América, América, para onde vais?
"Cinema independente americano", há vinte anos, significava Jim Jarmusch, os primeiros filmes de Gus van Sant, dos Coen, Steven Soderbergh ou Ang Lee, cineastas que definiam um mundo autoral fora da alçada de Hollywood. Entretanto, os estúdios compreendendo que havia dinheiro a fazer nas margens, apropriaram-se da estética, passaram a usar o festival de Sundance como "centro de formação", destilaram a essência numa fórmula facilmente reproduzível. E a frase passou a cantonar aquilo que noutras eras de Hollywood seriam produções de prestígio, "problem pictures" sobre assuntos socias, retratos da sociedade contemporânea. Os novos "independentes" são Paul Thomas Anderson, Wes Anderson, Noah Baumbach, Sofia Coppola, os Coen, Soderbergh, Lee - autores talentosos que impõem a sua visão dentro do sistema. Mas agora - e este "agora" já vem dos últimos três, quatro anos -, longe do radar dos estúdios, começa a sentir-se uma reapropriação da independência por cineastas que trabalham nas margens, com meia-dúzia de tostões, equipas reduzidas ao mínimo, pequenas câmaras digitais à mão, criando ficções muito próximas da realidade, histórias de gente normal que vive na América real. São esses filmes com muito de "caseiro" que constituem uma das mais estimulantes revelações do IndieLisboa 2009 - cinco filmes espalhados pela Competição e pela secção Cinema Emergente que nos permitem ter, pela primeira vez, uma noção mais do que pontual do modo como o cinema americano se está a renovar, de modo confidencial mas determinado, nas margens do sistema.
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"Cinema independente americano", há vinte anos, significava Jim Jarmusch, os primeiros filmes de Gus van Sant, dos Coen, Steven Soderbergh ou Ang Lee, cineastas que definiam um mundo autoral fora da alçada de Hollywood. Entretanto, os estúdios compreendendo que havia dinheiro a fazer nas margens, apropriaram-se da estética, passaram a usar o festival de Sundance como "centro de formação", destilaram a essência numa fórmula facilmente reproduzível. E a frase passou a cantonar aquilo que noutras eras de Hollywood seriam produções de prestígio, "problem pictures" sobre assuntos socias, retratos da sociedade contemporânea. Os novos "independentes" são Paul Thomas Anderson, Wes Anderson, Noah Baumbach, Sofia Coppola, os Coen, Soderbergh, Lee - autores talentosos que impõem a sua visão dentro do sistema. Mas agora - e este "agora" já vem dos últimos três, quatro anos -, longe do radar dos estúdios, começa a sentir-se uma reapropriação da independência por cineastas que trabalham nas margens, com meia-dúzia de tostões, equipas reduzidas ao mínimo, pequenas câmaras digitais à mão, criando ficções muito próximas da realidade, histórias de gente normal que vive na América real. São esses filmes com muito de "caseiro" que constituem uma das mais estimulantes revelações do IndieLisboa 2009 - cinco filmes espalhados pela Competição e pela secção Cinema Emergente que nos permitem ter, pela primeira vez, uma noção mais do que pontual do modo como o cinema americano se está a renovar, de modo confidencial mas determinado, nas margens do sistema.
Neo-realismo
O espantoso "Ballast", de Lance Hammer, sobre as repercussões de um suicídio no Mississippi profundo, foi aclamado em Sundance 2008 como uma das mais extraordinárias primeiras obras americanas recentes, venceu os prémios de realização e fotografia, seguiu para a competição de Berlim. Alguns críticos - americanos - evocaram, a propósito, os irmãos Dardenne ou Carlos Reygadas. Não se trata tanto de reconhecer influências, mas perceber que, para esta nova geração, o modelo está do lado do cinema de autor - e esse é o modo natural do cinema europeu. Se modelos americanos existem para estes realizadores, eles estão mais no lado de pioneiros como John Cassavetes e Charles Burnett, Jim McBride e Milton Moses Ginsberg, Barbara Loden ou Ray Ashley e Morris Engel. Mas mesmo essa pré-história entronca na inspiração original que ressurge agora em primeiro plano: a "nouvelle vague" francesa, o neo-realismo italiano do pós-II Guerra Mundial.
Num artigo publicado no "New York Times Magazine" em Março, o crítico A. O. Scott refere que esta geração equivale ao verdadeiro momento neo-realista do cinema americano, e ergue a exemplo máximo "Wendy and Lucy", de Kelly Reichardt, sobre uma jovem migrante que viaja com o cão em direcção ao Alasca e fica retida em Portland, Oregon, com o carro avariado e o cão desaparecido. Sobre "Wendy and Lucy" pairam duas sombras longas que têm Portland como referência, e dois dos poucos realizadores que conseguiram construir obras singulares - Todd Haynes (produtor executivo do filme) e Gus van Sant. Mas Reichardt nada tem a ver com as experiências formalistas desses "padrinhos", optando por um estilo observacional e naturalista comum a muitas destas pequenas produções.
Economia
Poder-se-ia falar de uma "economia da pobreza" que permite a estes filmes existir - em comum, um elenco muitas vezes composto por não-profissionais, uma equipa reduzida ao mínimo, a rodagem em décors naturais. O elenco de "Medicine for Melancholy", de Barry Jenkins, são dois actores e a cidade de São Francisco; as ruas de Nova Iorque são personagens a tempo inteiro de "The Pleasure of Being Robbed", de Josh Safdie, e "Prince of Broadway", de Sean Baker. Mas essa "economia da pobreza" é uma força da qual se retira a razão de ser dos filmes, muito mais próximos da verdadeira América quotidiana, ao mesmo tempo que reflectem também o progressivo descentramento dessa América, empurrada para as margens pelas circunstâncias sociopolíticas de um período conturbado (quase todos estes filmes reflectem a polarização da presidência de George W. Bush).
As paisagens desoladas e chuvosas de "Ballast" reflectem na perfeição a sensação de lamaçal em que as personagens estão atoladas; a Wendy de "Wendy and Lucy" parte para recomeçar a vida no Alasca, em fuga de uma "catástrofe" que nunca identificaremos, transportando toda a sua vida no seu carro. Já não é uma questão de sonho americano, apenas mesmo uma necessidade de continuar a viver. No desigual mas sincero "Prince of Broadway", Sean Baker conta a história de um emigrante ilegal que ganha a vida como vendedor de rua, e do modo como a sua vida dá a volta quando uma ex-namorada lhe larga nas mãos um bebé que diz ser seu; Barry Jenkins usa o romance de domingo de "Medicine for Melancholy" como uma interrogação sobre questões raciais e sociais numa São Francisco onde os negros são uma minoria absoluta e a habitação social está a ser chutada para fora da cidade.
A questão social vem ainda colorir outros filmes recentes - a emigração serve de pano de fundo a "Sugar", de Ryan Fleck e Anna Boden ("Half Nelson"), "Sleep Dealer", de Alex Rivera, "Sin Nombre" de Cary Fukunaga, "Goodbye Solo" de Ramin Bahrani ou "Treeless Mountain" de So Yong Kim, tal como o terrorismo era o pretexto de "Day Night Day Night", de Julia Loktev, mostrado há dois anos na competição do Indie.
Narcisismo
Partilhando a mesma estética faça-você-mesmo mas nos antípodas deste neo-realismo social, encontram-se os cineastas agrupados na estética "mumblecore" - definição usada meio a brincar pelo realizador Andrew Bujalski e que acabou por pegar para definir este cinema branco de classe média-alta virado para dentro, que elegeu o festival multidisciplinar South by Southwest, em Austin, como centro de gravidade. No oposto da abertura ao mundo real de Hammer, Reichardt ou Baker, mas partilhando o seu olhar observacional sobre a vida e a tal economia da pobreza, Joe Swanberg, Bujalski, Aaron Katz ou os irmãos Jay e Mark Duplass viram a câmara para si próprios e enviam retratos do seu casulo de urbanos neuróticos, num cinema de ressonâncias autobiográficas onde os autores fazem parte do elenco e os diálogos são improvisados. O Indie mostrou em anos anteriores "Mutual Appreciation", de Bujalski, ou "Analog Days", de Mike Ott, e este ano mostra uma primeira obra que se insere directamente na estética - "The Pleasure of Being Robbed", de Josh Safdie, retrato de uma cleptomaníaca de espírito livre improvisado pelo realizador e pela sua musa Eléonore Hendricks, que, pelo meio de um olhar atento e curioso sobre o quotidiano, reforça a impressão de diletantismo petulante e narcisista do estilo.
No meio-termo onde o ano passado encontrámos "Momma's Man", de Azazel Jacobs - objecto inclassificável a meio caminho entre a autobiografia e a crónica social - o cativante "Medicine for Melancholy" sintetiza os vícios e as virtudes deste novo cinema. A história de dois desconhecidos que acordam juntos numa festa e têm um breve "affair" de 24 horas conjuga o pessoal e o social, fala ao mesmo tempo de si e dos outros, usa o casulo como microcosmos do mundo, sabe ser formalista sem ser árido. E, ao mesmo tempo que revela as suas influências derivativas (o "Antes do Amanhecer" de Linklater vem-nos à cabeça, a imagem descolorida até quase ao preto e branco remete para a Nouvelle Vague), balança sem nunca cair numa corda bamba que se arrisca a atirá-lo para a irrelevância ou para o mero exercício de estilo.
É indesmentível que aqui, como em todos os outros filmes desta nova leva, há desejo, vontade e amor pelo cinema. Por enquanto, é um desejo que apenas fala a poucos - o único destes cinco que registou no radar americano foi "Wendy and Lucy", "Prince of Broadway" ainda não teve estreia comercial, "Ballast", "Medicine for Melancholy" e "The Pleasure of Being Robbed" tiveram carreiras discretas nos circuitos de arte e ensaio, muitos destes autores experimentam modos alternativos de mostrar os filmes (online, festivais, sessões especiais). Escusado será dizer, nenhum deles está adquirido para exibição em Portugal e o Indie Lisboa será para já a única hipótese de os ver.
"Medicine for Melancholy" , de Barry Jenkins
São Jorge 3, hoje (sexta 24) às 16h15 e sexta (1) às 23h45
"Ballast" , de Lance Hammer
Cinema City Classic Alvalade 3, hoje (sexta 24) às 18h15, segunda (27) às 21h45 e sexta (1) às 18h15.
"Prince of Broadway" , de Sean Baker
Londres 1, terça (28) às 21h45 e quinta (30) à meia-noite.
"The Pleasure of Being Robbed" , de Josh Safdie.
São Jorge 3, quarta (29) e domingo (3), sempre às 18h45.
"Wendy and Lucy", de Kelly Reichardt
Londres 1, sexta (1) à meia-noite e domingo (3) às 21h45.