Morte a crédito
Martin Amis (n. 1949) disputa a Ian McEwan, que é da mesma geração, a glória jornalística de ser "o melhor escritor" inglês contemporâneo.
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Martin Amis (n. 1949) disputa a Ian McEwan, que é da mesma geração, a glória jornalística de ser "o melhor escritor" inglês contemporâneo.
A edição portuguesa tem dado mais e melhor atenção ao seu alegado rival. Ao contrário do que acontece com McEwan, são vários os livros de Amis sem tradução e publicação em Portugal. Ou com publicação portuguesa temporalmente distante da original. "London Fields", que é de 1989, é (só) agora apresentado pela Teorema como "o novo romance" de Amis. Talvez seja. Em português é um livro novo.
A acção decorre na "carcaça de Londres" (com residual incursão aos EUA) no final do milénio passado. Numa mistura de "ruina e ruindade". São três as personagens principais. Ou melhor, quatro: o narrador é suficientemente intruso para disputar às outras personagens (que ele procura em vão manipular e influenciar, apesar de lhe terem dado "de bandeja" uma história "verdadeira", tendo ele somente "que a escrever") o verdadeiro protagonismo da narração.
Protagonismo que ele ostensivamente assume, aliás, desde o início ("Tecnicamente falando, sou também, suponho, cúmplice dos factos") e na parte final de cada um dos 24 capítulos do livro. Quando fala de si, comenta o narrado e o que está por narrar e como aí chegou ou vai chegar. Tem sempre a última palavra. O que não quer dizer que seja a melhor e a decisiva: "Talvez por terem o vício da forma,os escritores atrasam-se sempre em relação à informalidade contemporânea. Escrevem sobre uma realidade velha, numa linguagem ainda mais velha.
Não são as palavras, são os ritmos do pensamento. Neste sentido, todos os romances são romances históricos. Não sendo bem um escritor, talvez eu veja as coisas mais claramente. Mas faço o mesmo." Pode dizer-se que "London Fields" é, essencialmente, um romance sobre a escrita de um romance.
Em Amis, os nomes das personagens não costumam ser inofensivos e com frequência caricaturam as personagens nomeadas, desnudando-as satiricamente. O narrador chama-se Samson Young, e nem é novo nem forte. É um perdedor americano que, por uma temporada, troca de casa com Mark Asprey, autor londrino de sucesso literário e sexual. É claro que já notaram que as iniciais são as de Martin Amis.
O que nos obriga a aludir aqui ao motivo literário da rivalidade literária. Young chega a Londres e crê chegada também, finalmente, a sua hora: "A vida real está a chegar tão depressa que já não posso adiar mais." Vai portanto escrever o seu romance. É o que iremos ler. As outras personagens principais chaman-se Keith Talent, um patético pícaro de pub (de Portobello Road) sem virtudes e que tem como único talento a pequena vigarice; Guy Clinch, seu improvável comparsa, um pobre rapaz rico, "romântico", simpático e sem rumo, cuja mulher se chama Hope; e Nicola Six, uma 'femme fatale' de caricatura cujo apelido, se (in)convenientemente pronunciado, pode provocar estimulantes equívocos.
O quarteto irá interpretar aquilo a que o narrador chama, na tradução portuguesa, "um policialzinho bem catita. E original, a seu modo. Não é um quemfoi. É mais um porquefoi." A originalidade está nisto: "London Fields" é um antipolicial ou um contrapolicial. É a "crónica", mas uma crónica pós-modernista, paródica e agoniada, "de uma morte anunciada". E desejada. O que não quer dizer que seja um romance freudiano. Nicola Six é uma suicida suficientemente perversa para pretender que sejam outros a fazer o trabalho sujo. Quer ser, por assin dizer, suicidada. É uma "assassinanda", uma falsa vítima à procura do seu assassino verdadeiro.
O romance é, portanto, a história de um crime por vir, a história de um crime em busca de autor. O seu objectivo é fazer coincidir o assassino, a vítima e o acto que os liga e determina. São, à partida, dois os chamados, mas o determinismo e a convenção falham, como falha o narrador "na arte e no amor". E onde falham o determinsmo e a convenção realistas, vence a discricionaridade romanesca. O escolhido (o 'suicidador' de Nicola) será outro. O moribundo narrador, como todos os deuses incompetentes, consegue escrever torto por linhas direitas. É talvez a vingança deste ou o irónico prémio de consolação que lhe dá Amis.
É claro que a personagem Nicola pode ser lida como personificação de um mundo esgotado e suicida, à beira do desastre nuclear ou da ruína ecológica, da definitiva "Crise" e do "horrordia", um mundo, enfim, cheio de carros estacionados em segunda fila e fezes de cão nos passeios. E estaríamos a falar do subtexto 'sério' e eloquente do livro. Mas "London Fields" vale, sobretudo, como romance auto-reflexivo. Talvez excessivamente longo. Creio-me relativamente insuspeito nesta matéria, pois gosto de romances metaficcionais (embora, na verdade, prefira "Le Paysan de Paris", de Aragon, a "London Fields", de Amis).