O camião dança? Sim, com Jeanne Balibar e Boris Charmatz
Isabelle Launay ia ao volante quando Boris Charmatz foi atropelado pelos textos do fundador do butô, Tatsumi Hijikata (1928-1986) - e sobretudo por este título, "La Danseuse Malade" (à letra, a bailarina doente), com o qual ele achou, de caras, que "havia coisas a fazer".
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Isabelle Launay ia ao volante quando Boris Charmatz foi atropelado pelos textos do fundador do butô, Tatsumi Hijikata (1928-1986) - e sobretudo por este título, "La Danseuse Malade" (à letra, a bailarina doente), com o qual ele achou, de caras, que "havia coisas a fazer".
Ainda hoje, mais de dois anos depois, fala desses textos como se estivesse possuído por eles, e na verdade está: "A partir do momento em que os lemos, em que os metemos na boca, o corpo não pode continuar indiferente. Estes textos chovem-nos em cima, e ficamos encharcados."
Ele não abriu o guarda-chuva: chamou Jeanne Balibar (actriz que já tínhamos visto a subir telhados, a dizer palavrões em público e até a vestir um avental, mas nunca a mexer-se desta maneira), deu-lhe as chaves de um camião, fechou-se na mala e fez as coisas que havia a fazer com Tatsumi Hijikata. Conduzir um camião, mesmo quando se está doente, é uma maneira de dançar - e de fazer butô - como outra qualquer.
"La Danseuse Malade", espectáculo que a Culturgest apresenta em Lisboa nos dias 7 e 8, é o diário desses dias em que eles estiveram possuídos por Tatsumi Hijikata e conduziram um camião - em círculos, porque num palco não se pode ir "a parte nenhuma" -, arrancaram látex do soalho, e sentiram os dentes de um cão a cravarem-se no braço.
Não tem nada a ver com o butô e ao mesmo tempo tem tudo a ver com o butô: "Fiz questão de não me documentar sobre o butô porque queria estar sozinho com estes textos. Mas depois houve especialistas em butô que vieram ver o espectáculo e me disseram que isto que eu fiz é butô. É possível: o butô é um pensamento, e esse pensamento está nos textos", diz ao Ípsilon.
Foi isso que o entusiasmou quando os meteu na boca, depois de Isabelle Launay lhe ter dito que ele tinha corpo para sair com vida deste atropelamento: "Tínhamos escrito um livro juntos ["Entretenir - À Propos d'une Danse Contemporaine", 2003] e ela falou-me destes textos praticamente inexistentes, porque não estão sequer editados na Europa. O Patrick De Vos anda há anos a trabalhar na tradução do Tatsumi Hijikata, mas nunca está satisfeito com os resultados, por isso tivemos quase que os roubar para poder fazer este espectáculo."
O que é que ele viu nestes textos para quer imediatamente fazer coisas com eles? "Primeiro o facto de a escrita dele ser já uma maneira de fazer butô - e não uma maneira de analisar ou de explicar o butô. Estes textos não são coisas que ele escreve ao fim-de-semana, nem subprodutos dos espectáculos; têm uma força que vem da dança e que possui as palavras. E depois o facto de desmistificarem essa coisa do butô como uma arte exótica e longínqua, uma coisa lá dos japoneses: quando escreve, ele dirige-se directamente a autores contemporâneos ocidentais como Bataille, Artaud, Genet, que aparecem por trás destes textos quase como fantasmas do próprio Hijikata", responde Charmatz.
Fantasmas
Ele não quis estar sozinho com esses fantasmas - os fantasmas de Hijikata, que afinal também são os fantasmas da "modernidade ocidental" - e por isso lembrou-se de telefonar a Jeanne Balibar, que conhecia sobretudo do teatro (e de "En Micronésie", que ela o convidou para fazer em Berlim, em 2005). "Gosto muito da maneira como ela se mexe - tem um movimento muito pouco físico, muito inconsciente, muito próximo do abandono. Não sei como dizer: quando a vejo mexer um braço e pegar num objecto, é como se nada daquilo tivesse sido premeditado e ela se tivesse cruzado com esse objecto por acaso, ao deixar cair os braços. Os gestos que ela faz nunca parecem ser os gestos que ela tinha decidido fazer. E depois é como se houvesse nela o fantasma de uma bailarina - e há, porque ela fez dança dos 5 aos 17 anos, mas isso eu soube mais tarde", explica.
A seguir não quis estar sozinho com Jeanne Balibar e então trouxe látex, um camião, um cão e um vídeo para que houvesse sempre alguma coisa no meio dos dois: "Preferia nunca ter de estar sozinho com ela, e por isso somos sempre nós os três: eu, ela e o texto, ou eu, ela e o camião, ou eu, ela e o cão. Há uma série de coisas que estão em cima do palco para evitar o par, o duo."
O camião é mais do que um impedimento: é todo o programa de "La Danseuse Malade", o espectáculo em que Boris Charmatz e Jeanne Balibar procuram, e encontram, "um veículo" para estes textos. "É um veículo um bocado inútil, porque não podemos ir a parte nenhuma, mas precisávamos de um transporte para os corpos que há no Hijikata: corpos de crianças, de mortos, de animais, de velhos. E precisávamos de alguma coisa que dançasse, além do próprio texto, porque os movimentos que nós fazemos são secundários. Quando estou dentro do camião, não me mexo como quero, mexo-me como o camião em movimento me faz mexer. Interessa-me esse movimento que não é voluntário", continua.
Também lhe interessam esses corpos que Hijikata acumula nos textos: "Há uma porosidade entre estes corpos, entre o que está fixo e o que está em movimento, entre o que está morto e o que está vivo, e essa circulação é hipnotizante. É uma paisagem mental muito estranha, mas o butô é exactamente isso: um corpo que se desdobra, que tem problemas, que adoece, que morre. Para o Hijikata, a sujidade e a doença, esse estado em que estamos aquém das nossas forças, não são impedimentos, são impulsos criativos". Nisso o butô é como os movimentos que ele faz dentro do camião, mais forte do que ele: "Acabei a fazer butô involuntariamente. Mas não como se faz normalmente na dança, em que vamos sempre muito pela transmissão directa, corpo-a-corpo, e se fazemos butô é porque trabalhámos com um grande mestre. Eu não trabalhei com um grande mestre, fiz o que me apetecia fazer - e essa liberdade, dizem-me, é o butô."