O arquivo perdido de Salazar foi descoberto por um contínuo

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Milhares de documentos da Presidência do Conselho de Ministros, datados de 1938 a 1957, estavam esquecidos num armazém em Queluz Miguel Madeira

Não será excessivo afirmar que se trata de uma das mais importantes descobertas dos últimos anos - pela relevância da memória histórica e pela sua contribuição para a historiografia do Estado Novo. Em Outubro do ano passado, o director do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Silvestre Lacerda, descobriu, por indicação do contínuo de um armazém do Estado (ver texto ao lado), perto de uma centena de caixas com documentação da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), referente ao período entre 1938 e 1957. Ninguém sabia da sua existência.

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Não será excessivo afirmar que se trata de uma das mais importantes descobertas dos últimos anos - pela relevância da memória histórica e pela sua contribuição para a historiografia do Estado Novo. Em Outubro do ano passado, o director do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Silvestre Lacerda, descobriu, por indicação do contínuo de um armazém do Estado (ver texto ao lado), perto de uma centena de caixas com documentação da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), referente ao período entre 1938 e 1957. Ninguém sabia da sua existência.

A descoberta deu-se num armazém tutelado pela Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros e situado no Pendão, em Queluz. Só após a transferência do conjunto para a Torre do Tombo foi possível aferir a sua real importância: os milhares de documentos originais guardados em 2827 pastas permitem reconstituir os processos de decisão política de António de Oliveira Salazar em períodos tão relevantes como os primeiros anos do Estado Novo, o fim da Guerra Civil de Espanha e a II Guerra Mundial. A diversidade da documentação confirma, de facto, a intervenção directa do então Presidente do Conselho nos mais variados assuntos - desde o uso de "fatos de banho inconvenientes" até à relação de bens alemães existentes em Portugal em 1946, passando pela alteração dos horários de trabalho da Função Pública.

Este achado não apenas complementa o Arquivo Oliveira Salazar, existente na Torre do Tombo, como também preenche uma lacuna, pois o fundo da PCM que é parte integrante daquele arquivo abrange somente os anos de 1957 a 1974. Silvestre Lacerda nota ainda que, "do ponto de vista da riqueza informativa, existem algumas pérolas que nos ajudam a perceber melhor a ambiência portuguesa durante a II Guerra Mundial", nomeadamente no que se refere às subsistências, contrabando, açambarcamento e especulação de preços.

O facto de este fundo documental ter sido separado do arquivo que estava na residência oficial de São Bento (designado "arquivo da residência") pode ser explicado, diz Lacerda, por uma ordem de importância. "Provavelmente, Salazar daria mais importância ao arquivo de São Bento e quis distinguir a documentação que pertencia à PCM. Há aqui processos que indicam que foram transferidas pastas para o arquivo da residência", afirma o director da Torre do Tombo. Numa primeira abordagem, Lacerda percebeu de imediato que o novo acervo documental estava "muito bem organizado, com os processos devidamente identificados". "Havia um controlo efectivo do sistema de informação. Salazar tinha, de facto, uma noção da importância da organização dos sistemas de informação", acrescenta.

Consulta pública no Verão

Na "sala de higienização" da Torre do Tombo, onde o PÚBLICO consultou algumas das pastas, a documentação está acondicionada em 244 caixas, o que, em linguagem de arquivista, significam 50 metros lineares de documentação. Neste momento, o fundo está de quarentena - técnicos da Torre do Tombo procedem à limpeza e à inventariação dos documentos. Seguir-se-á o ciclo natural de todos os fundos: a fase de cotação e a eventual consulta na sala de leitura. Eventual porque toda a documentação estará submetida às normas do Regime Geral dos Arquivos e do Património Arquivístico - não poderão ser disponibilizados documentos que contenham dados pessoais, de carácter judicial, policial ou clínico, assim como informações que afectem a segurança pessoal, a honra ou a intimidade da vida privada e familiar. A não ser que, define a lei, tenham decorrido 50 anos sobre a morte da pessoa ou, desconhecendo-se esta data, 75 anos sobre o ano de origem dos documentos.


Silvestre Lacerda aponta que o arquivo recém-descoberto poderá estar acessível ao público já no final deste Verão. Mas este processo "depende dos meios mobilizados" para o trabalho que ainda resta fazer. Muito antes disso, haverá uma apresentação pública do fundo que irá enriquecer o Arquivo Oliveira Salazar. Numa cerimónia a realizar no próximo dia 29, às 16h30, na Torre do Tombo, Silvestre Lacerda irá anunciar a incorporação do novo acervo e serão expostos alguns documentos "para se perceber a riqueza informativa deste fundo".

Nesta sessão, que contará com as presenças do secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros, José Maria Sousa Rego, do secretário de Estado da PCM, Jorge Lacão, e da secretária de Estado da Cultura, Paula Santos, será entregue à Torre do Tombo o acervo da PCM correspondente à década de 70 e que ainda estava sob a tutela da Secretaria-Geral.

Salazar e os judeus

Perante a diversidade do conteúdo das pastas - cartas, ofícios, relatórios, despachos (muitos deles manuscritos por Salazar), mapas, petições, telegramas, álbuns fotográficos - e atendendo ao importante período histórico que elas abrangem, Silvestre Lacerda acredita que se poderá assistir a uma pequena revolução na historiografia do Estado Novo. "É provável que a complementaridade venha a confirmar ou a desmentir algumas coisas já publicadas", diz. Mas isso só acontecerá, porventura, quando o arquivo estiver disponível para consulta pública.


Numa primeira leitura dos documentos, a historiadora Fátima Patriarca, que, a pedido de Silvestre Lacerda, fez uma avaliação sobre o interesse e o valor do fundo, explica que não pode avançar com a possibilidade de se reescreverem episódios da História da ditadura. "Mesmo que isso fosse possível, não deixariam de existir diversas teorias e interpretações." Mas a sua avaliação dos documentos confirma que há um conjunto de matérias que exige uma "maior investigação".

A investigadora emérita do Instituto de Ciências Sociais (ICS) exemplifica com a documentação que oferece novas interpretações sobre a relação entre Salazar e a comunidade judaica, nomeadamente os refugiados da II Guerra Mundial. "A relação é tida como ambígua, mas há documentos que vão obrigar alguns historiadores a proceder a novas investigações", diz, aludindo, a título de exemplo, a uma carta endereçada ao Presidente do Conselho pelo American Polish Relief Council, datada de Maio de 1944, em que é solicitada a intervenção de Salazar para apressar o transporte de conservas de peixe e frutos secos destinados aos prisioneiros de guerra.

O historiador Fernando Rosas não tem dúvidas sobre a importância da descoberta desta nova documentação. Até porque, nota, "havia uma lacuna temporal no Arquivo Oliveira Salazar". Tendo apenas por base alguns dos processos consultados pelo PÚBLICO, Rosas crê que o fundo traduzirá os "hábitos centralistas" do regime: "É a nata da política que os ministros levam a Salazar para que ele tome decisões. Poder-se-á confirmar que nenhum ministro decidia por si só em matérias politicamente sensíveis", afirma. E lembra que, até à remodelação governamental de 1940, Salazar era também o titular de três pastas ministeriais: Guerra, Negócios Estrangeiros e Finanças, esta última a única de que viria a abdicar durante os anos da II Guerra Mundial.

Também a historiadora Maria Dulce Freire admite que o acervo irá "provar como Salazar procurava ter informação e domínio sobre uma série de assuntos que pareciam ter uma importância menor". Para esta investigadora de pós-doutoramento no ICS, também especialista em História Económica, a documentação que será incorporada no Arquivo Salazar poderá fornecer o suporte de muitas decisões políticas tomadas entre 1938 e 1957. "É importante acompanhar os processos de decisão, as causas e as consequências. E em muitos casos não existe a documentação enviada e aquela que suporta as decisões políticas", diz.

José Maria Brandão de Brito, economista e historiador, aponta que a confirmação, dada por este fundo, de que a intervenção de Salazar fazia-se sentir em todos os domínios também tem "um reverso". Porque, "ao tentar controlar tudo, também controlava pouco. Sobretudo a partir do final da guerra, agarrou-se muito aos pormenores e não atentou em assuntos essenciais", explica.

Brandão de Brito acredita, tal como Silvestre Lacerda, que a descoberta deste género de arquivos "obriga a reescrever a História". Com o acesso aos documentos originais, surge sempre a "sensação de que há a possibilidade de cobrir lacunas e substituir interpretações", afirma, exemplificando com a sua descoberta, nos anos 80, do arquivo do Condicionamento Industrial. "Depois de analisar esta documentação, percebi que toda a história da indústria portuguesa estava falseada e esse arquivo obrigou à reescrita da história industrial", afirma.

Notícia actualizada hoje, dia 18 de Abril, às 09h04