Isto é Nollywood, isto é cinema africano

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Actores principais que faltam às filmagens porque estão a fazer outros filmes ao mesmo tempo, luz eléctrica constantemente a ir abaixo, gangs que extorquem dinheiro em troca de autorização para se filmar no território deles. Isto é Nollywood, a indústria de cinema nigeriana que está a revolucionar o cinema africano.

Para sermos honestos, Nollywood é mais do que filmes feitos em dez dias com orçamentos de 15 mil dólares (onze mil euros) no meio do caos de Lagos, capital da Nigéria. É também uma indústria de 250 milhões de dólares, um "star system" que se espalhou por toda a África, 300 produtores, entre 500 e mil filmes por ano, lucros enormes, VCD's (não estamos sequer a falar de DVD's) que chegam às lojas, na Nigéria e outros países, ao ritmo de trinta novos títulos por semana e ao preço de dois dólares cada.

Um ciclo de cinema africano - como o "African Screens-Novos Cinemas de África", que começa hoje no cinema São Jorge, em Lisboa, naquela que é a estreia das actividades do novo centro cultural África.cont - não pode, por isso, ignorar Nollywood. Aliás, Manthia Diawara, professor de estudos africanos da New York University, e, com Lydie Diakhaté, curador do ciclo, não só não pode como não quer ignorar o fenómeno nigeriano. É por isso que o terceiro dos quatro fins-de-semana do ciclo é dedicado a Nollywood.
"Com Nollywood", explica Diawara numa conversa telefónica com o Ípsilon a partir de Nova Iorque, "pela primeira vez temos filmes feitos em vídeo por oposição ao celulóide. A qualidade é mais baixa, mas são filmes que contam histórias africanas para africanos, e já não filmes feitos a pensar no festival de Cannes ou no de Berlim". Isso foi o que aconteceu durante muito tempo. "Desde o início da sua História que o cinema africano esteve ligado às independências, era um cinema de desenvolvimento, de descolonização, de identidade nacional. E era ajudado sobretudo pela França. Noventa por cento dos filmes eram produzidos pelo Ministério da Cooperação e Relações Exteriores francês".

Foi assim que realizadores africanos francófonos e lusófonos seguiram um cinema de arte e ensaio, aprendido com europeus, aplaudido nos festivais internacionais, mas muito pouco (ou nada) visto em África. Até que, há menos de duas décadas, Nollywood explodiu. Segundo a pequena História resumida no site do filme "This is Nollywood", no final da década de 80, princípio da de 90, houve grande aumento do crime e da insegurança em cidades como Lagos. As pessoas começaram a ter medo de sair à noite e os cinemas tiveram que fechar as portas. Surgiu aí a grande oportunidade.

O princípio de tudo

Conta-se que o filme "Living in Bondage" (que em Lisboa pode ser visto a 8 de Maio com o título "Vidas Submissas") foi o princípio de tudo: um produtor chamado Kenneth Nnebue tinha importado cassetes de vídeo a mais e, não conseguindo escoá-las, decidiu fazer o filme e vendê-las assim. O sucesso foi imediato. "Living on Bondage", falado em igbo, uma das línguas da Nigéria, tem o nível de um mau vídeo caseiro, mas conta uma história à qual os africanos aderiram: a dos homens corruptos que conseguiram as suas fortunas sacrificando as mulheres e bebendo o sangue delas, e que serão perseguidos pelos fantasmas destas mulheres que não os libertarão enquanto eles não confessarem os seus pecados a Jesus.

São histórias, diz Manthia Diawara, que "falam da vida de todos os dias dos africanos, na qual a religião, o oculto e a magia têm um grande peso. Os curandeiros, por exemplo, têm um papel importante, tanto na cidade como no campo". O que se verifica nos últimos tempos é que começa a haver um interesse entre os meios cinéfilos europeus e norte-americanos pelo que se faz em Nollywood. "Como se tornou um fenómeno tão grande, os festivais de Cannes e de Berlim estão a convidar realizadores de Nollywood para mostrarem o que andam a fazer".

E, de repente, começa a haver alguma influência mútua. "Os realizadores de Nollywood começam a copiar o estilo, o tipo de narrativa e de estética, de alguns realizadores africanos treinados em escolas de cinema europeias e, ao mesmo tempo, a prestarem mais atenção à qualidade da imagem e do som". E, por seu lado, os realizadores da escola arte e ensaio "estão a prestar atenção às audiências africanas, quando antes faziam filmes sobretudo para os festivais e salas de cinema europeus".

Baralhar referências

Mas o ciclo que hoje começa não trata apenas de Nollywood. Pelo São Jorge vão passar filmes lusófonos como "Ilheú de Contenda" do cabo-verdiano Leão Lopes (mas também uma outra versão da história cabo-verdiana com "Será um porto-riquenho esquisito? História de um cabo-verdiano americano", de Claire Andrade Watkins), ou "Mortu Nega" do guineense Flora Gomes.

Vão ser mostrados clássicos africanos como "Touki Bouki", uma obra de 1973 do senegalês Djibril Diop-Mambéty - e um filme que, segundo Diawara, "é visto pelos franceses como o mais importante filme africano, o que é discutível, mas que na época lhes permitiu dizer 'os africanos estão finalmente a fazer filmes avant-garde'". Apesar disso, reconhece o comissário, esta história de dois senegaleses que sonham ir para França mas para o conseguirem têm que extorquir dinheiro a um playboy rico "foi o primeiro filme a desafiar o linearismo maniqueísta do branco/negro, colonizador/colonizado", e por isso é incontornável.

Diawara programou também objectos mais dificilmente classificáveis como "Les Saignantes", de Jean-Pierre Bekolo, co-produção Camarões/França (passa amanhã à noite), a história de duas jovens que celebram o mevungu, um ritual que as leva a fazer sangrar até à morte os homens corruptos obcecados por poder e sexo. É, reconhece Diawara, um filme que baralha as nossas referências. "Fala do pós-colonialismo em África, do falhanço das estruturas da sociedade civil, e de como o grotesco e o canibalístico acabam por dominar. Mas não é Nollywood porque o realizador está a fazer um meta-cinema, muito influenciado por jogos de vídeo e que lida com a contemporaneidade, com a cena artística, com personagens Nintendo".

Alguns dos alunos de Diawara criticaram no filme a pobreza de produção, outros gostaram "por causa dessa qualidade 'kitsch', 'trash'". O tema não é diferente do de algumas grandes produções de Hollywood - filmes como "Diamantes de Sangue" e "O Último Rei da Escócia" - que também falam da corrupção e de governantes sedentos de sangue. Mas a perspectiva é diferente. "Aqui têm um africano a olhar para a mesma situação, mostrando o que acontece quando nada funciona".

No extremo oposto está "This is My Africa", de Zina Saro-Wiwa (co-produção Nigéria/Reino Unido), que pediu a vinte pessoas, muitas delas artistas, para dizerem o que vêem quando fecham os olhos e pensam em África. É um filme sobre cheiros, cores, sabores, escritores, músicas. E é, ao contrário de "Les Saigantes", um filme que "domestica" África. "Os africanos que estão a crescer em Londres ou em Lisboa querem dar uma imagem positiva de África. As pessoas da minha geração, de 55 anos, não se importam com a forma como os outros vêem África, mas para os jovens é importante. Querem torná-la aceitável para o Ocidente mas também para eles próprios".

Entre o cinema saído da escola de arte e ensaio (sobretudo francófono e lusófono) e o de Nollywood (essencialmente anglófono) há um meio-termo, o sítio onde os diferentes públicos se encontram, um filme que, acredita Diawara, pode agradar aos africanos pobres de Lagos e aos que, na mesma cidade, "bebem cappuccino e lêem o Financial Times", aos que vivem em África e aos que fazem parte da diáspora - esse lugar é ocupado por um filme como "Il Va Pleuvoir Sur Conackry", de Cheick Fantamady Câmara (Guiné/França), que abre hoje o festival. E porque é que um filme como este é tão consensual? Manthia não hesita: "É uma narrativa 'mainstream', clássica, é Hollywood".

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Actores principais que faltam às filmagens porque estão a fazer outros filmes ao mesmo tempo, luz eléctrica constantemente a ir abaixo, gangs que extorquem dinheiro em troca de autorização para se filmar no território deles. Isto é Nollywood, a indústria de cinema nigeriana que está a revolucionar o cinema africano.

Para sermos honestos, Nollywood é mais do que filmes feitos em dez dias com orçamentos de 15 mil dólares (onze mil euros) no meio do caos de Lagos, capital da Nigéria. É também uma indústria de 250 milhões de dólares, um "star system" que se espalhou por toda a África, 300 produtores, entre 500 e mil filmes por ano, lucros enormes, VCD's (não estamos sequer a falar de DVD's) que chegam às lojas, na Nigéria e outros países, ao ritmo de trinta novos títulos por semana e ao preço de dois dólares cada.

Um ciclo de cinema africano - como o "African Screens-Novos Cinemas de África", que começa hoje no cinema São Jorge, em Lisboa, naquela que é a estreia das actividades do novo centro cultural África.cont - não pode, por isso, ignorar Nollywood. Aliás, Manthia Diawara, professor de estudos africanos da New York University, e, com Lydie Diakhaté, curador do ciclo, não só não pode como não quer ignorar o fenómeno nigeriano. É por isso que o terceiro dos quatro fins-de-semana do ciclo é dedicado a Nollywood.
"Com Nollywood", explica Diawara numa conversa telefónica com o Ípsilon a partir de Nova Iorque, "pela primeira vez temos filmes feitos em vídeo por oposição ao celulóide. A qualidade é mais baixa, mas são filmes que contam histórias africanas para africanos, e já não filmes feitos a pensar no festival de Cannes ou no de Berlim". Isso foi o que aconteceu durante muito tempo. "Desde o início da sua História que o cinema africano esteve ligado às independências, era um cinema de desenvolvimento, de descolonização, de identidade nacional. E era ajudado sobretudo pela França. Noventa por cento dos filmes eram produzidos pelo Ministério da Cooperação e Relações Exteriores francês".

Foi assim que realizadores africanos francófonos e lusófonos seguiram um cinema de arte e ensaio, aprendido com europeus, aplaudido nos festivais internacionais, mas muito pouco (ou nada) visto em África. Até que, há menos de duas décadas, Nollywood explodiu. Segundo a pequena História resumida no site do filme "This is Nollywood", no final da década de 80, princípio da de 90, houve grande aumento do crime e da insegurança em cidades como Lagos. As pessoas começaram a ter medo de sair à noite e os cinemas tiveram que fechar as portas. Surgiu aí a grande oportunidade.

O princípio de tudo

Conta-se que o filme "Living in Bondage" (que em Lisboa pode ser visto a 8 de Maio com o título "Vidas Submissas") foi o princípio de tudo: um produtor chamado Kenneth Nnebue tinha importado cassetes de vídeo a mais e, não conseguindo escoá-las, decidiu fazer o filme e vendê-las assim. O sucesso foi imediato. "Living on Bondage", falado em igbo, uma das línguas da Nigéria, tem o nível de um mau vídeo caseiro, mas conta uma história à qual os africanos aderiram: a dos homens corruptos que conseguiram as suas fortunas sacrificando as mulheres e bebendo o sangue delas, e que serão perseguidos pelos fantasmas destas mulheres que não os libertarão enquanto eles não confessarem os seus pecados a Jesus.

São histórias, diz Manthia Diawara, que "falam da vida de todos os dias dos africanos, na qual a religião, o oculto e a magia têm um grande peso. Os curandeiros, por exemplo, têm um papel importante, tanto na cidade como no campo". O que se verifica nos últimos tempos é que começa a haver um interesse entre os meios cinéfilos europeus e norte-americanos pelo que se faz em Nollywood. "Como se tornou um fenómeno tão grande, os festivais de Cannes e de Berlim estão a convidar realizadores de Nollywood para mostrarem o que andam a fazer".

E, de repente, começa a haver alguma influência mútua. "Os realizadores de Nollywood começam a copiar o estilo, o tipo de narrativa e de estética, de alguns realizadores africanos treinados em escolas de cinema europeias e, ao mesmo tempo, a prestarem mais atenção à qualidade da imagem e do som". E, por seu lado, os realizadores da escola arte e ensaio "estão a prestar atenção às audiências africanas, quando antes faziam filmes sobretudo para os festivais e salas de cinema europeus".

Baralhar referências

Mas o ciclo que hoje começa não trata apenas de Nollywood. Pelo São Jorge vão passar filmes lusófonos como "Ilheú de Contenda" do cabo-verdiano Leão Lopes (mas também uma outra versão da história cabo-verdiana com "Será um porto-riquenho esquisito? História de um cabo-verdiano americano", de Claire Andrade Watkins), ou "Mortu Nega" do guineense Flora Gomes.

Vão ser mostrados clássicos africanos como "Touki Bouki", uma obra de 1973 do senegalês Djibril Diop-Mambéty - e um filme que, segundo Diawara, "é visto pelos franceses como o mais importante filme africano, o que é discutível, mas que na época lhes permitiu dizer 'os africanos estão finalmente a fazer filmes avant-garde'". Apesar disso, reconhece o comissário, esta história de dois senegaleses que sonham ir para França mas para o conseguirem têm que extorquir dinheiro a um playboy rico "foi o primeiro filme a desafiar o linearismo maniqueísta do branco/negro, colonizador/colonizado", e por isso é incontornável.

Diawara programou também objectos mais dificilmente classificáveis como "Les Saignantes", de Jean-Pierre Bekolo, co-produção Camarões/França (passa amanhã à noite), a história de duas jovens que celebram o mevungu, um ritual que as leva a fazer sangrar até à morte os homens corruptos obcecados por poder e sexo. É, reconhece Diawara, um filme que baralha as nossas referências. "Fala do pós-colonialismo em África, do falhanço das estruturas da sociedade civil, e de como o grotesco e o canibalístico acabam por dominar. Mas não é Nollywood porque o realizador está a fazer um meta-cinema, muito influenciado por jogos de vídeo e que lida com a contemporaneidade, com a cena artística, com personagens Nintendo".

Alguns dos alunos de Diawara criticaram no filme a pobreza de produção, outros gostaram "por causa dessa qualidade 'kitsch', 'trash'". O tema não é diferente do de algumas grandes produções de Hollywood - filmes como "Diamantes de Sangue" e "O Último Rei da Escócia" - que também falam da corrupção e de governantes sedentos de sangue. Mas a perspectiva é diferente. "Aqui têm um africano a olhar para a mesma situação, mostrando o que acontece quando nada funciona".

No extremo oposto está "This is My Africa", de Zina Saro-Wiwa (co-produção Nigéria/Reino Unido), que pediu a vinte pessoas, muitas delas artistas, para dizerem o que vêem quando fecham os olhos e pensam em África. É um filme sobre cheiros, cores, sabores, escritores, músicas. E é, ao contrário de "Les Saigantes", um filme que "domestica" África. "Os africanos que estão a crescer em Londres ou em Lisboa querem dar uma imagem positiva de África. As pessoas da minha geração, de 55 anos, não se importam com a forma como os outros vêem África, mas para os jovens é importante. Querem torná-la aceitável para o Ocidente mas também para eles próprios".

Entre o cinema saído da escola de arte e ensaio (sobretudo francófono e lusófono) e o de Nollywood (essencialmente anglófono) há um meio-termo, o sítio onde os diferentes públicos se encontram, um filme que, acredita Diawara, pode agradar aos africanos pobres de Lagos e aos que, na mesma cidade, "bebem cappuccino e lêem o Financial Times", aos que vivem em África e aos que fazem parte da diáspora - esse lugar é ocupado por um filme como "Il Va Pleuvoir Sur Conackry", de Cheick Fantamady Câmara (Guiné/França), que abre hoje o festival. E porque é que um filme como este é tão consensual? Manthia não hesita: "É uma narrativa 'mainstream', clássica, é Hollywood".