Patagónia para cavalheiros-viajantes
Reza a história (ou a lenda) que, em Dezembro de 1974, Bruce Chatwin se despediu da Sunday Times Magazine, enviando ao editor um telegrama que ficou célebre: "Fui para a Patagónia por quatro meses". O resultante "Na Patagónia" (1977) foi o seu primeiro livro publicado, um sucesso quase instantâneo, que inaugurou um novo género de escrita de viagens.
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Reza a história (ou a lenda) que, em Dezembro de 1974, Bruce Chatwin se despediu da Sunday Times Magazine, enviando ao editor um telegrama que ficou célebre: "Fui para a Patagónia por quatro meses". O resultante "Na Patagónia" (1977) foi o seu primeiro livro publicado, um sucesso quase instantâneo, que inaugurou um novo género de escrita de viagens.
Antes disso, porém, já o norte-americano Paul Theroux tinha editado "The Great Railway Bazaar" (1975), relatando a sua longa viagem de comboio pela Europa e pela Ásia, que viria depois, a partir do momento em que se identificou uma nova geração de "travel writing", a ser reavaliado como pioneiro do género. Já na posse da narrativa de Chatwin, Theroux partiu também para a Terra do Fogo, mas de comboio e a partir da cidade de Boston em que vivia, experiência que retratou em "O Velho Expresso da Patagónia" (1979).
Estas foram obras cruciais para converter o "travel writing" em moda e justificar a promoção do encontro público dos seus autores. Aconteceu em 1985, na Royal Geographical Society, daí resultando "Regresso à Patagónia", agora pela primeira vez publicado entre nós, coincidindo com as reedições das obras supracitadas de Chatwin e de Theroux. É um texto difícil de classificar, uma vez que assume a forma de diálogo, mas não funciona como debate de ideias.
Decorre, no lugar disso, num registo de palestra fluida, em que os dois autores vão coloquialmente intercalando as suas comunicações, numa lógica de cada um pegar no assunto no ponto em que o outro o deixou, mas sempre ou quase para desviar a conversa noutro sentido. Todo o atrito é evitado, não há verdadeira discussão e é esse tácito acordo de cavalheiros que se começa por lamentar.
Porque se Chatwin e Theroux se distinguiram por romperem ambos com a tradição de narrativas pitorescas de viagem, não é menos evidente que entre si divergiram, até radicalmente, nas formas adoptadas para subverter esse mesmo figurino.
É certo, porém, que tinham afinidades, sobretudo em termos de motivações pessoais e bagagem cultural, e é essa relativa sintonia que se vai revelando e fazendo de "Regresso à Patagónia" um texto interessante. Descobre-se, para começar, que a razão principal que os levou aos dois e com apenas um par de anos de distância ao extremo da América Austral é a mesma. Theroux invoca Borges par justificar o destino: "Não se encontra lá nada. Não existe nada na Patagónia". Chatwin, pelo seu lado, cita o mito ocidental que via na Patagónia "O Destino Derradeiro, o ponto para além do qual era impossível ir". Esta demanda de nenhures é, na verdade, um dos temas mais queridos à fornada de escritores de viagens europeus e norte-americanos, que emergiu em meados dos anos 70. Uma geração desiludida com as convenções sociais e os cânones da literatura, mas também destituída de ideologias e de ambições académicas, por isso mais dada a fugas que a confrontações - o que poderá explicar, pelo menos em parte, a falta de debate em "Regresso à Patagónia".
A tendência para a evasão e para cortejar o vazio enraizou-se, porém, em motivações mais pessoais, que também denotam grande proximidade entre os dois escritores. Chatwin foi à Patagónia resgatar, ou pelo menos reconciliar-se com a perda da inocência à entrada da idade adulta, enquanto Theroux quis realizar a viagem que o seu bisavô italiano sonhou, mas nunca completou (e por isso ele nasceu norte-americano). Os dois alimentaram esses sonhos de juventude devorando pilhas de histórias e de lendas, que passam a maior parte de "Regresso à Patagónia" a rebobinar. É um constante vai-e-vem entre registos de expedições coloniais e científicas, como o diário de bordo de António Pigafetta, que acompanhou a viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães, ou a crónica da "Viagem de Beagle" de Charles Darwin, cruzados com poemas e romances inspirados nessas e noutras fontes, incluindo obras célebres de Melville, Poe, Dante, Coleridge e Shakespeare.
Faltam mesmo assim algumas referências chave - Chatwin nem chega a mencionar "Journey To Armenia" de Osip Mandelstam, em que o seu primeiro livro foi mais directamente inspirado -, sobretudo a páginas tantas os interlocutores parecem perder o fio à meada e o final tem muito de conversa inacabada. Mas também dá a sensação que os autores não quiserem sujar as mãos ou arriscar muito mais que um plácido passeio pela Patagónia literária - provavelmente a única viagem em que poderiam partilhar a mesma carruagem.