorge Sampaio e Mário Soares.

Mas para isso acontecer, houve debates inspirados por orações sobre se deveriam acolher socialistas e contestários estudantis de 1962. E "foi com uma ave-maria que entrou o Mário Soares", contou Bénard (DNa, 1997).
Mas as grandes discussões "eram artísticas". Bénard tinha de lutar por Agustina, considerada reaccionária, já para não falar de Pound e Céline.
Reuniam-se em casa de João Paes - António Pedro Vasconcelos, Gérard Castello-Lopes, Nuno Bragança, João Bénard - e passavam uma noite a discutir Les Parapluies de Cherbourg, para depois reproduzirem a gravação em O Tempo e o Modo.
E ao núcleo duro da revista veio juntar-se, como subchefe de redacção, Vasco Pulido Valente, que Bénard conhecera em 1963, e de quem ficou amigo para a vida.

Os 101

Fortalecidos pela doutrina de João XXIII na encíclica Pacem in Terris, 101 católicos portugueses assinam em 1965 um manifesto a contestar a guerra colonial. Perguntam ao regime por que "se recusa a confrontar, a dialogar e responde com a afirmação do ódio, o insulto e a repressão aos que ousam expor soluções diversas". Entre eles estão Francisco Sousa Tavares, Sophia de Mello Breyner, Gonçalo Ribeiro Telles, Lindley Cintra, Ruy Belo, Alçada Baptista e João Bénard.
"A partir daí, qualquer emprego público foi-me recusado", contou Bénard (DNa, 1997).

E em Maio de 68 saiu da Igreja Católica. Não gostou de "ver o Papa e Salazar na televisão, guardados por tipos da PIDE" (Pública, 2001), e essa imagem juntava-se a todo um processo. Acreditara numa comunidade em movimento e a Igreja era a imobilidade. "Um pensamento institucional, uma obediência ou ter que dizer o que me era soprado de cima, não."
Institucional e obediente não era certamente a edição de O Tempo e o Modo sobre o casamento, com textos a favor do amor livre e citações de Sade. Ou a edição sobre Deus, onde escreveram Eduardo Lourenço, Nuno Brederode Santos, Jaime Gama, Alfredo Barroso.

Em 1969, Bénard candidata-se a deputado pela lista da CDE, com Jorge Sampaio e Lindley Cintra. É a altura em que está mais à esquerda e aceita ir ao encontro clandestino organizado pelo PCP na Borgonha - onde, com repulsa, ouve Álvaro Cunhal aprovar a invasão da Checoslováquia. "Se se soubesse cá que eu tinha estado numa reunião com o Cunhal no exílio, eram uns aninhos de cadeia e de tortura" (Pública, 2001). "Vivi com esse espectro durante muito tempo, a ideia de que se tocassem às seis da manhã não era o leiteiro de certeza."
Sabia que "no dia em que houvesse democracia deixaria a actividade política", mas até lá tinha que "estar na luta". Não para ganhar eleições, mas para mostrar que não havia medo de falar.

Entretanto, Alçada perdia dinheiro na Moraes e O Tempo e o Modo era uma "amante cara". Bénard propôs uma sociedade por quotas, ficou como director e abriu mais à esquerda, a embriões do MRPP. Passaram-se "seis meses bons" e depois começaram as discussões. A ruptura deu-se quando os maoístas, liderados por Amadeu Lopes Sabino, quiseram arrasar um livro de António José Saraiva sobre o Maio de 68. Bénard opôs-se, foram a votos, ele perdeu e saiu.
Muitos anos depois ainda dirá que lhe custou "muito".
A boa notícia é que o regime vacilava. Numa das suas surtidas parisienses, Bénard lê no Monde que Salazar caiu da cadeira. E tão incrédulo fica que compra outro exemplar do jornal para ter a certeza de que é verdade.

Chegado o 25 de Abril de 1974, integra o Movimento de Esquerda Socialista (MES), com Jorge Sampaio, César de Oliveira, Nuno Portas. Depois, votou PS e fez parte de campanhas, mas nunca teve cartão.
Não tinha paciência.
Quando em 1995 lhe perguntaram que político mais admirava, escolheu Nelson Mandela.

Música ao longe
E cinema?

Claro que João Bénard da Costa foi sempre um cinefils, um filho do cinema. Os pais iam ver filmes todos os sábados, uma prima anotava-os, toda a gente lhe contava enredos, e ele próprio começou cedo a ir sozinho.
Mas a "cinefilia aguda" só se desenvolve a partir de 1969. "O cinema, até entrar para a Gulbenkian, não tem um lugar muito importante na minha vida. É uma coisa de que gosto muito, como de literatura, pintura ou música, sobre a qual escrevo ocasionalmente, mas não é exclusiva - até é relativamente marginal nos anos 60, uma música ao longe."
O que acontece em 1969 é que Bénard vai organizar a secção de cinema no serviço de belas-artes da Gulbenkian, com ciclos que hão-de marcar milhares de espectadores.

Que os havia, e muitos, nesse Portugal de interditos, provou-se logo na primeira sessão, em 1973, com Roma, Cidade Aberta apresentada pelo próprio Rosselini. Em cima da hora a censura ainda quis actuar, mas conteve-se por o realizador já estar em Lisboa. Tendo dormido e até ressonado na sessão - porque detestava rever os próprios filmes -, Rosselini acordou com uma ovação de dez minutos, entre gritos de "Abaixo o fascismo!" e "Liberdade! Liberdade!" Henri Langlois, o mítico director da Cinemateca Francesa, estava lá, e viu nessa explosão a emergência do 25 de Abril.

Foi também nesse ano que João Bénard começou a ensinar Cinema no Conservatório. Só deixou de dar aulas em 1980, quando - a convite de Vasco Pulido Valente, então secretário de Estado da Cultura - entrou para a Cinemateca Portuguesa como subdirector. Em 1991, sucedeu a Luís de Pina na direcção, até hoje.
Ao todo são quase 30 anos de trabalho que, além de criarem o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, fizeram da casa lisboeta uma parceira de Paris, Bruxelas, Madrid, Lausanne ou Helsínquia em inúmeros ciclos, capaz de trazer cineastas como Claude Chabrol ou Jean-Marie Straub e de cruzar na programação actores, fotógrafos, artistas plásticos ou escritores.

O que Bénard escreveu em livros, catálogos e incontáveis "folhas-de-sala" - sobre Buñuel, Lang, Sternberg, Hawks, Ray, Hitchcock, Mizoguchi, Dreyer, Renoir, Oliveira, Buñuel, Capra, Godard, Bergman, Lynch, Cronenberg ou César Monteiro - representou para muita gente toda uma nova possibilidade de ver cinema, e dentro dele a infinita possibilidade humana.
Depois, nos anos 90 de O Independente, esse universo fundiu-se com a própria vida de Bénard em crónicas que alternavam Os Meus Filmes da Vida com Os Filmes da Minha Vida.

Quem, entre os que o leram, não sabe como se apaixonou por Esther Williams ou Alida Valli (e Gene Tierney?, e Anna Karina?, e a Isabella que Ingrid Bergman teve com Rosselini?)
Quem consegue pensar em Johnny Guitar sem pensar em João Johnny Bénard (que sobre este filme mil vezes disse "Porque era ele, porque sou eu")?
Como Godard, Bénard acreditava que não há o mais belo dos filmes, porque 100, 300 ou 500 são, naquele momento, o mais belo dos filmes.
E amou carnalmente os actores, aqueles que fazem acontecer o inexplicável de cada vez que aparecem, e cuja existência "não se parece com a de mais ninguém".
Foi ele próprio actor, sob o pseudónimo de Duarte de Almeida e a direcção sobretudo de Oliveira, mesmo sabendo "desde o princípio" que "não era actor".
Em 2001 contava já 21 filmes, e não ficaria por aí.

Educar o gosto

Talvez só um crente possa criar êxtase, e foi assim que João Bénard da Costa escreveu sobre o tudo e tanto que sabia em permanente jogo omnívoro - não como um crítico, que sempre disse não ser -, mas como quem amava a arte porque amava a vida. Queria ser arrebatado, saber e deixar de saber.
Acreditava em dar "testemunho do que vai durar contra o que parece que está para durar". Acreditava em convencer "quem eu quero que goste tanto como eu gosto" e, "se possível, goste como eu gosto". E parecia-lhe perda de tempo escrever sobre aquilo de que convictamente não gostava - "o mundo do audiovidual" ou "a arte para o público", Orozco ou Rivera, cinema inglês género Stephen Frears ou o eixo contemporâneo Hong Kong-Taiwan.

Sendo assim "uma pessoa muito apaixonada e extrema", era inevitável que o conflito surgisse "mais tarde ou mais cedo" (entrevista ao DNa). Como se viu por algumas reacções, quando lhe foi atribuído o Prémio Pessoa, em 2001.
"E ele aceitou?", foi a pergunta do realizador José Fonseca e Costa, que considerou o "galardão demasiado importante para quem tão pouco fez". António-Pedro Vasconcelos aproveitou a ocasião para dizer que Bénard era o "arauto de uma visão nefasta do cinema". E nos últimos tempos foram-se manifestando incompatibilidades na Cinemateca.
Em 2005, José Manuel Costa - um histórico da casa, grande especialista em preservação do património cinematográfico e o organizador do ANIM (Arquivo Nacional das Imagens em Movimento) - demitiu-se de membro da direcção.

Dois anos antes, o programador Nuno Sena - hoje director do festival Indie Lisboa - demitira-se por achar que não havia espaço para o que queria fazer.
A Cinemateca é "excessivamente conservadora" e tem de ser "refrescada", defendeu Sena no Ípsilon, a propósito dos 50 anos da instituição, em 2008, considerando que não só "é possível mostrar filmes velhos de uma maneira nova", como "falta uma atenção à contemporaneidade e um cruzamento do cinema com as outras expressões artísticas".
Entrevistado no mesmo número, Bénard admitiu esse seu "dirigismo" como parte de "uma certa educação de gosto", mas recusou que a insistência em filmes antigos fosse um problema: "Ninguém considera Bach muito antigo. Ou Dante, Homero." E deu exemplos de cineastas "seus" nas últimas décadas: Lynch, Scorsese, Coppola, Malick, Kiarostami, Shyamalan, Sokurov.

Já estava então com 73 anos, no prolongamento de uma licença especial para continuar na Cinemateca além da idade da reforma.
Em Abril de 2006, três meses antes dessa licença expirar, João Bénard da Costa disse que corria o risco de "ser abatido no activo", e começou a circular um abaixo-assinado pela sua continuação encabeçado por Pedro Costa, que ao fim do primeiro dia já tinha 300 assinaturas. A então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, acabou por recuar, renovando a licença especial.
Quando José António Pinto Ribeiro a substituiu, a primeira nomeação que fez foi a de Pedro Mexia, o subdirector que João Bénard da Costa quis, e foi buscar fora.
Depois, a criação de um pólo da Cinemateca no Porto deu origem a uma discórdia. Bénard era contra, o ministro era a favor - e decidiu em conformidade.

Vida e morte

A "cinefilia aguda" não afastou João Bénard da Costa de todas as outras formas que lhe eram vitais. Está tudo lá, literatura, arte, música, no que escreveu, e na forma como falava dos filmes - como os via.
Porque a criação humana era "uma forma de nos defendermos contra a morte e uma forma de compensação diante do terror que a vida inspira" (DN, 2005).
Em 1976 ouviu todo o Mozart por ordem cronológica. Foi a seguir a isso que viu o irrepetível Saló de Pasolini, e por isso viu nele o que mais ninguém viu.

Quantas vezes citou Proust? Tantas que já não o identificava. As frases apareciam como lhe tinham ficado na cabeça, Proust, Proust e Proust, porque "tudo o que há para aprender se aprende com ele".
Mas nos seus textos também vão e vêm Ruy Belo e Sophia, poetas do seu tempo e "muito lá de casa". Outros tão diferentes como Nemésio ou Cesariny - a propósito, imagine-se, de Cyd Charisse. Ou Emily Brontë a propósito de James Mason, "a voz".

E já depois dos 70 anos ainda se deixou fascinar por Cristina Campo, essa italiana "heteronímica", que terá uma arca "tão vasta como a de Pessoa", escreveu nas crónicas do PÚBLICO.
Muitos destes textos mais recentes foram peregrinações pelo seu cânone de pintores (Ticiano, Rubens, Piero della Francesca, Fragonard, Van der Weyden, Matisse, Rafael). Pelos lugares eleitos ("em Florença devia ter nascido, em Nova Iorque devia ter vivido, na Arrábida nasci e vivi"). Ou por Bolonha, onde costumava passar a primeira semana de Julho, cidade de Bentivoglios e Bevilacquas, menosprezada por turistas, apesar dos frescos, dos oratórios, das piazzas e da gastronomia. Um sossego.
Comia bem, fumava três maços de SG Gigante por dia (nos últimos tempos, Marlboro lights) e nunca deixou de rezar. Durante muito tempo achou que ia morrer no ano 2000, aos 65 anos. Sabia que não havia céu com anjos de nuvem em nuvem ou caldeirões com diabos a picarem. "Mas acredito que esta vida não pode acabar aqui: nada faria sentido, para mim, se assim fosse."

Quando lhe perguntaram qual era a sua maior esperança para o futuro, respondeu: "Conhecer Deus." Assim seja.