O “irmão” adoptivo de Tintin
No final da década de 1940, o tormentoso casamento de Hergé conheceu uma fase de acalmia. Por insistência da então sua mulher, Germaine Kieckens, o criador de Tintin aceitou adoptar um órfão de sete ou oito anos, de um país distante. Mas Hergé não suportou a presença da criança, que foi devolvida ao fim de 15 dias.
Esta história é contada por Pierre Assouline em 1996 numa biografi a sobre Hergé (Hergé, editora Plon). Ao comentá-la, o autor não poupa as palavras: "Nesse dia, Totor C.P., Quick e Flupke, Tintin e o pequeno Tchang não devem ter ficado muito orgulhosos do seu papá."
Os anos passaram e a história parecia enterrada. Mas a polémica regressou em força no fim de Março, quando a revista francesa L'Express publicou um perfil de Pierre Assouline. O episódio da adopção é novamente posto em destaque, incluindo uma áspera reacção do biógrafo: "Há anos que me chateiam com essa história, que não ocupa mais de dez linhas num livro de 800 páginas!"
À data da sua revelação, o episódio gerou vivas reacções dos sobrinhos e da segunda mulher de Hergé. Alguns críticos e especialistas na obra do criador belga manifestaram as suas dúvidas. Mas o biógrafo manteve o que escreveu, negando-se, no entanto, a revelar a fonte de informação. Dois anos mais tarde, quando o livro foi reeditado em edição de bolso, Assouline não alterou uma linha.
Agora, no depoimento prestado à jornalista Delphine Peras, o biógrafo de Hergé reafirma a sua "versão da adopção" e fala, pela primeira vez, de quem lhe contou o episódio: "A minha fonte, que falava em off , já não está viva. Hoje posso revelar o seu nome: trata-se de Germaine, que me confessou a esterilidade de Hergé. Quando falei de adopção, ela contou-me, muito incomodada, essa infeliz tentativa [de adopção]."
Como explicar o alegado comportamento do criador de Tintin? "Hergé não gosta de crianças. Quer isso remonte à sua própria infância, quando reagiu muito mal ao nascimento do seu irmão, rapidamente festejado pelos pais como um herói, ou quer seja algo mais recente, o facto é que ele não suporta a sua companhia", garante Assouline na biografia.
História inventada
Outros reputados estudiosos da obra de Hergé não perderam tempo a contestar Assouline. Num comunicado conjunto, Benoît Peeters e Philippe Goddin lamentam que esta história, tão "deplorável para a imagem do 'pai' de Tintin", volte a ser evocada. Quanto à "revelação tão tardia" da fonte de Assouline, não escondem o seu cepticismo: "Como é que um acontecimento tão importante como uma tentativa de adopção pode ser completamente ocultado no diário mantido por Germaine ao longo dos anos 40 e 50, quando ela relata em pormenor, sem temer o despudor, as dificuldades do casal até à separação em 1960? É inverosímil aos olhos dos que, como nós, esmiuçaram esses documentos privados."
Peeters e Goddin - que, apesar do episódio da adopção, consideram o livro de Assouline "notável" - também acham estranho que a primeira mulher de Hergé, entrevistada várias vezes por ambos na década de 1980, nunca tenha feito a menor alusão ao assunto. "O seu modo de se exprimir sem papas na língua e o despeito de mulher abandonada mantinham-se intactos, enquanto a glória do exmarido suscitava na velha senhora mais ironia e amargura do que admiração", acrescentam.
O site Actua BD abre um debate sobre o assunto. Os três biógrafos refutam argumentos. "Porque insistem em que inventei uma tal história? A única questão que coloco hoje é: porque a teria inventado?", interroga-se Assouline. "Muito simplesmente, não podemos acreditar que Germaine lhe tenha contado", replicam Peeters e Goddin.
Em declarações ao P2, Benoît Peeters reafi rma a posição dos dois especialistas: "Negamos categoricamente esta história. Pierre Assouline não faz mais do que difundir um rumor malévolo e isso deixa-me desolado."
Imagem beliscada
Os dois biógrafos cépticos estão cientes de que não conseguirão convencer o interlocutor quanto à falsidade da adopção. Por isso, decidiram pôr termo ao debate que, entretanto, trouxe outros comentadores. "Domfouch" é um deles: "Verdadeira ou falsa, esta história marcou infelizmente e de forma duradoura a nossa percepção do autor. Eu diria mesmo que o mal está feito... Mas devemos por isso rejeitar a sua obra?"
Até que ponto esta controversa história afecta a imagem de Hergé como homem e criador?
"Hergé não podia ter filhos e sofreu com isso", responde Benoît Peeters. "Passou quase todas as manhãs, durante 30 anos, a responder pessoalmente, e muitas vezes de forma extensa, às crianças que lhe escreviam de todo o mundo. Recebeu muitas nos Estúdios Hergé. Era frequente enviar álbuns como prenda a crianças que estavam em situações difíceis e lhos pediam. Não quero transformar Hergé num 'santo'. Tinha os seus defeitos e humores. Mas faço questão de defender a sua memória contra as mentiras e as calúnias."
Outros críticos de banda desenhada ouvidos pelo P2 parecem não dar muita importância ao assunto, a avaliar pelas respostas lacónicas. "Pessoalmente, não acredito muito na história da adopção falhada de Hergé", responde Gilles Ratier, secretáriogeral da Associação de Críticos e Jornalistas de Banda Desenhada e colaborador do site BDzoom.
Yves Frémion, da revista Papiers Nickelés, pronuncia-se no mesmo sentido. "Parece pouco provável que a história seja verdadeira. É difícil pronunciarmo-nos sem elementos de prova, que não existem. Benoît Peeters é um homem sério e inclino-me a aceitar a sua posição neste assunto."
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No final da década de 1940, o tormentoso casamento de Hergé conheceu uma fase de acalmia. Por insistência da então sua mulher, Germaine Kieckens, o criador de Tintin aceitou adoptar um órfão de sete ou oito anos, de um país distante. Mas Hergé não suportou a presença da criança, que foi devolvida ao fim de 15 dias.
Esta história é contada por Pierre Assouline em 1996 numa biografi a sobre Hergé (Hergé, editora Plon). Ao comentá-la, o autor não poupa as palavras: "Nesse dia, Totor C.P., Quick e Flupke, Tintin e o pequeno Tchang não devem ter ficado muito orgulhosos do seu papá."
Os anos passaram e a história parecia enterrada. Mas a polémica regressou em força no fim de Março, quando a revista francesa L'Express publicou um perfil de Pierre Assouline. O episódio da adopção é novamente posto em destaque, incluindo uma áspera reacção do biógrafo: "Há anos que me chateiam com essa história, que não ocupa mais de dez linhas num livro de 800 páginas!"
À data da sua revelação, o episódio gerou vivas reacções dos sobrinhos e da segunda mulher de Hergé. Alguns críticos e especialistas na obra do criador belga manifestaram as suas dúvidas. Mas o biógrafo manteve o que escreveu, negando-se, no entanto, a revelar a fonte de informação. Dois anos mais tarde, quando o livro foi reeditado em edição de bolso, Assouline não alterou uma linha.
Agora, no depoimento prestado à jornalista Delphine Peras, o biógrafo de Hergé reafirma a sua "versão da adopção" e fala, pela primeira vez, de quem lhe contou o episódio: "A minha fonte, que falava em off , já não está viva. Hoje posso revelar o seu nome: trata-se de Germaine, que me confessou a esterilidade de Hergé. Quando falei de adopção, ela contou-me, muito incomodada, essa infeliz tentativa [de adopção]."
Como explicar o alegado comportamento do criador de Tintin? "Hergé não gosta de crianças. Quer isso remonte à sua própria infância, quando reagiu muito mal ao nascimento do seu irmão, rapidamente festejado pelos pais como um herói, ou quer seja algo mais recente, o facto é que ele não suporta a sua companhia", garante Assouline na biografia.
História inventada
Outros reputados estudiosos da obra de Hergé não perderam tempo a contestar Assouline. Num comunicado conjunto, Benoît Peeters e Philippe Goddin lamentam que esta história, tão "deplorável para a imagem do 'pai' de Tintin", volte a ser evocada. Quanto à "revelação tão tardia" da fonte de Assouline, não escondem o seu cepticismo: "Como é que um acontecimento tão importante como uma tentativa de adopção pode ser completamente ocultado no diário mantido por Germaine ao longo dos anos 40 e 50, quando ela relata em pormenor, sem temer o despudor, as dificuldades do casal até à separação em 1960? É inverosímil aos olhos dos que, como nós, esmiuçaram esses documentos privados."
Peeters e Goddin - que, apesar do episódio da adopção, consideram o livro de Assouline "notável" - também acham estranho que a primeira mulher de Hergé, entrevistada várias vezes por ambos na década de 1980, nunca tenha feito a menor alusão ao assunto. "O seu modo de se exprimir sem papas na língua e o despeito de mulher abandonada mantinham-se intactos, enquanto a glória do exmarido suscitava na velha senhora mais ironia e amargura do que admiração", acrescentam.
O site Actua BD abre um debate sobre o assunto. Os três biógrafos refutam argumentos. "Porque insistem em que inventei uma tal história? A única questão que coloco hoje é: porque a teria inventado?", interroga-se Assouline. "Muito simplesmente, não podemos acreditar que Germaine lhe tenha contado", replicam Peeters e Goddin.
Em declarações ao P2, Benoît Peeters reafi rma a posição dos dois especialistas: "Negamos categoricamente esta história. Pierre Assouline não faz mais do que difundir um rumor malévolo e isso deixa-me desolado."
Imagem beliscada
Os dois biógrafos cépticos estão cientes de que não conseguirão convencer o interlocutor quanto à falsidade da adopção. Por isso, decidiram pôr termo ao debate que, entretanto, trouxe outros comentadores. "Domfouch" é um deles: "Verdadeira ou falsa, esta história marcou infelizmente e de forma duradoura a nossa percepção do autor. Eu diria mesmo que o mal está feito... Mas devemos por isso rejeitar a sua obra?"
Até que ponto esta controversa história afecta a imagem de Hergé como homem e criador?
"Hergé não podia ter filhos e sofreu com isso", responde Benoît Peeters. "Passou quase todas as manhãs, durante 30 anos, a responder pessoalmente, e muitas vezes de forma extensa, às crianças que lhe escreviam de todo o mundo. Recebeu muitas nos Estúdios Hergé. Era frequente enviar álbuns como prenda a crianças que estavam em situações difíceis e lhos pediam. Não quero transformar Hergé num 'santo'. Tinha os seus defeitos e humores. Mas faço questão de defender a sua memória contra as mentiras e as calúnias."
Outros críticos de banda desenhada ouvidos pelo P2 parecem não dar muita importância ao assunto, a avaliar pelas respostas lacónicas. "Pessoalmente, não acredito muito na história da adopção falhada de Hergé", responde Gilles Ratier, secretáriogeral da Associação de Críticos e Jornalistas de Banda Desenhada e colaborador do site BDzoom.
Yves Frémion, da revista Papiers Nickelés, pronuncia-se no mesmo sentido. "Parece pouco provável que a história seja verdadeira. É difícil pronunciarmo-nos sem elementos de prova, que não existem. Benoît Peeters é um homem sério e inclino-me a aceitar a sua posição neste assunto."