A música no coração de Stacey Kent

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Com uma carreira desenvolvida no universo do soft-jazz, das melodias suaves e inofensivas, longe do glamour que marca a sua vida, Stacey Kent imprimiu uma nova sofisticação à sua música, criando um universo próprio que incorpora elementos tão díspares como a literatura, a "chanson", a música brasileira, a poética teatral herdada dos britânicos e o jazz do grande "songbook" norte-americano. O seu último registo, "Breakfast on the Morning Tram" (Blue Note), foi aclamado pelo público e pela crítica, estando nomeado para um Grammy como melhor álbum de jazz vocal do ano.

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Com uma carreira desenvolvida no universo do soft-jazz, das melodias suaves e inofensivas, longe do glamour que marca a sua vida, Stacey Kent imprimiu uma nova sofisticação à sua música, criando um universo próprio que incorpora elementos tão díspares como a literatura, a "chanson", a música brasileira, a poética teatral herdada dos britânicos e o jazz do grande "songbook" norte-americano. O seu último registo, "Breakfast on the Morning Tram" (Blue Note), foi aclamado pelo público e pela crítica, estando nomeado para um Grammy como melhor álbum de jazz vocal do ano.

Apesar de, ainda hoje, lhe custar a acreditar como chegou tão longe fazendo algo que sempre lhe foi natural, um dom de infância a que a família deu pouca importância, aceita por completo esta sua nova condição de estrela, mostrando-se segura, confiante, invulgarmente determinada. Visita-nos dias 23 (Centro Cultural das Caldas da Rainha) e 24 (Fundação Oriente, Lisboa), regressando a 23 de Maio para um espectáculo no Auditório da Faculdade de Engenharia do Porto.

Uma americana na Europa

Estamos em 1995. Stacey Kent voa de Londres para Nova Iorque para assistir à estreia do filme em que participa como cantora, "Richard III", adaptação de Shakespeare com Annette Bening, Robert Downey Jr e Kristin Scott Thomas. Os pais assistem pela primeira vez a uma performance da filha. "De repente, lá estava eu na tela, a cantar. Foi um momento poderoso e penso que eles ficaram abalados. Foi a primeira vez que me viram a cantar. A minha mãe disse-me depois: 'Sabes, soube sempre que isto poderia acontecer. Quando eras pequena e limpavas a cozinha, ou brincavas no quarto, cantavas baixinho e ficavas horas perdida no teu universo.' Nesse momento, perceberam que os meus princípios não se tinham alterado. Eu era apenas uma rapariga emotiva que adorava música."

Este episódio pode ser um dos mais marcantes da vida da cantora e define o final de uma fase em que Kent se sentia dividida entre uma carreira, cada vez mais real, como cantora e a continuação dos estudos de Literatura. Hoje, com o calendário intenso que a levou em 2008 a mais de 27 países, torna-se estrela na Europa, esgotando salas como o Olympia e atingindo a marca de ouro por vendas em França e na Alemanha. No início deste ano foi condecorada pela ministra da Cultura francesa com a Ordem de Cavaleiro das Artes e das Letras, em reconhecimento da sua contribuição para a valorização da língua francesa.

"Quando era pequena cantava por prazer. Todos os dias havia uma ocasião em que isso acontecia. Ou a minha irmã me pedia, ou algum amigo da escola... claro que eu estava sempre à procura de uma oportunidade. Mas não era nada de espalhafatoso, era um cantar calmo e contido, um pouco misterioso, quase como uma canção de embalar. Na família não havia músicos ou artistas, era uma família de académicos com uma ética de trabalho, mas a minha mãe tocava piano, clássico. Tínhamos um piano em casa e sempre música, Debussy, Ravel, Chopin ou Mozart. Como vivia perto do Lincoln Center [Nova Iorque] íamos assistir a espectáculos de ópera ou música clássica. Ouvia também João Gilberto, Frank Sinatra, Nat King Cole, Django Reinhardt, Benny Carter, Dave Brubeck, Carmen McRae, Ella Fitzgerald. Quando a minha irmã mais pequena estava rabugenta, ou não se sentia bem, eu cantava-lhe. Era a forma de me relacionar intimamente com as outras pessoas."

A aventura europeia

Entrando na universidade, Stacey tira o curso de Literatura Comparativa no Sarah Laurence College de Nova Iorque. Estudou intensamente - férias de Verão incluídas - alemão, italiano, francês e outras linguas, cultivando um secreto fascínio pelo continente europeu.

"Cresci em contacto com a cultura francesa, por culpa do meu avô que era russo. Muito novo, a família decidiu partir para a América. Como não havia dinheiro para levar toda a gente, ele foi uma das crianças que ficou na Europa. Primeiro esteve na Holanda e depois veio para França, apaixonando-se pela cultura e pelas pessoas. Mesmo quando já tinha ganho dinheiro suficiente para partir para os EUA, optou por ficar, estudando na Sorbonne. Quando foi para a América, manteve ligação forte a França. Tornámo-nos próximos. Ele percebeu que eu tinha um dom para as línguas - comecei a falar cedo, tinha bom ouvido - e ensinava-me poesia. Fazia-me decorar e repetir passagens de poesia francesa e russa. Líamos em conjunto. Para ele era talvez um processo egoísta, pois estava a alimentar a sua ligação à cultura de infância, mas por outro lado era como uma linguagem secreta que partilhávamos. Mesmo antes de eu perceber o que significavam aquelas palavras, já sentia que havia nelas algo de especial. À medida que fui crescendo e ganhando consciência, as metáforas e imagens que me ensinou tornaram-se importantes a nível emocional. Foi aqui que nasceu a minha ligação à literatura, à magia de se contar uma história, e que foi esse o principal factor que levou à minha nomeação para Cavaleiro das Artes pelo governo francês."

Quando termina o curso, Kent é uma estudante empenhada em prosseguir os estudos com a realização de um mestrado. No entanto, os anos passados em regime universitário intenso levam-na a decidir-se por uma pausa, momento que se revela oportuno para visitar a Europa. "Nem esperei para festejar com a família. No dia seguinte a terminar o curso, literalmente, meti-me num avião. Inicialmente vim para a Alemanha com o intuito de aperfeiçoar a língua durante o Verão. Posteriormente viajei para Londres e foi aí onde tudo começou. Vi anunciado um curso de jazz na Gildhall School of Music e um impulso levou-me a concorrer. Apesar de não ter qualquer formação, fui escolhida, talvez por ter bom ouvido. Fiquei entusiasmada, mas intimidada: estava rodeada de estudantes de música que se iriam tornar profissionais. Era um curso avançado de jazz, uma pós-graduação, onde os participantes desenvolviam as suas composições. Foi aí que conheci o Jim [o saxofonista Jim Tomlinson, seu marido e companheiro inseparável]. Sentíamo-nos desfasados pois estávamos mais interessados nos 'standards' do songbook norte-americano. A certa altura disseram-me: 'Nunca vais vencer nesta indústria se pretendes cantar apenas standards.' Aconteceu que o curso tinha uma forte ligação à comunidade. Éramos chamados para festas, em todo o tipo de locais. Foi aí que tive o primeiro contacto com o público. De repente, estava ali, num palco, e as pessoas reagiam à minha música. Na altura pensava ainda regressar aos estudos, mas decidi aproveitar e divertir-me um pouco. A partir daí os acontecimentos precipitaram-se. As pessoas que nos vinham ouvir diziam a outras, que diziam a outras e por aí fora. Comecei a receber telefonemas com ofertas para cantar em todo o lado. Fui convidada para cantar num filme e recebi a proposta para um contrato de gravação. Não queria acreditar."

Pés no palco, cabeça nas montanhas

Imediatamente após a participação no filme "Richard III", entra em estúdio para gravar o primeiro álbum, "Close Your Eyes", registo ainda distante da sofisticação "literária" de "Breakfast in the Morning Tram". Ficou satisfeita com os resultados? "Sentia uma relação amor-ódio. Havia aspectos que me agradavam, outros não. Em relação a este disco ["Breakfast in the Morning Tram"], é diferente. No momento em que saímos do estúdio, eu e o Jim estávamos eufóricos, com o som, com o empenho da banda. Mesmo que ninguém comprasse o disco, tínhamos conseguido. Foi a primeira vez que tive essa sensação."

Um dos pontos fortes deste disco, as letras dos temas originais (entre versões de Gainsbourg, Fleetwood Mac ou Baden Powell) têm a assinatura do escritor Kazuo Ishiguro, que Kent convidou para escrever para a sua voz. "Não me considero uma escritora, sou uma intérprete. São dois 'animais' diferentes. Nunca senti essa necessidade. Sinto que sei escolher bem canções que se adaptam à minha personalidade. Kazuo Ishiguro é um escritor brilhante e tenho uma enorme sorte de o ter como colaborador. Compreende-me como pessoa, como mulher, como artista. Sinto as letras dele como minhas."

A rotina actual de Kent é intensa, com espectáculos pela Europa, inúmeras solicitações para entrevistas, artigos. "Nunca pensei em termos de carreira ou de público. Agora que estou aqui, sim, acho que este estilo de vida funciona para mim. Ao olhar para o calendário da digressão que realizámos o ano passado, eu e o Jim pensámos: 'como conseguimos fazer isto?' O grande segredo para o termos conseguido foi o facto de realizarmos pausas tão grandes e intensas como a própria digressão. Dois extremos totais. Quando estamos em tournée, vivemos na Europa, em Londres. Quando fazemos uma pausa, temos casa nas Rocky Mountains, no Colorado: não há telefones, nem televisão, apenas guitarras. Comemos bem, passeamos nas montanhas e fazemos ski. É aí que nos sentimos confortáveis, ao ar livre, nas montanhas.