A noite em que a dança mudou para sempre

Foto
Tamara Karsavina e Michel Fokine, em Pássaro de Fogo sua época, em Pássaro de Fogo sua época, no caso com o DR

Ida Rubenstein andava pelas festas a usar lírios como taça de champanhe e pelas ruas com uma pantera à trela como animal de estimação. Isso mais a fama sobre a técnica de uma certa Anna Pavlova e ainda todas as conversas de bastidores sobre um jovem prodígio chamado Vaslav Nijinsky que dançava em pontas como as mulheres e cujos saltos no ar pareciam desafiar todas as leis da gravidade: na Primavera de 1909 Paris não podia fervilhar mais de rumores em volta do extraordinário grupo de bailarinos reunido pelo não menos extraordinário Sergei Diaghilev, com todo o seu charme, sagacidade e high connections.

Os dois primeiros momentos: 18 de Maio, considerado por muitos como o dia do nascimento da companhia, quando um crítico do Figaro anunciou que a cidade se preparava para assistir a um dos melhores espectáculos de sempre; e, depois, a noite de 19 de Maio, quando os Ballets Russes subiram pela primeira vez ao palco do Théâtre du Châtelet e viram na plateia toute la Paris, um verdadeiro quem é quem.

Ministros e alguns dos maiores anfitriões e mecenas da arte do momento, mas também artistas tão conhecidos como Isadora Duncan, Maurice Ravel, Feodor Chaliapin, Auguste Rodin e Coco Chanel: a dança como hoje a concebemos nasceu em grande medida a partir do sucesso que foi a primeira noite transformada em 20 anos de actividade consecutiva da primeira grande companhia de dança independente do mundo. Sem os Ballets Russes o século XX teria arrancado sem conhecer a palavra coreógrafo, sem pensar no ballet como uma forma de arte russa e sem a ideia de que criadores de várias áreas, da música às artes plásticas, podiam sentar-se a trabalhar juntos para um mesmo fim.

Picasso, Matisse, Braque, Miró, Dalí, Stravinsky, Satie, Cocteau - todos colaboraram com eles: com os Ballet Russes, o desafio da Gesamtkunstwerk, a ideia da obra de arte total que Richard Wagner lançara para a ópera meio século antes florescia na dança e preparava o terreno para que décadas depois pudéssemos vir a conhecer nomes como Lucinda Childs, Trisha Brown, Merce Cunningham e Pina Bausch.
"Os Ballets Russes transformaram o ballet numa forma de arte moderna e vital", resume a investigadora norte-americana Lynn Garafola. "A ideia de que o estilo pode ser transformado, que não tem que ser a "Bela Adormecida" ou o "Lago dos Cisnes" como o [Marius] Petipa estava a fazer [na Rússia do século XIX], a ideia de que o ballet pode basear-se na expressão corporal e incluir a ideia de pesquisa, de procura de novas formas, que deve estar ligado à contemporaneidade, qualquer que ela seja, a ideia de que uma companhia não é um museu", nasce às mãos de Sergei Diaghilev, conclui esta especialista.

Professora de Dança no Barnard College, da Universidade de Colúmbia, Garafola, que já publicou vários livros sobre o papel desta companhia, é também a organizadora e mais aguardada oradora do painel de debates e conferências com cerca de 30 especialistas internacionais da semana de celebração do centenário dos Ballets Russes que hoje arranca em Boston. De Boston a Sydney, passando por Londres, Paris e Moscovo, ao longo dos próximos meses os Ballets Russes estão de volta aos palcos de dezenas de cidades. Em Lisboa, a Companhia Nacional de Bailado só divulga a totalidade da sua programação de 2009 em Julho, mas tem anunciado para o fim do mês "Fauno", um trabalho de Vasco Wellenkamp a partir de "Prelúdio à Tarde de Um Fauno", uma das mais polémicas e emblemáticas peças dos Ballets Russes, criada e dançada pela primeira vez em 1912 por Nijinsky e frequentemente apontada como o verdadeiro momento de arranque da modernidade na dança.

Um deus

Em 1912 Nijinsky tinha 23 anos e depois de duas temporadas nos palcos de Paris transformara-se numa espécie de jovem deus, o bailarino que conseguia o extraordinário feito de se imobilizar no ar, com toda a elegância, em pleno salto - "É só subir e parar um bocadinho lá em cima", costumava dizer sobre o que era na verdade uma complexa técnica de batimento de pés. Elegante e sensual, fisicamente, Nijinsky era o oposto de Diaghilev, 18 anos mais velho e uma figura rotunda que ficaria imortalizada de monóculo e grande bigode lustroso. E, contudo, os dois tornaram-se rapidamente amantes depois de se conhecerem em São Petersburgo em 1908.

Apesar de ser uma tese constestada, segundo muitos especialistas - e é a opinião do investigador holandês Sjeng Scheijen, que no ano passado teve acesso a nova documentação em russo - a homossexualidade foi o verdadeiro motivo por detrás do exílio parisiense de Diaghilev. A origem de tudo.

Vindo de uma família próspera de Selishi, Diaghilev chegou a São Petersburgo como estudante de Direito, acabando, contudo, por nunca exercer. Próximo de alguns dos mais vanguardistas círculos artísticos locais, tornou-se fundador da revista Mir Iskusstva (Mundo da Arte), entre outros com o crítico e historiador Alexandre Benois e o artista plástico Léon Bakst. Foi a partir da sua actividade na revista que em 1899 se tornou consultor dos Teatros Imperiais, quando aproximou da dança e conheceu Marius Petipa no Mariinsky, o mesmo teatro onde sete anos depois acabaria por se cruzar com Nijinsky.

"Apesar de raramente chegar a ser julgada, muito menos entre as elites, a homossexualidade na Rússia era proibida. Diaghilev sabia que as suas hipóteses de alguma vez chegar aos Teatros Imperiais [como director] eram pequenas", diz Sjeng Scheijen, que sublinha que as seis semanas que Diaghilev passou na clínica do psiquiatra Richard von Krafft-Ebing, visto por muitos como o pai da sexualidade moderna, foram o seu verdadeiro "come out". "À época as pessoas eram muito intolerantes face à homossexualidade, que consideravam um problema moral. Talvez de todas as cidades Paris fosse a mais tolerante", diz este investigador.

Em 1908 Diaghilev apresenta-se então em Paris com uma exposição de arte e música russa. O cartão-de-visita que faz com que fique convidado para voltar no ano seguinte com um programa de dança e ópera. Foi Alexandre Benois que o aconselhou a fazer a noite como ela seria a 19 de Maio, com três propostas: "Le Pavillon d'Armide", uma peça de um acto com coreografia de Mikhail Fokine, música de Nikolai Tcherepnin e libreto do próprio Benois, seguida pelas partes de bailado da ópera Príncipe Igor e, por fim, a suite de danças Le Festin. A triple bill, o programa nocturno de variedades em três partes que seria a norma dos vinte anos de actividade dos Ballets Russes, com as suas mais de 50 produções, e que cairia em desuso apenas nos anos 1960, com o ressurgimento das noites de uma só peça longa, uma suposta novidade que regressava, na verdade, à ideia oitocentista de programa de dança. "É o quão profunda foi a influência do Diaghilev", diz Millicent Hodson, coreógrafa e historiadora que, com o marido, Kenneth Archer, também historiador, tem vindo a investigar o período dos Ballets Russes e a reconstruir o seu legado para grandes companhias internacionais. "O Diaghilev faz da programação uma forma de arte. Torna-se num artista de outro tipo, um novo tipo." Um tipo que "usa os coreógrafos como instrumentos da sua visão artística", sublinha Lynn Garafola. Isto, por eras, à medida que esses coreógrafos se vão alternando.

Trabalhos tão conhecidos como "As Sílfides", "Sherazade", "Pássaro de Fogo", "Petrushka", "O Espectro da Rosa" ou "Dafne e Chloé" foram a era Fokine dos Ballets Russes, de 1909 a 1914. Uma era rasgada em 1912 por essa explosão de erotismo e polémica que foi o "Prelúdio à Tarde de Um Fauno", a primeira experiência coreográfica de Nijinsky e a imagem do que Diaghilev imaginava que devia ser a dança do seu tempo, mais longe do cânone, menos estilizada e infinitamente mais explícita e provocadora do que o erotismo subtil proposto por Fokine, tingido pela paixão das danças populares russas e as inspirações orientalistas populares entre as vanguardas artísticas da altura.

De ambiente primitivista e apelando a uma energia animal, "Fauno" partia do poema sinfónico homónimo que Claude Debussy compusera inspirado num poema de Mallarmé. Centrava-se no encontro e jogos de sedução entre um fauno e um grupo de ninfas, acabando com Nijinsky a simular uma cena de masturbação com um lenço perdido por uma das ninfas em fuga. Um choque para o público médio da época, com a peça acusada de obscenidade, apesar de defendida por nomes como Rodin, Odilon Redon e Marcel Proust.
"Somos testemunhas de um momento seminal da história, em nome de uma nova e desconhecida cultura que nós mesmos vamos criar e que vai também arrebatar-nos", dissera Diaghilev em São Petersburgo em 1905. Uma década e meia depois diria: "O classicismo, como tudo o resto, evolui. Os arranha-céus têm o seu próprio classicismo, são lugares do nosso tempo. O classicismo é um meio - mas não um fim."

Depois da polémica provocada por "Prelúdio", no ano seguinte Nijinsky volta com nova obra, porventura o mais célebre de entre os trabalhos célebres dos Ballets Russes: "A Sagração da Primavera", desta vez com uma das colaborações históricas entre os Ballets Russes e os artistas da sua época, no caso com o compositor Igor Stravinsky, a assinar nesse momento um trabalho seminal do século XX. Uma partitura rítmica complexa e fora de tudo o que se praticava à época, cheia de dissonâncias, assimetrias e politonalidades. Isto em articulação com uma peça supostamente inspirada em antigos ritos russos de fertilidade - sacrifícios humanos incluídos - em que o movimento, de novo de inspiração primitivista, de novo abertamente sexualizado, se fazia de ângulos inesperados do corpo e gestos sincopados, interrompidos, sacudidos. A polémica à volta de "Fauno" foi nada, comparada com o escândalo de "Sagração", incluindo um quase motim na plateia que tornou a peça mundialmente famosa. Um bónus, no fundo, para aquela que seria a primeira grande companhia verdadeiramente internacional, com temporadas em cidades como Londres e Nova Iorque.

Críticas em Lisboa

A Lisboa os Ballets Russes chegaram em Dezembro de 1917, apresentando oito espectáculos no Coliseu e dois no Teatro Nacional de São Carlos, enquanto Diaghilev procurava novos contratos em Espanha, para tentar salvar a companhia que, com a guerra, estava a financiar praticamente sozinho. O rei Alfonso de Espanha acabaria por se tornar num dos seus mecenas, mas, em Portugal, segundo um levantamento feito pela Companhia Olga Roriz, a crítica não foi favorável ao que os Ballets Russes tinham para oferecer. De todos os espectáculos, e ainda segundo o levantamento feito por esta companhia portuguesa, o que mais perturbação causou terá sido "O Sol da Meia-Noite", assinado por Léonide Massine, o coreógrafo da companhia entre 1915 e 1921 e o novo amante de Diaghilev, depois do casamento de Nijinsky com Romola Pulszky, uma condessa húngara que conhecera durante uma rara digressão em que não fora acompanhado por Diaghilev - o fim da sua relação com a companhia.

Sobre o "Sol da Meia-Noite", em Portugal, escrever-se-ia: "Uma fantasia de manicómio, indiscutivelmente caricatural. O impenetrável simbolismo deste bailado causa espanto. Espécie de ode futurista, concebida por farsantes e dançada por malucos, esta peça de baile interessa pelo imprevisto ineditismo dos seus processos, pelo contorcionismo alvar a que obriga os seus intérpretes e pela originalidade dos seus trajes. O cenário não vale nada." Vivia-se, precisamente, o ano da publicação do único número da revista Portugal Futurista, apreendida pela polícia à porta da tipografia - as figuras de Arlequim e Columbina ficariam, contudo, na obra gráfica de Almada Negreiros, inspirado por Carnaval, uma das peças que os Ballets Russes apresentaram em Lisboa naquele que foi também o ano em que a companhia juntou para a "Parade" o compositor Erick Satie (música) com Jean Cocteau (libreto) e Pablo Picasso (cenários e figurinos).

É conhecida a admiração por Satie do compositor John Cage, que, a partir dos anos 1940, começaria a trabalhar com o seu companheiro, o coreógrafo Merce Cunningham. A dissonância por vezes extrema entre música, figurinos e movimento que introduziram nas suas obras até princípio dos anos 1990 surge, no fundo, como ressonância do legado dos Ballets Russes e da reinterpretação total do que o corpo podia ser e fazer em palco, não só como presença individual, em que cada bailarino é ao mesmo tempo solista e elo do conjunto composto por todos os corpos e todos os restantes elementos constituintes da obra. Era também o legado dos Ballets Russes que Trisha Brown tinha atrás de si quando, em finais dos anos 1970, começou as suas famosas colaborações com artistas plásticos como Robert Rauschenberg.
"Acho que cada vez mais as pessoas se apercebem que a abertura e a pluralidade dos Ballets Russes foram fundamentais", sublinha John Bowlt, um dos dois comissários da primeira grande exposição deste ano sobre a companhia e a primeira alguma vez organizada na Rússia, onde os Ballets Russes, ironicamente, acabariam por nunca actuar. Diaghilev, diz este curador, apercebeu-se como ninguém do fim de uma era social e do arranque de outra: "Os seus Ballets foram uma belíssima flor que emergiu da velha sociedade. Um elemento extático, mas também trágico do ocaso de uma forma de vida informado pela I Guerra Mundial e a Revolução e tornado celebração orgiástica do futuro e do poder criativo."

Revolução nos figurinos

"Antes dos Ballets Russes, o que havia nos grandes teatros era equipas de artesãos, equipas que faziam as roupas de mulher, outras as de homens, artesãos especializados em pintar cenários com cenas de montanha, outros com cenas de água... Nunca se tinham convidado verdadeiros artistas para pensar nas peças", diz Lynn Garafola. "Aquilo a que chamamos figurinos eram, na verdade, pequenas variações dos tutus convencionais", acrescenta Sarah Woodcock, ex-curadora de dança do museu Victoria and Albert de Londres, que guarda uma das maiores colecções de figurinos da companhia: "É imaginar, de repente, o corte total com o convencionalismo e ver entrar em palco peças absolutamente extravagantes feitas com tecidos maravilhosos e a forma como todas as cores se conjugam em cena a ter sido realmente pensada por alguém."

Isso ou o mesmo efeito surpresa pelo caminho oposto: a mesma especialista refere, como exemplo, os extraordinários figurinos de "Sagração da Primavera", com incómodos apliques de osso sobre peças de lã, a ficar quentes, molhadas e pesadas sob a luzes e a condicionar o movimento do corpo. "À maioria dos que estão no Victoria and Albert faltam ossos. Suponho que tenham sido os bailarinos a tirá-los", diz a rir.
Foi nos anos 1910. Com o arranque dos anos 1920 a sexualidade primitivista dava vez à coqueterie e às ambiguidades sexuais, no tom mais satírico de peças como "Les Noces" ou "Les Biches", esta última com a sua Anfitriã de boquilha comprida e com fiadas de pérolas ao pescoço, no que ficaria reconhecido como o estilo da época. Coreografia de Bronislava Nijinska, a irmã mais nova de Vaslav, que, depois de dez anos com Diaghilev, assinava as suas primeiras criações, sucedida em 1926 por Georges Balanchine, o último grande coreógrafo da companhia, prestes a dissolver-se inesperadamente.

Foi em Agosto de 1929: Diaghilev, que nos anos mais recentes vinha mantendo relações não exclusivas com o compositor Igor Markevitch e com dois dos seus bailarinos - o inglês Anton Dolin e o russo Serge Lifar -, morre repentinamente na sua cidade preferida, Veneza, onde é enterrado. Os Ballets Russes desmantelaram-se quase de imediato, dando origem a companhias em cidades como Monte Carlo e Nova Iorque.
"Os Ballets Russes", diz Lynn Garafola, "foram uma dádiva enorme do Diaghilev": "Foi todo o seu tempo, o seu dinheiro, a sua dor."
Muitas fontes históricas referem as por vezes extremas dificuldades financeiras do grande mentor da companhia, a viver para o próximo pagamento, com roupas de corte impecável, mas muitas vezes puídas.
Ao rei Alfonso de Espanha, que, baralhado, lhe perguntou um dia qual o seu papel no meio de toda a actividade da companhia, Diaghilev terá respondido: "Majestade, sou como você. Não faço nada, mas sou indispensável."

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Ida Rubenstein andava pelas festas a usar lírios como taça de champanhe e pelas ruas com uma pantera à trela como animal de estimação. Isso mais a fama sobre a técnica de uma certa Anna Pavlova e ainda todas as conversas de bastidores sobre um jovem prodígio chamado Vaslav Nijinsky que dançava em pontas como as mulheres e cujos saltos no ar pareciam desafiar todas as leis da gravidade: na Primavera de 1909 Paris não podia fervilhar mais de rumores em volta do extraordinário grupo de bailarinos reunido pelo não menos extraordinário Sergei Diaghilev, com todo o seu charme, sagacidade e high connections.

Os dois primeiros momentos: 18 de Maio, considerado por muitos como o dia do nascimento da companhia, quando um crítico do Figaro anunciou que a cidade se preparava para assistir a um dos melhores espectáculos de sempre; e, depois, a noite de 19 de Maio, quando os Ballets Russes subiram pela primeira vez ao palco do Théâtre du Châtelet e viram na plateia toute la Paris, um verdadeiro quem é quem.

Ministros e alguns dos maiores anfitriões e mecenas da arte do momento, mas também artistas tão conhecidos como Isadora Duncan, Maurice Ravel, Feodor Chaliapin, Auguste Rodin e Coco Chanel: a dança como hoje a concebemos nasceu em grande medida a partir do sucesso que foi a primeira noite transformada em 20 anos de actividade consecutiva da primeira grande companhia de dança independente do mundo. Sem os Ballets Russes o século XX teria arrancado sem conhecer a palavra coreógrafo, sem pensar no ballet como uma forma de arte russa e sem a ideia de que criadores de várias áreas, da música às artes plásticas, podiam sentar-se a trabalhar juntos para um mesmo fim.

Picasso, Matisse, Braque, Miró, Dalí, Stravinsky, Satie, Cocteau - todos colaboraram com eles: com os Ballet Russes, o desafio da Gesamtkunstwerk, a ideia da obra de arte total que Richard Wagner lançara para a ópera meio século antes florescia na dança e preparava o terreno para que décadas depois pudéssemos vir a conhecer nomes como Lucinda Childs, Trisha Brown, Merce Cunningham e Pina Bausch.
"Os Ballets Russes transformaram o ballet numa forma de arte moderna e vital", resume a investigadora norte-americana Lynn Garafola. "A ideia de que o estilo pode ser transformado, que não tem que ser a "Bela Adormecida" ou o "Lago dos Cisnes" como o [Marius] Petipa estava a fazer [na Rússia do século XIX], a ideia de que o ballet pode basear-se na expressão corporal e incluir a ideia de pesquisa, de procura de novas formas, que deve estar ligado à contemporaneidade, qualquer que ela seja, a ideia de que uma companhia não é um museu", nasce às mãos de Sergei Diaghilev, conclui esta especialista.

Professora de Dança no Barnard College, da Universidade de Colúmbia, Garafola, que já publicou vários livros sobre o papel desta companhia, é também a organizadora e mais aguardada oradora do painel de debates e conferências com cerca de 30 especialistas internacionais da semana de celebração do centenário dos Ballets Russes que hoje arranca em Boston. De Boston a Sydney, passando por Londres, Paris e Moscovo, ao longo dos próximos meses os Ballets Russes estão de volta aos palcos de dezenas de cidades. Em Lisboa, a Companhia Nacional de Bailado só divulga a totalidade da sua programação de 2009 em Julho, mas tem anunciado para o fim do mês "Fauno", um trabalho de Vasco Wellenkamp a partir de "Prelúdio à Tarde de Um Fauno", uma das mais polémicas e emblemáticas peças dos Ballets Russes, criada e dançada pela primeira vez em 1912 por Nijinsky e frequentemente apontada como o verdadeiro momento de arranque da modernidade na dança.

Um deus

Em 1912 Nijinsky tinha 23 anos e depois de duas temporadas nos palcos de Paris transformara-se numa espécie de jovem deus, o bailarino que conseguia o extraordinário feito de se imobilizar no ar, com toda a elegância, em pleno salto - "É só subir e parar um bocadinho lá em cima", costumava dizer sobre o que era na verdade uma complexa técnica de batimento de pés. Elegante e sensual, fisicamente, Nijinsky era o oposto de Diaghilev, 18 anos mais velho e uma figura rotunda que ficaria imortalizada de monóculo e grande bigode lustroso. E, contudo, os dois tornaram-se rapidamente amantes depois de se conhecerem em São Petersburgo em 1908.

Apesar de ser uma tese constestada, segundo muitos especialistas - e é a opinião do investigador holandês Sjeng Scheijen, que no ano passado teve acesso a nova documentação em russo - a homossexualidade foi o verdadeiro motivo por detrás do exílio parisiense de Diaghilev. A origem de tudo.

Vindo de uma família próspera de Selishi, Diaghilev chegou a São Petersburgo como estudante de Direito, acabando, contudo, por nunca exercer. Próximo de alguns dos mais vanguardistas círculos artísticos locais, tornou-se fundador da revista Mir Iskusstva (Mundo da Arte), entre outros com o crítico e historiador Alexandre Benois e o artista plástico Léon Bakst. Foi a partir da sua actividade na revista que em 1899 se tornou consultor dos Teatros Imperiais, quando aproximou da dança e conheceu Marius Petipa no Mariinsky, o mesmo teatro onde sete anos depois acabaria por se cruzar com Nijinsky.

"Apesar de raramente chegar a ser julgada, muito menos entre as elites, a homossexualidade na Rússia era proibida. Diaghilev sabia que as suas hipóteses de alguma vez chegar aos Teatros Imperiais [como director] eram pequenas", diz Sjeng Scheijen, que sublinha que as seis semanas que Diaghilev passou na clínica do psiquiatra Richard von Krafft-Ebing, visto por muitos como o pai da sexualidade moderna, foram o seu verdadeiro "come out". "À época as pessoas eram muito intolerantes face à homossexualidade, que consideravam um problema moral. Talvez de todas as cidades Paris fosse a mais tolerante", diz este investigador.

Em 1908 Diaghilev apresenta-se então em Paris com uma exposição de arte e música russa. O cartão-de-visita que faz com que fique convidado para voltar no ano seguinte com um programa de dança e ópera. Foi Alexandre Benois que o aconselhou a fazer a noite como ela seria a 19 de Maio, com três propostas: "Le Pavillon d'Armide", uma peça de um acto com coreografia de Mikhail Fokine, música de Nikolai Tcherepnin e libreto do próprio Benois, seguida pelas partes de bailado da ópera Príncipe Igor e, por fim, a suite de danças Le Festin. A triple bill, o programa nocturno de variedades em três partes que seria a norma dos vinte anos de actividade dos Ballets Russes, com as suas mais de 50 produções, e que cairia em desuso apenas nos anos 1960, com o ressurgimento das noites de uma só peça longa, uma suposta novidade que regressava, na verdade, à ideia oitocentista de programa de dança. "É o quão profunda foi a influência do Diaghilev", diz Millicent Hodson, coreógrafa e historiadora que, com o marido, Kenneth Archer, também historiador, tem vindo a investigar o período dos Ballets Russes e a reconstruir o seu legado para grandes companhias internacionais. "O Diaghilev faz da programação uma forma de arte. Torna-se num artista de outro tipo, um novo tipo." Um tipo que "usa os coreógrafos como instrumentos da sua visão artística", sublinha Lynn Garafola. Isto, por eras, à medida que esses coreógrafos se vão alternando.

Trabalhos tão conhecidos como "As Sílfides", "Sherazade", "Pássaro de Fogo", "Petrushka", "O Espectro da Rosa" ou "Dafne e Chloé" foram a era Fokine dos Ballets Russes, de 1909 a 1914. Uma era rasgada em 1912 por essa explosão de erotismo e polémica que foi o "Prelúdio à Tarde de Um Fauno", a primeira experiência coreográfica de Nijinsky e a imagem do que Diaghilev imaginava que devia ser a dança do seu tempo, mais longe do cânone, menos estilizada e infinitamente mais explícita e provocadora do que o erotismo subtil proposto por Fokine, tingido pela paixão das danças populares russas e as inspirações orientalistas populares entre as vanguardas artísticas da altura.

De ambiente primitivista e apelando a uma energia animal, "Fauno" partia do poema sinfónico homónimo que Claude Debussy compusera inspirado num poema de Mallarmé. Centrava-se no encontro e jogos de sedução entre um fauno e um grupo de ninfas, acabando com Nijinsky a simular uma cena de masturbação com um lenço perdido por uma das ninfas em fuga. Um choque para o público médio da época, com a peça acusada de obscenidade, apesar de defendida por nomes como Rodin, Odilon Redon e Marcel Proust.
"Somos testemunhas de um momento seminal da história, em nome de uma nova e desconhecida cultura que nós mesmos vamos criar e que vai também arrebatar-nos", dissera Diaghilev em São Petersburgo em 1905. Uma década e meia depois diria: "O classicismo, como tudo o resto, evolui. Os arranha-céus têm o seu próprio classicismo, são lugares do nosso tempo. O classicismo é um meio - mas não um fim."

Depois da polémica provocada por "Prelúdio", no ano seguinte Nijinsky volta com nova obra, porventura o mais célebre de entre os trabalhos célebres dos Ballets Russes: "A Sagração da Primavera", desta vez com uma das colaborações históricas entre os Ballets Russes e os artistas da sua época, no caso com o compositor Igor Stravinsky, a assinar nesse momento um trabalho seminal do século XX. Uma partitura rítmica complexa e fora de tudo o que se praticava à época, cheia de dissonâncias, assimetrias e politonalidades. Isto em articulação com uma peça supostamente inspirada em antigos ritos russos de fertilidade - sacrifícios humanos incluídos - em que o movimento, de novo de inspiração primitivista, de novo abertamente sexualizado, se fazia de ângulos inesperados do corpo e gestos sincopados, interrompidos, sacudidos. A polémica à volta de "Fauno" foi nada, comparada com o escândalo de "Sagração", incluindo um quase motim na plateia que tornou a peça mundialmente famosa. Um bónus, no fundo, para aquela que seria a primeira grande companhia verdadeiramente internacional, com temporadas em cidades como Londres e Nova Iorque.

Críticas em Lisboa

A Lisboa os Ballets Russes chegaram em Dezembro de 1917, apresentando oito espectáculos no Coliseu e dois no Teatro Nacional de São Carlos, enquanto Diaghilev procurava novos contratos em Espanha, para tentar salvar a companhia que, com a guerra, estava a financiar praticamente sozinho. O rei Alfonso de Espanha acabaria por se tornar num dos seus mecenas, mas, em Portugal, segundo um levantamento feito pela Companhia Olga Roriz, a crítica não foi favorável ao que os Ballets Russes tinham para oferecer. De todos os espectáculos, e ainda segundo o levantamento feito por esta companhia portuguesa, o que mais perturbação causou terá sido "O Sol da Meia-Noite", assinado por Léonide Massine, o coreógrafo da companhia entre 1915 e 1921 e o novo amante de Diaghilev, depois do casamento de Nijinsky com Romola Pulszky, uma condessa húngara que conhecera durante uma rara digressão em que não fora acompanhado por Diaghilev - o fim da sua relação com a companhia.

Sobre o "Sol da Meia-Noite", em Portugal, escrever-se-ia: "Uma fantasia de manicómio, indiscutivelmente caricatural. O impenetrável simbolismo deste bailado causa espanto. Espécie de ode futurista, concebida por farsantes e dançada por malucos, esta peça de baile interessa pelo imprevisto ineditismo dos seus processos, pelo contorcionismo alvar a que obriga os seus intérpretes e pela originalidade dos seus trajes. O cenário não vale nada." Vivia-se, precisamente, o ano da publicação do único número da revista Portugal Futurista, apreendida pela polícia à porta da tipografia - as figuras de Arlequim e Columbina ficariam, contudo, na obra gráfica de Almada Negreiros, inspirado por Carnaval, uma das peças que os Ballets Russes apresentaram em Lisboa naquele que foi também o ano em que a companhia juntou para a "Parade" o compositor Erick Satie (música) com Jean Cocteau (libreto) e Pablo Picasso (cenários e figurinos).

É conhecida a admiração por Satie do compositor John Cage, que, a partir dos anos 1940, começaria a trabalhar com o seu companheiro, o coreógrafo Merce Cunningham. A dissonância por vezes extrema entre música, figurinos e movimento que introduziram nas suas obras até princípio dos anos 1990 surge, no fundo, como ressonância do legado dos Ballets Russes e da reinterpretação total do que o corpo podia ser e fazer em palco, não só como presença individual, em que cada bailarino é ao mesmo tempo solista e elo do conjunto composto por todos os corpos e todos os restantes elementos constituintes da obra. Era também o legado dos Ballets Russes que Trisha Brown tinha atrás de si quando, em finais dos anos 1970, começou as suas famosas colaborações com artistas plásticos como Robert Rauschenberg.
"Acho que cada vez mais as pessoas se apercebem que a abertura e a pluralidade dos Ballets Russes foram fundamentais", sublinha John Bowlt, um dos dois comissários da primeira grande exposição deste ano sobre a companhia e a primeira alguma vez organizada na Rússia, onde os Ballets Russes, ironicamente, acabariam por nunca actuar. Diaghilev, diz este curador, apercebeu-se como ninguém do fim de uma era social e do arranque de outra: "Os seus Ballets foram uma belíssima flor que emergiu da velha sociedade. Um elemento extático, mas também trágico do ocaso de uma forma de vida informado pela I Guerra Mundial e a Revolução e tornado celebração orgiástica do futuro e do poder criativo."

Revolução nos figurinos

"Antes dos Ballets Russes, o que havia nos grandes teatros era equipas de artesãos, equipas que faziam as roupas de mulher, outras as de homens, artesãos especializados em pintar cenários com cenas de montanha, outros com cenas de água... Nunca se tinham convidado verdadeiros artistas para pensar nas peças", diz Lynn Garafola. "Aquilo a que chamamos figurinos eram, na verdade, pequenas variações dos tutus convencionais", acrescenta Sarah Woodcock, ex-curadora de dança do museu Victoria and Albert de Londres, que guarda uma das maiores colecções de figurinos da companhia: "É imaginar, de repente, o corte total com o convencionalismo e ver entrar em palco peças absolutamente extravagantes feitas com tecidos maravilhosos e a forma como todas as cores se conjugam em cena a ter sido realmente pensada por alguém."

Isso ou o mesmo efeito surpresa pelo caminho oposto: a mesma especialista refere, como exemplo, os extraordinários figurinos de "Sagração da Primavera", com incómodos apliques de osso sobre peças de lã, a ficar quentes, molhadas e pesadas sob a luzes e a condicionar o movimento do corpo. "À maioria dos que estão no Victoria and Albert faltam ossos. Suponho que tenham sido os bailarinos a tirá-los", diz a rir.
Foi nos anos 1910. Com o arranque dos anos 1920 a sexualidade primitivista dava vez à coqueterie e às ambiguidades sexuais, no tom mais satírico de peças como "Les Noces" ou "Les Biches", esta última com a sua Anfitriã de boquilha comprida e com fiadas de pérolas ao pescoço, no que ficaria reconhecido como o estilo da época. Coreografia de Bronislava Nijinska, a irmã mais nova de Vaslav, que, depois de dez anos com Diaghilev, assinava as suas primeiras criações, sucedida em 1926 por Georges Balanchine, o último grande coreógrafo da companhia, prestes a dissolver-se inesperadamente.

Foi em Agosto de 1929: Diaghilev, que nos anos mais recentes vinha mantendo relações não exclusivas com o compositor Igor Markevitch e com dois dos seus bailarinos - o inglês Anton Dolin e o russo Serge Lifar -, morre repentinamente na sua cidade preferida, Veneza, onde é enterrado. Os Ballets Russes desmantelaram-se quase de imediato, dando origem a companhias em cidades como Monte Carlo e Nova Iorque.
"Os Ballets Russes", diz Lynn Garafola, "foram uma dádiva enorme do Diaghilev": "Foi todo o seu tempo, o seu dinheiro, a sua dor."
Muitas fontes históricas referem as por vezes extremas dificuldades financeiras do grande mentor da companhia, a viver para o próximo pagamento, com roupas de corte impecável, mas muitas vezes puídas.
Ao rei Alfonso de Espanha, que, baralhado, lhe perguntou um dia qual o seu papel no meio de toda a actividade da companhia, Diaghilev terá respondido: "Majestade, sou como você. Não faço nada, mas sou indispensável."