Mayra Andrade faz música ilegítima
Às 10h30 da passada sexta-feira, Mayra Andrade tratava dos últimos detalhes do seu cabelo e maquilhagem. Estava numa das salas do primeiro andar do Hotel Pestana Palace, em Lisboa, uma divisão ampla, com altas portadas abertas para uma varanda, castiçais no tecto, mobília pesada, tapeçarias pesadas. Por sorte de decoração, a sala tem um aspecto antigo, vivido - o exacto oposto, portanto, desta cabo-verdiana de 24 anos, que, apesar dos seus saltos altos, ainda tem cara de garota.
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Às 10h30 da passada sexta-feira, Mayra Andrade tratava dos últimos detalhes do seu cabelo e maquilhagem. Estava numa das salas do primeiro andar do Hotel Pestana Palace, em Lisboa, uma divisão ampla, com altas portadas abertas para uma varanda, castiçais no tecto, mobília pesada, tapeçarias pesadas. Por sorte de decoração, a sala tem um aspecto antigo, vivido - o exacto oposto, portanto, desta cabo-verdiana de 24 anos, que, apesar dos seus saltos altos, ainda tem cara de garota.
Mayra tinha tarefa ingrata pela frente: um dia inteiro de entrevistas para jornais, sites, revistas, televisão e rádio. Este é o preço de ser uma estrela. Há três anos o seu disco de estreia conseguiu o surpreendente feito de atingir o galardão de ouro de vendas em Portugal, algo que, por norma, está reservado à música anglo-saxónica, a brasileiradas género-bota-o-pé-no-chão-qui-legáu ou a discos com canções a passar nos "Morangos Com Açúcar". "Navega" ainda ganhou o Prémio da Crítica Discográfica Alemã e um importantíssimo prémio da BBC na categoria Novo Artista. Ela tinha 21 anos.
"Sucesso é o que se espera", começa por dizer, em tom renitente. "É o que se deseja sempre", continua, antes de se abalançar a frases mais compridas. "Faz-se um disco com tudo o que se tem e o melhor que se pode, por isso não vou dizer que foi uma enorme surpresa. Mas também não vou dizer que esperava que fosse um sucesso com uma dimensão tão grande."
Há três anos, tínhamo-la entrevistado ao telefone, a propósito da estreia, e ela aparentara alguma distância. Fora fria nas respostas, sempre muito séria, muito concentrada em ser exacta. Agora ainda se nota essa distância, que frase a frase se vai revelando ser mais timidez que sobranceria.
O raciocínio anterior acaba com ela a diminuir os feitos do disco anterior: "Eu comecei pelo mais difícil, que é a vida de palco e enfrentar o público. Um disco, para mim, é apenas um complemento." Quem diz isto, no fundo, está a dizer que se dá demasiada importância aos discos e menos aos concertos. Um disco, diz de forma extremamente segura, "serve para encerrar uma fase, mas é um acontecimento como qualquer outro".
O palco, portanto, é a suprema experiência. Teoricamente, é uma tese arriscada. No caso dela faz sentido.
Há seis anos vimo-la na Toscânia (Itália), num festival de cultura portuguesa. Foi uma surpresa tremenda: uma garota desconhecida subia ao palco, e descalça, indomável, trazia uma voz de ouro para a frente de uma música que, sendo cabo-verdiana, não parecia limitar-se às fronteiras do seu país de origem.
No dia seguinte quisemos saber mais dela, tarefa simples pois os jornalistas e os artistas almoçavam juntos. Ficámos a saber que tinha nascido em Cuba, que o marido da mãe era diplomata e que, por isso, tinha passado a vida a viajar. Por essa altura tinha vivido largas temporadas em Cabo-Verde, mas também tinha passado por Angola, Alemanha e Senegal. Precoce, tinha-se estabelecido em Paris, sozinha, aos 17 anos, e já ganhava a vida graças aos concertos, acompanhada por uma data de homens mais velhos que compunham a sua banda. Paris não surgiu por acaso: ela fala francês desde os seis anos, e com 16 ganhou a medalha de ouro dos Jogos da Francofonia, no Canadá, com uma canção em francês.
Portanto, no caso dela, o palco tem, de facto, uma importância grande. De volta à conversa: ela remata a ideia anterior, estabelecendo em que ponto se encontra actualmente: "O primeiro disco foi feito após seis anos de palco, era um retrato dessa fase, encerrava-a. Este começa uma nova."
O cão bastardo
Mayra Andrade gosta de dizer que faz "música ilegítima". Quando lhe pedimos para explicitar a expressão, ela usa uma imagem curiosa: "O que é um cão bastardo? É um cão que já não tem raça. A música cabo-verdiana é mestiça e eu ainda por cima sou permeável - tudo o que me encanta noutras músicas entra na minha. Andei por todo o lado, pelo que a minha música é naturalmente assim." Ela diz que a sua abordagem à música "é como ir a um buffet e ter a liberdade de provar um pouco de tudo" e acrescenta que "vir de um país não quer dizer que estejamos condenados [a ficar fechados nele]".
Ouvindo "Storia, Storia" fica-se com a certeza que ela não está condenada a ficar fechada nas fronteiras do seu país. É um disco que assenta na música cabo-verdiana, sim, mas que vagueia um pouco por todo o lado: tem o "tres" (guitarra de três cordas) tipicamente cubano, percussões brasileiras, koras africanas. Há músicos angolanos, guineenses, brasileiros, cabo-verdianos. Melodicamente, o disco deve muito ao Brasil, onde, de resto, uma boa parte do disco acabou por ser gravado (a outra parte foi em Cuba). "A música brasileira ocupa uma grande parte das minhas escutas", admite, para depois citar as inevitáveis divas da MPB como influências.
Antes de começar a gravar o disco, Mayra foi de férias para a Bahia. Tinha uma canção, a estupenda "Juana", que era "um funaná sambado". ("Há o normal, o meio andamento, o sambado", explica ela. "Este puxa para o Brasil"). Foi então que Alê Siqueira, o seu produtor, "teve a ideia de usar percussionistas nessa canção".
Ela acabou por ficar mais um mês na Bahia, para gravar essa e outras canções, porque entretanto decidiram que o grupo de percussão (caixa, sobretudo) seria brasileiro. O cheiro a samba está lá, mas não é samba, é demasiado lento para isso. O cheiro a funaná está lá, mas não é funaná. Para ela é apenas "uma música cabo-verdiana que não tem pudor a recorrer a sons e cores que vêm de outras músicas". É óbvio que questões de identidade não lhe interessam. A esse propósito, faz uma afirmação lapidar: "Dentro de 10 anos já ninguém vai fazer perguntas sobre esse assunto [a identidade, por assim dizer, das canções]".
"Storia. Storia" é um disco luxuoso, com sumptuosos arranjos de cordas escritos por Jacques Morelenbaum (colaborador habitual de Caetano), suaves nuances de jazz na melancolia de um trompete, muito piano, etc., o que o coloca num campeonato bem distinto de um disco predominantemente acústico e simples como "Navega".
"Eu queria que este disco fosse muito mais estofado que o primeiro", afirma. O "estofado" significa "arranjado" e ela pergunta-nos se "em português" usamos a expressão "estofado". (Dizemos-lhe que sim, mas que normalmente não lhe damos esse sentido.) "Queria bateria, mais ritmos, piano, sopros", explica, fazendo uma ressalva: "Mas só queria porque a música pedia isso. Não é por eu querer certos instrumentos que a música tem obrigatoriamente de os ter. Houve mais dinheiro, houve mais tempo para estar em estúdio, mas isto não foi um capricho de querer cordas para ficar mais romântico. A música é que decide. É preciso fechar os olhos e ouvir o que a canção precisa."
As canções, diga-se, não precisam de mais nada e é claro que Mayra está a apontar para o mercados das divas brasileiras e que vai ganhar a aposta. Um pequeno detalhe revela a ambição: o nome do disco, "Storia, Storia", era uma expressão antiga, cabo-verdiana, que se usava quando as pessoas se juntavam para contar histórias. "É como um desafio", explica Mayra: "Quem sabe contar melhor, que conte agora."
E ela sabe contar melhor.